quinta-feira, 4 de junho de 2009

IRMÃO PERVERSO

Humberto Ilha

Nem bem cumpriu o compromisso e saiu procurando um amigo que o acompanhasse até lá. Como não achou ninguém, o garoto foi sozinho mesmo. A adrenalina queria sair pelo nariz, de tão contente que o menino estava. Compensou ficar durante hora e meia escutando a freira da catequese. Agora estava livre para fazer a vontade do perversinho coração juvenil. A bem julgar — pensava — não era uma perversidade. Era uma malvadez para beneficiar os usuários do transporte coletivo. “Quem mandou os ônibus entrarem em greve?” Isso era o que escutava em casa, que os ônibus entravam em greve e as pessoas pagavam o pato. “Mas hoje eles vão se ver comigo, os ônibus”, quase decretava para si mesmo.

Embrenhou-se mato adentro por um terreno baldio, agarrou umas pedras e ficou escondido na tocaia. Já o céu se desalumiava, mas dali ele avistava o povo dando vaias quando os ônibus passavam. A maioria da frota estava parada e a empresa fazia o que podia com os poucos veículos dirigidos pelos empregados da administração. A intenção era jogar um calhau no pára brisa, causar um estardalhaço e correr. Agora a encrenca era com ele e não com aqueles bundas-moles que só sabiam vaiar. Escondeu-se um pouco mais, quando enxergou o cabo subdelegado. “Não é bom que me veja; com ele a conversa começa com tabefe,” pensou. Da porta da peixaria vinham os gritos ofensivos do Fodoca, um doente mental que repetia o que alguns motoristas parados mandavam que dissesse. Coitado, repetia sorrindo sem saber por que estava sendo aplaudido. Era manso, mas quando atiçado ele se transformava numa frigideira cheia de óleo fervente. O movimento no Bar Dragão mais que dobrou. A muvuca combinava com o gole fora de hora. O dono não dava conta da freguesia. Aquele vidro de ovo cozido no vinagre, encalhado há dois dias, vendeu imediatamente. Cigarros da Souza Cruz já não havia mais para vender; só os ovais Liberty, que faziam muito estrago nos pulmões.

De repente começou uma chuva de tomates nas pessoas, nas casas, nos ônibus e nas placas de anúncio. Foi quando o garoto fez seu único arremesso. Acertou onde queria: o pára-brisa do ônibus vinte e nove. Logo esse, que inspirava tantos a ganhar no bicho. Dois mais nove? Onze; e onze é cavalo, gente. Nem o Fodoca gritava impropérios contra aquele bicho, minto, veículo simpático que servia o bairro. “É, mas hoje ele queria entrar na greve. Mas não entrou. Vim aqui para agir, e já fiz a minha parte. Não tenho culpa se esse nojento atravessou o meu caminho”. O que fez, estava feito. Foi se esgueirando no matagal para depois ir correndo para casa. Quando chegou à rua onde morava viu uma multidão que vinha. Pensou: “foi bom haver saído de lá, o pau já está comendo”. O povo gritava conhecidas palavras de ordem como as que a gente ouve nos campos de futebol. O garoto passou a acompanhar aquela gritaria. Era um bom fingimento para se desvencilhar do delito cometido. Parou para ver melhor, pois vinha alguém ferido. Procurando o mártir popular, branqueou ao ver o próprio irmão com a cabeça ensangüentada. Quis logo saber quem praticara tamanha perversidade.

— Foi um vagabundinho que apedrejou o pára-brisa do ônibus vinte e nove.