sábado, 30 de agosto de 2008

DOIS VELEIROS



Humberto Ilha

Após vender seu antigo veleiro a um amigo, Oilte Nunes adquiriu outro novinho. Bom velejador, o homem tinha fama de não perder regatas sem luta. Não raro gabava-se de ter esse "defeito" em seu currículo médico. Mais ainda, dizia-se uma Ferrari andando por estradas cheias de buracos. Metáfora óbvia para proclamar que os hospitais da cidade não estavam à altura do seu "bisturi de ouro". Se descuidassem ele se proclamava deus. Enfermeiros e Auxiliares não gostavam de trabalhar com ele, de tão arbitrário que era. Dia desses, era madrugada, resolveu passar no hospital para atender um paciente. O segurança barrou-lhe a entrada.
— Vou verificar quem é o senhor.
Enquanto o outro se comunicava com alguém lá dentro, Oilte enfiou o pé na porta de vidro e entrou levando tudo por diante.
— Não posso aceitar que o hospital onde trabalho não me conheça.
Os diretores da casa o perdoaram, pois ele de fato era credor de respeito profissional. Mas os funcionários passaram a tratá-lo de cavalo. Cá para nós, era desejável que nessa profissão ele fosse alguém que não aceitasse levar trambolhões na vida. Em competições esportivas isso era algo detestável porque ele não reconhecia a prevalência dos adversários. Inocentes regatas eram ocasiões de encrencar com os amigos. O homem virava um pau de bater em maluco. Transformava-se num tirano mal educado tamanho o baixo vocabulário que usava para se fazer entender. Mas havia que ter mais cuidado no exercício de profissão tão humana.

Depois de entregar a embarcação desafiou o novo proprietário para uma regatinha ao redor da Ilha dos Ratones. Era um percurso de uma hora. Meio sem jeito o outro aceitou, sabendo que iria perder. Além de novo o veleiro de Oilte era veloz. Com aquele ventinho nordeste era uma vantagem e tanto.

Dada a largada o médico pulou na frente. Quase se via o sorriso sarcástico de Oilte Nunes liderando a prova. Queria, precisava ganhar nem que fosse à base de ciganice. Mas o outro o conhecia bem e preparou-lhe coisa de caso pensado: ao ver-se distante ligou o motor na lenta e navegou de bordo contrário. Quando fez o contorno da ilha, o médico estava muito atrás. O amigo venceu a regata e esperou a chegada do azedo, que resolveu abandonar a prova e atracar o barco. Não entendeu como aquilo pudesse ter acontecido. Prometeu colocar anúncio no jornal para vender o veleiro. Alegando que a embarcação era hostil e que não obedecia com rapidez seus comandos de leme e escota da vela mestra, Oilte não a queria mais. Queria um veleiro arisco e não um cocho de lavar roupas. Diante dos amigos ficou com tanta vergonha que ofereceu o veleiro para quem quisesse comprá-lo por um preço de ocasião. Então o amigo que o havia vencido naquela regata de brincadeira aproximou-se.
— Por que você coloca a culpa no barco?
— Não admito perder para você nem de brincadeira.
— Não percebeu que não venci você?
—...???
— Você perdeu para você mesmo. Quer vender o seu veleiro? Pois não deixo
.

Foto: Veleiro "Guga Buy", gentileza de José Zanella.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

ADEMAR? PRESENTE!


Humberto Ilha

Vejo perambular por aí sujeira e esgoto quando penso no menino Ademar, que um dia me apresentou aos livros. Inteligência notável e memória privilegiada, o menino lia tudo que lhe caísse às mãos; melhor, devorava. Intuitivamente percebia que, lendo muito, ele era mais original; muito embora seus conhecimentos fossem baseados no que diziam os outros. E, lendo muito, sabia escrever. E, escrevendo, aprendia mais e melhor. Abelhudo, quase nada lhe escapava ao agudo interesse pela leitura. Nem os pedacinhos de jornal higiênico da privada no fundo do quintal. Por vezes relia mais do que lia, quando topava algo interessante. Percebia que reler era melhor que ler. Desconfiava que fossem de suas releituras que nasciam suas reflexões criadoras.

Perto de onde morava havia um buraco enorme que ficava cheio de água na época das chuvas; lá por setembro. O garoto encantava-se admirando a água daquela cacimba. Levantava cedinho e corria para a beira da lagoinha sonhando com veleiros navegando, canoas de pescadores, tainhotas pulando, revoada de garças, lontras pardas e crianças nadando. Muitas vezes corria para lá e via o reflexo do sol nascente na água parada. O céu, translúcido e sem um fiapo de nuvem, rebrilhava como pano de fundo. Depois, Cuíca, como também era conhecido, ficava lançando pedrinhas em vôos rasantes para fazê-las resvalarem no espelho da água mansa.

Um dia construiu rudimentar canoa de madeira com a ajuda de Fornalha, seu eterno assistente para os projetos de engenharia juvenil. Remar naquele mundo fascinante da lagoa da cava era um sonho perseguido com interesse e paixão. Mas vogar num bote infiel, de tão malfeito, exigia-lhe mais destreza do que possuía. Era péssimo em trabalhos desse tipo. Não herdara o refino manual do pai. Focado no sonho de navegar como o velho, para ele aquela bateira transformou-se numa armadilha. Negava-lhe explícita obediência. Parecia que fora feita para emborcar. Exigia do remador senso de equilíbrio para ali se manter. E esse dom Ademar não possuía. Nisso ele era sutil como uma bigorna. Mas nadava bem e era persistente feito um cão. Isso de emborcar a canoa, se molhar, voltar a remar, emborcar e remar de novo era nada, em comparação à vista que ele extraía quando ficava no meio do lago. Era o céu descortinado diante daqueles ávidos olhos azuis. Era um mundo dentro do mundo. Mais, um universo mágico e inexprimível.

À medida que a água da cava ia baixando, coroas de terra iam aparecendo. Então, olhando de dentro para as beiradas do lago, o menino identificava os recantos intocados. Uma nesga de terra beijando a água já se transformava num lugar de sonhar, num lugar de busca e cômodo para o seu talentoso espírito. Vislumbrava e nomeava as praias: Saquinho, Caranhas, das Almas, Rendeiras, da Costa, do Canto e do Porto. Algumas ele somente acessava de barco. Mais ao longe jurava enxergar um frondoso ipê amarelo no lugar de um pé de inhame, que ninguém sabia como havia se criado ali. No entorno da lagoa artificial ainda visualizava as praias de mar grosso: Mole, Rio Vermelho, Moçambique, Galheta, Santinho, da Barra, Joaquina e Campeche. O laguinho era ponto de encontro consigo mesmo. Tinha até um centrinho com a cara urbana. Ali os moradores se encontravam. Gambás e vespas, por certo, mas eram encontros naturais e importantes para a vida da comunidade. Gambás não pescavam, nem vespas eram malabaristas dos bilros nas almofadas de rendas. Mas, às vezes, ele apostava que via isso. De certo via mesmo, mas através dos olhos de sua inocente alma juvenil.

De repente percebeu que o sol impiedoso secava o lago. As praias foram se transformando em lama, revelando a imundície que insistia em aparecer. Eram garrafas e sacos plásticos, animais mortos, pneus velhos, tranqueira de galhos de árvores, poltronas e móveis inservíveis, lixo e mais lixo. Até os restos da carcaça de um fusca apareceu no baixar da água. A cada novo dia ficava mais difícil navegar. Até que o inferno mostrou-se por inteiro. Um postal que só albergava fedorenta revoada de urubus cobiçando as carniças que iam aparecendo. O mesmo sol que produzia o encanto do amanhecer apagou o futuro do lago de inspiração poética. Não que o sol fosse o responsável pela degradação ambiental da lagoa; não. Ele apenas cumpria o seu papel de permanecer sol. Quanto mais brilhava, mais fazia sumir a água do lago. Cuíca quase entrou em desespero diante da angústia de nada poder fazer para salvar a lagoa que se transformava num charco podre. Também: pilhou vizinhos depositando ali os entulhos que produziam nas próprias casas. Deixa; talvez na época das chuvas o lago fosse renascer. Isto se o Chida, o proprietário, não tampasse o buraco.

Novel ginasiano, hoje doutor, tinha como professora de português a dedicada Leonor de Barros. Irmã da não menos ilustre Antonieta, primeira catarinense a ter assento na Assembléia Legislativa do Estado e conhecida literariamente como Maria da Ilha. Ao final de uma de suas aulas, a mestra estabeleceu como tarefa de casa uma redação com o tema “O Amanhecer na Lagoa da Conceição”. O menino produziu um texto tão fiel que lhe renderia homenagens da veneranda senhora pelo resto do ano. Convertendo a cacimba em linguagem literária, transferiu tudo para o oco do coração daquela mulher. Iniciou oferecendo uma visão apaixonada do paraíso e concluiu chorando-lhe a morte, num breve e irremediável destino, se algo não fosse feito. Perguntado se conhecia o local, respondeu que jamais estivera lá. Indagado, ainda, como soubera tão fielmente descrevê-lo, explicou, com o desembaraço e o verdor de inteligência que lhe definia a personalidade: “relendo o jornal que embrulhava o peixe”.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

ADIANTA SE ESCONDER?

Humberto Ilha

Quem há de saber rezar para evitar a morte; para se proteger? A palavra morte causa espanto nas pessoas. Ao se pronunciar a dita cuja já se escuta: ”cruz credo!” ou “deus me livre!”. Para descarrego do medo, nada como desafiar a safada; falar da atrevida sem temor. Era assim, o Juci. Um mulato cheio de catequese que pouco acreditava nas velas que fazia arder enquanto rezava jaculatórias decoradas. Acendia o lumaréu por ordinária tradição. Dizia não temer a morte, mas de ninguém escondia sentir enorme tristeza quando nela pensava.
— A saudade, ensinava, mora na morte. Morrer é nada, em relação a viver, que é tão bom.
Era bíblico, para ele, haver tempo de viver e de morrer. Vida e morte eram companheiras na jornada de cada pessoa. Mas também, melhor morrer a viver cheio de tubos, cadeiras especiais, cama alta para facilitar o acesso, dores, ziguezague nos vídeos dos aparelhos, mangueiras, agulhadas, cânulas, escalpes, lancetas, lâminas, cubas, remédios, sedação e outros recursos para prolongar o que devia se acabar com dignidade.


Bom marido, dedicado pai e fiel tesoureiro do apostolado, sabia do risco a que estava sujeito ao empreender a temível travessia por essa vida diante das forças do bem e do mal. Fazia parte de um grupo que estava amargando mês insólito, dois membros já haviam esticado o pernil. A média era de um por ano. Juci estava triste ao mesmo tempo em que ironizava a perda dos colegas. Recomendava requinte nas orações, estava morrendo gente demais. Usava o termo morrer, tão sinistro, mas reprimia a vontade de fazer gracejo. Se fosse de sua escolha usaria termos como “deletar”, “queimar a bateria” ou “sentar no colo do capeta”. Não era chegado em desenhar a morte como horror natural na vida de cada um. Mas também não usava remedinhos para adocicar as desesperanças alheias. De verdade, Juci temia morrer. Sabia que, mais dia menos dia, isso iria acontecer. Mas ansiava bater a caçoleta sorrindo, rodeado de prantos sinceros dos que, por derradeiro, lhe fechassem a tampa da caixa.


Definitivamente havia algo de mau agouro no ar. A irmandade havia comprado duas coroas fúnebres que fez a conta bancária ficar no vermelho. Mesmo assim, todos se divertiam diante do melancólico atrevimento contido nas palavras daquele mulato de boca grande e olhos revirados enquanto falava. Ou melhor, interpretava. Cada opinião, conceito ou juízo que se metesse a fazer diante dos amigos era uma encenação teatral irretocável. Em casa era diferente. A esposa não gostava nada e os filhos odiavam a aptidão natural do pai. Ivonete, amiga e presidenta da congregação, não deixava escapulir oportunidade de espetá-lo:
— Juci, cuida de ficar vivo. O próximo a bater a alcatra não vai ganhar coroa. Não há mais gaita.
Gargalhada geral. Quem há de apostar numa intuição sutil como a de Ivonete? Quem há de suspeitar que a própria mortalha já esteja pronta? Quem há de rogar com proveito para evitar morrer? Ivonete dizia que suas orações eram infalíveis. Mas confessava não saber rezar para si própria.


Naquele domingo o grupo participava de retiro espiritual. O momento era de oração e preceito religioso, mas Juci não agüentava a vontade, quase fisiológica, de fazer gracejo. Ao final da palestra do Padre Aloísio, Juci estava no meio de um grupo conversando quando Ivonete apareceu no corredor tocando uma sineta, anunciando que era hora de oração. Ele reagiu:
— Pessoal, da próxima vez não mais convidamos essa mulher. Vive badalando aquela sineta da reza o tempo todo. Que que há? Ninguém merece... Ela só quer rezar... Rezar... Não pensa em se divertir... Nunca anuncia o recreio... Deus não quer isso para nós... Ivonete não vem mais conosco, gente...
A mulher entrou na caçoada e prometeu rezar por Juci. Aí ele se superou na troça. Ajoelhou-se em súplica pedindo que não o fizesse, pois mais iria atrapalhá-lo que socorrê-lo. Ela ainda resmungou:
— Cretino de uma figa, vou nomear você ministro do mau agouro na diocese.
O grupo todo começava a rir quando ela passava com o sininho na mão como se fora um inspetor de alunos. Ainda fazia uns contrapassos solenes para depois se perder nos corredores do convento rebolando as avantajadas cadeiras.


Acabado o retiro, Juci foi para casa do irmão. Ia levá-lo ao aeroporto. Mas sentiu-se mal e foi levado às pressas ao pronto-socorro. No trajeto, olhos arregalados de surpresa, Juci parecia ver o rosto pesaroso de Ivonete, empenhada numa sincera oração para o amigo não arribar em definitivo desta vida. Mas não era a amiga não. Era o médico lutando para se agarrar no fiapo de vida restante do homem que não queria morrer. Não naquele momento. Nunca houvera passado por uma situação de quase morte. Sentiu o perigo e desejou que aquela circunstância fosse-lhe a penúltima. Mas percebeu que estava indo embora. Veio-lhe a reminiscência da imagem da Virgem de Michelangelo, com Jesus morto em seus braços. No aconchego daquela mãe, morrer era nada. Então, sentindo estranho conforto, decidiu entregar os pontos. Chegou morto no hospital, sem tempo para as despedidas protocolares.


Tristeza geral no velório. A irmandade compareceu para sepultar o fiel tesoureiro. De repente chegou um carro preto com vistosa coroa de flores. Por certo a mais cara que havia na loja. Espetado num cavalete envernizado, o adorno fúnebre estava repleto de brilhos e fitas de plástico com mensagens de condolências. Quem trazia a homenagem póstuma era Ivonete, de luto fechado e soluçando de remorso. Inconformada, deixava à mostra o profundo pesar de não haver caprichado o suficiente nas orações em favor de Juci. Olhando para o corpo do amigo esticado no caixão compreendeu que em vida ele esperou a sorrateira de pé e não de joelhos não. Tão ousado fora que Ivonete esboçou um sorriso. Juci, sem sinal de pânico e quase sorrindo, fez que a própria morte se pusesse de luto.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

CADILHÁQUI

Humberto Ilha

Dos mecânicos do Bairro de Fátima era ele, de longe, o melhor; o Paulo Pavão. Mas parece que só tinha alegria quando fechava a oficina e se lavava com gasolina. "Fica-te aí que amanhã tem mais", dizia para a bancada de trabalho. Bebericava aguardente com coca-cola o dia todo. Depois, já bebote, montava Cadilháqui e ia acabar a noite na Vila Palmira. Mas ia com o Nilo para não se render sozinho ao engano das perdidas. Anos a fio nesse delito com a leniência da esposa: "ruim com ele pior sem ele". Ainda posava de respeitoso como se a companheira de nada suspeitasse: "ai de mim se ela desconfia". Bem que merecia um trato de pau para aprender o dom do respeito pelas pessoas de bem. Parecia dar valor somente à carne comprada. Chegava ao bordel com a roupa do serviço porque sabia haver sempre ali uma que perdia o tino diante da inhaca feiticeira da gasolina.

Cadilháqui dava ares de gostar da transgressão do senhorio porque, quando queria, agarrava o caminho da zona sem que alguém lhe ensinasse o norte. A mulherada o conhecia de longe; "passa a corda no pescoço do bicho que é do Pavão". Não que lhe dispensassem alguma consideração; não. É que o cavalo gostava de uma algazarra quando fuçava no lixo. Quando o dono dava pela falta do animal chamava o Paulo Poliça, um cabo reformado, que ia buscar o desertor pelo preço de uma cerveja. O proprietário do Bar Coringa, que era defronte à oficina, dava graças a deus quando o mecânico se perdia por lá. Gostava dele, mas não o suportava embriagado. Entrava no estabelecimento como uma torre cavaleira e se postava no meio das mesas de sinuca para pedir um trago. Dando de mão nas rédeas o cavalo se ouriçava todo e sapateava no chão do boteco. Ensaiava empinar ali dentro, só que trazia no lombo um cavaleiro que mantinha o controle da situação. E no equilíbrio com pouco espaço, o animal escorregava as patas traseiras bem ferradas para depois se recompor. Ainda que, a custo, restabelecida a integridade do conjunto, Cadilháqui permanecia arisco a julgar pelo movimento dos olhos arregalados e das cabeçadas no ar revelando a ânsia de sair para rua. O mecânico não precisava fazer isso. Altamiro botava as mãos na cabeça desesperado pela iminência do animal largar imundice pelo chão da bodega. "Pavão, leva esse cavalo, amigo; vai correr com a freguesia e sujar tudo aqui". Que se saiba nunca o bicho fez-lhe essa desfeita. Mas só pelo susto o fim de semana não prestava mais para Altamiro. Pavão curtia o desespero do proprietário porque tinha lá seus segredos, oras. Antes de cavalgar dava um chá de folha de goiaba ao animal e negava-lhe a ração para que não saísse pelas ruas emporcalhando tudo. Mas isso ele não contava ao apavorado vizinho.

Daí eu soube que, pelo início da madrugada, lá da gandaia vinham mais dois encorujados numa Lambreta. O açougueiro e o corneteiro do Batalhão, freqüentadores recidivos do fervilhante meretrício. Já havia uns dias que o cabo do acelerador do frágil veículo se partira. Combinaram que o da garupa controlaria a aceleração quando o outro solicitasse: "puxa o cabo; alivia". Para dar ordens desse tipo o militar ficava à vontade porque era reiúno velho de quartel e dono da motoneta. Não sabiam eles que Cadilháqui mais uma vez estava visitando o lixo da Churrascaria Globo em busca de verdejo. Naquela noite o proprietário do estabelecimento iria dar uma lição no animal. Não fosse o estrago nas latas de lixo e a sujeira espalhada pelo pátio até toleraria o bruto, que era manso. Mas já se lhe esgotara a paciência todas as manhãs ter de arrumar o estrago que o animal fazia. Então preparou uma boa. Aproximou-se amistosamente de Cadilháqui e amarrou-lhe, bem amarrado, uma fieira de latas nas pernas. Estalou uma chicotada nas ancas do alazão, que disparou rua abaixo a toda. Quanto mais corria, mais se assustava e mais queria correr. As luzes das casas foram se acendendo à medida que o cavalo ia passando com estardalhaço.

Enquanto isso os dois da Lambreta vinham se equilibrando precariamente. Como viajava na garupa e com menor compromisso, o açougueiro estava quase dormindo. Mesmo assim vinha obedecendo direitinho aos comandos do amigo. Isso até à hora que surgiu aquela espécie de mula sem cabeça, ensandecida pelo escarcéu que as latas faziam. O corneteiro gritou: “Alivia o cabo, Raulino!”; o outro fez o inverso; esgarçou tudo até o último. A Lambreta acelerou enlouquecida numa roda e foi se estatelar nos pneus de um caminhão estacionado ao lado do edifício dos Correios.

Percebendo a miséria que havia provocado, o dono da churrascaria meteu-se dentro de casa, apagou todas as luzes e ficou escutando o medonho rebuliço. Do cavalo escutava ainda os relinchos desesperados e o tropel das latas enquanto passava pela frente da Escola de Marinha em direção à Vila Palmira. Dos dois boêmios sequer um gemido. Mas depois, fazendo que chegara agora, ajudou a colocá-los na ambulância. Ficou o dito pelo não dito e ninguém soube quem fora o causador daquele tumulto que quase levou três para o buraco.

Duas semanas depois o militar e o açougueiro estavam engessados dos pés até a cabeça. Pareciam duas múmias vivas. Cadilháqui entrou em depressão e só encontrava consolo quando vinha sujar o pátio e remexer o lixo da churrascaria, pois ninguém conseguia nele colocar um inocente cabresto.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Vela Olímpica - Classe Laser

Jogos Olímpicos – um sonho em duas partes

O sonho completo não acabou. Só foi adiado por quatro anos.
por Bruno Fontes.

Desde que comecei na vela, sempre tive dois sonhos. O primeiro era participar de uma Olimpíada, representando o Brasil. O outro ainda é subir ao pódio e receber uma medalha. Vinte e um anos se passaram, desde então, contado com o apoio incondicional de família, patrocinadores e amigos. Período de muitas vitórias e de derrotas contra grandes adversários, alguns deles também amigos, que me fizeram evoluir tanto como velejador, como pessoa. A trajetória até a conquista da vaga na classe Laser em Beijing 2008 foi de muito trabalho e abdicações. Um ciclo de quatro anos, desde a derrota para Robert Scheidt, na seletiva para Atenas. Com um dos sonhos garantidos, a meta para a China era a conquista de uma medalha olímpica. Algo que parecia viável, por toda a preparação, pelos meus resultados nas competições e, inclusive, pelo treinamento na semana anterior ao início das classificatórias, já em raias chinesas. Porém, na hora, nada deu certo, e tudo que parecia conspirar ao meu favor durante os treinos, não se repetiu nas regatas. O misto de sentimentos, ao mesmo tempo, de dever cumprido e de frustração foi minha companhia nestes últimos dias. Sei que tentei o meu melhor, mas o 27º lugar desta competição ficou muito aquém do meu objetivo principal, do meu sonho. As condições imprevisíveis foram as mesmas para todos os atletas, mas não foram favoráveis a mim. Por outro lado, sei que, como velejador, não devo nada, em termos de qualidade, a quaisquer de meus adversários. Como todo brasileiro, que não desiste nunca, tento não me abater. Pois em 2012 temos os Jogos Olímpicos de Londres e tenho esta pendência da medalha para ser resolvida comigo mesmo e com o meu País, e, deste modo, completar a segunda parte do meu sonho. Fica como inspiração e incentivo o desempenho das meninas da classe 470 – Fernanda Oliveira e Isabel Swan – que em sua terceira participação individual em Olimpíadas e a primeira como dupla, conquistaram a tão sonhada medalha. O momento agora é de autocrítica, de aferir meus erros e avaliar o que posso melhorar e aplicar isso nos treinos, pois tenho muita água e ventos pela frente. O sonho não acabou. Só foi adiado por quatro anos.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Não sei perder

ZELITA
(Humberto Ilha)
Mais uma luz se apaga.
Minha amiga "Zélis" morreu; por aqui está mais escuro.
Nada me faz crer que ela viva em algum lugar, mesmo que tenha sido tão bondosa.
Nada me remete a outro endereço senão o do "Jardim da Paz".
Melhor crer nisso do que me entupir de remédio com prazo vencido.
Minha angústia básica diante da morte merece respeito.
Nada de abraçar a ilusão para continuar vivendo.
Muitas vezes ela me disse:
"Segue em frente, recolhe o caquedo e enfrenta o escuro".
Nada tão verdadeiro.
Credo, como a vida é esquiva, arisca, desconfiada e desertora da gente.
Busco a conformação num enorme silêncio que nada responde.
Clamo pelo deus dos homens, mas ele teima em se esconder.
Então vejo que estou sozinho nesse confronto desigual que é a vida.
Quer dizer: sozinho não! Tenho você, que ainda vive; desaforo!

sábado, 16 de agosto de 2008

Um conto do Mar


ADEUS, LUCIMAR
Humberto Ilha
Houve uma briga na cozinha do Annita enquanto navegava nos limites da costa catarinense. A embarcação fora um navio de guerra americano. Agora, adaptado, era um misto de carga e passageiros da Empresa Nacional de Navegação Hoepcke. Haviam se atracado em luta corporal um dos copeiros e o primeiro motorista de bordo. É que o veterano auxiliar de cozinha cumpria com zelo o regulamento para as rotinas dos serviços de bordo. Já o das máquinas, além de novo na empresa, era negado a obedecer ordens. Tinha o costume de trabalhar para o chefe e não para a empresa. Fizera carreira em pequenos cargueiros e em barcos de pesca.

Uma hora antes de aportarem Duarte já estava demitido. Consta que fora até a cozinha tomar café e fizera uso de um copo ao invés de uma xícara. Mais ainda, mexeu o açúcar com o cabo de um garfo quando deveria usar uma colherzinha. Fora admoestado pelo taifeiro diante de colegas e não gostara. O comportamento impróprio do copeiro deixou-o furioso, mas conseguiu conter-se. Entretanto, dissera ao outro que na próxima ocasião ele o faria engolir os insultos. Duarte bem sabia que acabara de proferir uma ofensa maior do que as que havia escutado. O taifeiro mordeu a isca e partiu para cima dele esbravejando:
— Olha aqui, Linguado, vais ter que me encarar é agora.
O maquinista conteve-se mais um pouco. Era necessário provocar mais raiva no outro até que chegasse ao ponto ideal de atacá-lo; até que ficasse totalmente sem controle emocional. Antegozando um ódio desmedido e represado cutucou quase sorrindo:
— Não brigo com mulheres. Muito menos com as que cozinham para mim. Tenho medo de ser envenenado.
Foi a gota d’água; um talonaço de faca parou na curva do braço de Duarte que rapidamente liberou toda a sua ira. Foram dois socos potentes direto no rosto do colega, que girou por cima de um corrimão para despencar de dois metros. Amontoou-se como um saco de areia no piso de ferro fraturando as duas pernas. Colegas passaram trabalho para deixá-lo imobilizado, pois daquele jeito ainda queria agredir o motorista. Era bom de briga, mas não o bastante para aquele homem de punhos de aço.

Dia seguinte Linguado apareceu a bordo trazendo pela mão um menino de cinco anos com os olhos muito azuis. Foi ao camarote que ocupara até o dia anterior e esvaziou o armário onde guardava as coisas. Ao passar pela escada de onde arremessara o copeiro proseou-se para o filho: “Foi daqui que joguei o canalha”.
Despedindo-se do Comandante perguntou pelo homem que surrara. Soube que estaria no gesso durante um mês e que seria remanejado para trabalhar no estaleiro da Empresa, pois aquela não era a primeira briga que arrumara. O Capitão lamentou a breve estada do maquinista sob seu comando e os dois se despediram. Do trapiche lançou um olhar de tristeza para a melhor embarcação que jamais trabalhara.

Linguado era um apelido que Duarte odiava porque tinha origem num detalhe físico. Quando ainda com dezessete anos envolvera-se num quebra-pau para defender o irmão contra onze e dali saiu com um aprofundamento de crânio na região frontal esquerda. Isso fez que o olho ficasse saltado da órbita. Não tratava ninguém por apelidos porque já ele sofria com isso. Era um homem reservado e metido com seu trabalho solitário nos porões. Era bem casado com uma mulher vinte anos mais jovem, o que também ensejava alguns gracejos dos desavisados. Além disso, era pai, razão pela qual enfrentava o mar pavoroso ainda que não soubesse nadar. Aspirava levar uma vida mais folgada em terra. Contudo, vivia embarcado, pois era onde ganhava mais. Ansiava novamente constituir família, já que era viúvo. Olhava para os dois filhos e lembrava-se dos outros dois da anterior união que haviam falecido com menos de cinco anos. Perdera uma família e queria valorizar a que possuía. Para tanto lutava com garra e não rejeitava empreitada por mais risco que houvesse de correr.

Desempregado, ficou aborrecido por uns dias. Em contrário, estava mais perto da família que tanto amava. Tinha confiança de que nem precisaria sair de casa a pedir emprego. Logo viriam convidá-lo para se integrar a alguma equipagem. Foi o que aconteceu. Em cinco dias tinha duas propostas; ou um barco de pesca, ou um cargueiro com estrutura de madeira de nome Lucimar, cujo armador era sediado em Santos. Conversando com a esposa decidiu-se pelo cargueiro. Viajou naquela mesma noite a bem de providenciar o embarque. O navio estava em reparos de estaleiro, mas isso não o impediu de começar a trabalhar. Havia muito a fazer nos dois motores e nos geradores de energia. Assim, manteve-se ocupado o tempo todo. Era dessa forma alienante que procurava sufocar uma raiva interna que não compreendia por que estava nele. Sua auto-estima era baixa demais para se relacionar sem brigar com as pessoas. Amava o conflito, o choque, a colisão, a desavença, as ameaças e não afiançava a paz, que acreditava ser a súplica de fracos, velhos e mulheres. Era um brigão nascido e incorrigível. Quanto mais tensão no ambiente, melhor. Não sabia viver no sossego. Desconfiava da paz, da harmonia entre as pessoas, da ausência de conflitos. Não acreditava que um ambiente tranqüilo ensejasse o respeito entre as pessoas. Para ele, paz era a existência de respeito e não a ausência de guerra. Postulava que o respeito era via de mão única, porquanto inútil esperá-lo espontaneamente de alguém. Ninguém respeitaria nada se não fosse compelido a fazê-lo ao talante da lei ou do trabuco. Essa quimera não existia nem nos mosteiros. Bradava que a natureza do ser humano era perversa e tinha de ser contida na marra. Ficava desconfiado quando estava tudo em paz, pois alguém estaria se aproveitando da situação. E com ironia lembrava que criança quieta ou está fazendo arte ou cocô. E lá ficava ele, perdido em pensamentos em cima dos motores.

Em oito dias estava navegando para o sul em pequena cabotagem, mas nunca o Lucimar chegaria lá. A barlavento de Florianópolis o navio enfrentou mau tempo e uma onda gigante o afundou com todos a bordo e mais uma carga de cento e vinte e duas toneladas de tubos de ferro fundido para rede de água. A notícia da tragédia noturna chegou aos ouvidos da esposa pela tarde. Dirigindo-se ao Cabo Submarino pediu confirmação do ocorrido. O radiotelegrafista confirmou o naufrágio no começo da madrugada. Então ela perguntou se havia uma lista de desaparecidos. O homem informou que todos a bordo haviam morrido. Ela negava-se a receber pêsames de parentes e amigos. De tanto ela insistir, o radiotelegrafista solicitou a última relação dos tripulantes do barco quando deixaram o porto de Itajaí. Nela não constava o nome do marido. Ali fora desembarcado e já estava navegando no Olímpico com destino ao porto de Santos, levando uma carga de tubos de ferro fundido para rede de água. Comentando com o Chefe de Máquinas, Duarte revelou não entender porque a mesma carga andava de um lado para outro. Só isso já era motivo de descontentamento interior.

Fora desembarcado do Lucimar para continuar vivo no Olímpico. Tudo porque se atracara em luta corporal com o taifeiro do Lucimar após ser admoestado na frente dos colegas. Com as mãos sujas de graxa se atrevera a tomar café numa branquíssima xícara de porcelana destinada aos oficiais e visitantes ao invés de fazê-lo num copo de vidro tosco, como era o costume a bordo do Lucimar. Continuava sem entender os regulamentos.
Foto: Acervo do Intituto Carl Hoepcke.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Conto


POR FAVOR, NÃO DESLIGUEM AS LUZES DO NATAL
Humberto Ilha
A julgar pelos enfeites dava mesmo para sentir a presença do espírito do natal todas as vezes que — de manhã — o homem passava defronte àquela casa. Imaginou que, se toda iluminada à noite, seria uma exposição de encantamento. Sentia uma trepidação ancestral na época que antecedia o natal. Talvez em razão de alguma lembrança do tempo em que ainda morava com a família. Talvez de uma reminiscência dos irmãos, quando se deliciava com a alegria da espera do natal. O dia do natal passava muito rápido e cheio de compromissos, de horários. O bom era esperar o dia de natal. Sonhar com o que ia acontecer. A chegada de um parente que estava longe. O cartão de boas festas do outro que não queria ser chamado de esquecido. De voltar a encontrar alguns que moravam fora e estavam pela cidade. De receber o décimo terceiro para desafogar um pouco a forca do banco. Das vitrines das lojas com motivos mais que próprios para mais vender. Do interior dos shoppings com aquela decoração profissional, muito embora vinda do frio metido ali de xereta.

Os anos vão passando e as pessoas vão querendo enfeitar suas casas com esses motivos natalinos. Mangueiras iluminadas desenhando pinheiros estranhos na frente dos condomínios. Árvores enrodilhadas pelas luzinhas tão simpáticas. Acende-apaga-acende-apaga, minha mãe adorava isso. Puxa o fio para cá, estica para lá a fieira iluminada, isola o desencapado para não dar choque. Os shoppings tão mais encantados por dentro. As casas tão mais bonitas por fora. O natal no sul vem meio de esguelha no simbolismo dos enfeites. Mas não há como negar-lhe a alegria proporcionada, as lembranças do que já passou e a esperança do que vem por aí. Quem decide enfeitar sua moradia com motivos festivos do natal do verão já vive o clima dentro do peito alegre.

O homem insistia em passar defronte àquela casa para nela ver alguma mensagem ainda não decifrada. Deixou de passar um dia e sentiu um aperto no coração quando já estava deitado. Desde então dava sempre um jeitinho de passar lá bem devagarzinho. Mesmo durante o dia, com as luzes apagadas, a decoração lhe completava algo que residia inacabado no peito. Se por fora era tão reluzente, por dentro aquela morada devia ser um brinco cintilante. Na pilha de Mario Quintana até diria: "Que triste os caminhos se não fora a mágica presença das luzes natalinas"
[1]. De mais a mais, por uma intuição secreta, afirmava que a escuridão era o sol dos mortos. "As ditaduras e as assombrações agem no breu da noite", recitava com os dedos já cruzados como querendo afastar tudo que viesse das sombras.

"Hoje passo lá e peço para entrar, para ficar ali um pouco com a família. Afinal, o espírito do natal é isso. A fraternidade entre as pessoas mesmo que não se conheçam". Foi lá e viu muita gente diante da casa. Deviam ser parentes se reencontrando, amigos se dando abraços e mãos. Viu até lágrimas sinceras. Desceu do carro e entrou como se fosse esperado. Antes lançou um olhar para a decoração externa e o jardim todo iluminado com as crianças correndo suas brincadeiras. Quando entrou percebeu o interior da casa também todo iluminado, mas não havia as risadas dos que estavam fora. "Estão celebrando novena", pensou. E parecia mesmo, porque estavam todos de mãos postas e ajoelhados no meio da sala. Quatro tochas ardendo grave e um capelão puxador de reza em latim (essa é boa, em latim); se bem memorizado, tanto mais fajuto. Então viu quem reinava ali dentro: um silêncio fúnebre que acolhia respostas jaculatórias de encomendação da alma de alguém cujo corpo jazia no meio de luzes de natal.

[1] “Que triste os caminhos se não fora a mágica presença das estrelas”. (Mário Quintana)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Crônica da noite





SOU, QUEM NÃO É?
Humberto Ilha
Paulo Ovídio tinha visível talento com as mulheres, que não o deixavam em paz. Abandonava os cursos que iniciava por falta de freqüência às aulas. Inteligente e galanteador, isso o tornava querido de todos. Andava na moda, em se tratando de roupas e carros. Lembro das respeitáveis cuecas Ban-tan; duráveis, sempre brancas e confortáveis, mas chamadas de samba-canção pelo contraposto às do estilo Zorba, o Grego. Foi só Anthony Quinn aparecer no filme em traje sumário para que o brasileiro descobrisse que usava um forro medieval a cobrir-lhe as partes. PO, ao que eu saiba, foi o primeiro da minha geração a se deixar ver usando aquela minúscula calcinha, como chamávamos a moderna peça. De primeiro fizemos um estardalhaço com ele. Depois todos aderimos ao novo tipo de roupa de baixo. E também não era mais aquela calcinha vitoriana. Era esquisita, confortável e as mulheres aprovavam, mormente se nelas houvesse alguma mensagem ou estampa homenageando o amor.

Meu amigo era um romântico cheio de dúvidas existenciais. Sonhava com um lugar de fantasia onde: "Lá sou amigo do rei... Lá tenho a mulher que eu quero... Na cama que escolherei".
[1] Quantas vezes agüentei o mau humor dele com ele mesmo? Dizia-se um homem de cabeça aberta, mas um dia, chorando lágrimas sinceras, confessou-me um segredo que não conseguia guardar. Estava tendo um caso com a esposa de um colega de serviço. A sentença era dele mesmo: “sou um patife”. Não adiantava civilizar o delito; sempre tinha uma pergunta para sublinhar sua canalhice: “aonde é que vamos parar? O mundo está perdido pela devassidão e pela busca do prazer individual”. Dizia mais: “eu sabia que fazer uma coisa dessa era errado, mas como fui fazê-lo? Sou mesmo um canalha”. E eu, aderindo, para aliviar-lhe a culpa: “Quem não é?”

Depois, fui saber, a safada abandonou o marido tão correto e manso; caiu na vida. Passou a freqüentar a boate Chatanooga, garantindo clientes nunca vistos por ali. Depois foi para o nordeste, vindo a morrer nas mãos de um cafetão. Paulo nunca aceitou isso sem sofrimento. Visitava toda sexta-feira o inferninho onde ela havia brilhado na esperança de mitigar-lhe a ausência. Porque tinha propensão para o bem, dei um jeito de encaminhá-lo ao capelão do Hospital Militar que amenizou um pouco a dor dos pregos que se permitia cravar na carne.

Era um homem difícil de perdoar-se. Quando aparecia na boate para ter uma noite de alegria o que menos conseguia era ficar alegre. Sentia dó das vendidas e lá vinha a depressão. Então mandava forrar a mesa com cerveja para se refazer do ódio que sentia de si próprio. Depois, ficar embriagado e virar romântico. Na seqüência, virar macho. Queria a melhor menina do salão e encarava quem se atravessasse no caminho.

Naquela sexta, após assistir a uma apresentação de sapateado de um corpo de baile espanhol no Teatro Guaíra, resolvi passar na boate, reduto certo do Paulo àquelas horas. Entrei e senti o ambiente pesado. Procurei PO e o encontrei embriagado no meio das garrafas. Ele estava com o rosto machucado. A camisa aberta no peito deixava à mostra o abdome malhado cingido por moderna cuequinha. Quando me viu, abriu os braços e começou a chorar. Abracei-o e chorei junto, pois era uma lástima vê-lo daquele jeito. De fato ele era um amigo bom. Mas é nas ruas que a verdade mora. E a verdade é feia. E com ela moram os ruins e os bons. Convidei-o para terminar a noitada por ali mesmo, mas não:
— Se eu levantar desta cadeira vou apanhar muito mais.
— De quem?
— Do bigode atrás de mim. Disse isso apontando com o dedo mínimo o espelho a sua frente. Disfarcei e virei o acento da banqueta para ver melhor. Era um homem forte, um Golias medonho, e não vi bebida sobre a mesa. Falei que precisava ir ao banheiro e procurei o segurança da casa, que me alertou:
— O Paulo provocou esse gaúcho e já apanhou três vezes. Quando tudo parece que vai se acalmar ele fica na frente desse armário e mostra o que está escrito naquela cueca infame piscando-se todo e mandando-lhe beijinhos com o biquinho dos lábios. O homem está armado e todos aqui estamos com medo. Mas o gigante não está nem aí para nós. Quer bater mais. Agora que você chegou, vou lhe dar uma sugestão: cai fora. Deixa esse debochado aí que ele sabe se virar.
— Quero um jeito de tirá-lo daqui em paz.
— O Paulo não quer paz; quer briga e vai te envolver nisso. Portanto, cai fora já.

O funcionário tinha razão. Meu amigo era um galinho de briga sarcástico. Mesmo ensangüentado, miudinho, queria ir para cima do rival e zombar da cara dele. Mas era só um galinho, coitado. Como eu o abandonaria naquela situação? Nisso escutamos estardalhaços de quebra-pau. Corremos para o salão e vimos Paulo Ovídio no meio de uma luta injusta. Pensei em pedir trégua em nome da inferioridade física. Mas não deu tempo. PO foi esmurrado tão forte no rosto que rodopiou para se aninhar com grande estrondo por entre os pés das cadeiras vazias no canto do salão. E por lá ficou não se levantando mais. Então o homem chegou perto e viu que ele estava nocauteado. Pagou a conta e saiu. Para poder chegar até onde ele estava tive de arredar as cadeiras; vi que estava de fato estroçado. Chamei por ele diversas vezes e não respondeu. De repente abriu os olhos bem pouquinho com um sorriso sacana na cara inchada. Viu que estávamos somente nós dois e me disse:
— Fica quieto e faz de conta que eu estou desmaiado.
— Levanta que o muro foi embora.
— E a conta?
— Você paga, claro.
— Então me deixa ficar dormindo aqui.
— Paulo Ovídio, você é um cachorro sem vergonha.
— Sou, quem não é? Ih, Ih, Ih...

Disse isso já mostrando o recado na cuequinha: "Amo você".


[1] Trecho de "Vou-me Embora pra Pasárgada", de Manuel Bandeira.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Deu na rádio.


SÓ O QUE FALTAVA

Humberto Ilha
Não era mulher de esfregar os cotovelos no parapeito da janela da frente para botar fé no que se passava na rua. Mas os palavrões dos dois homens já estavam passando da conta para que não lhe chamasse a atenção. No início não entendeu porque tanta irritação dos dois diante de uma velha Kombi enguiçada. Foi entender quando os dois abandonaram o veículo e se foram de ônibus para a Capital, distante uns dez quilômetros. Única testemunha do veículo abandonado, a mulher ficou debruçada na janela assuntando tudo o que dizia respeito àquela cena tão incomum, talvez para se revestir de primeira testemunha de um feito que sentia não ia acabar bem. O pobre carro era velho além da conta; fora deixado com as portas abertas; pertencia ao asilo e era usado para o transporte de algo que não era do bem. Teve ímpeto de ir lá ver de perto o insólito espólio da rua, mas achou melhor observar no que ia dar a curiosidade das crianças que estavam saindo da escola. Um por um chegando e xeretando o interior da Kombi. Era olhar e sair em corrida desembestada. Uns deixavam o cartapácio no chão; outros saiam gritando de toda goela em direção de casa; outros mais branqueavam e saiam de olhos arregalados; houve um menino que desenhou o sinal da cruz no peitinho e começou a vomitar. O que é; o que não é? Com certeza era a carga da Kombi. A mulher abandonou a janela e foi conferir a causa de tanto pavor. Não era para menos; as crianças jamais esqueceriam o cenário macabro de cinco cadáveres empilhados no chão do veículo abandonado. Nem as crianças e nem ela própria. Foi direto avisar o seu Argeu vereador que era perto dali; pois nem ele tão lanhado da vida encarou aquilo sem se assombrar. Fechou a cara e mandou um empregado chamar o cabo Pedroso. Mas quem apareceu do nada foi o Manolo da Rádio. Examinou a cena e decidiu faturar a notícia que lhe caíra no colo de graça; retirou do porta-malas da Mercury os fones de ouvido, a fonte portátil e o microfone com antena para dar o furo sem demora. A mulher da janela custou a crer que Manolo, que era amante da amante do Balduino Codorna, ia botar o acontecido no ar. Sintonizou o rádio e começou a escutar a voz do repórter dando a notícia do abandono não de uma Kombi velha enguiçada no lugar chamado Santa Filomena, mas de cinco corpos vindos do asilo; uma falta de respeito. Dizia que era "um absurdo aqueles cadáveres abandonados; não era para ter ali um espetáculo tão insólito... E tinha".
A mulher na janela sacou que Manolo estava se divertindo com aquilo tudo, pois no que transmitia a notícia já declinava o nome da amante na camuflagem de um palavreado poético. Porque poeta ele era, isso todo mundo reconhecia. Nascido no sul com passagem pela antiga capital federal, nos anos dourados ele emprestou sua voz de locutor para declamar versos de poetas consagrados. Muitas vezes dava um jeito de encaixar uns versos de sua lavra. Mas isso era só quando era muito solicitado, pois não tinha muita fé no próprio taco. E recriminava a irresponsabilidade do asilo; que "aquilo era uma vergonha"; que "ia entrar com um pedido de destituição do governador", de quem era adversário político. Falava isso tudo com um sorriso nos lábios, mas sua voz na rádio não o demonstrava; a mulher tinha disso certeza porque ao mesmo tempo em que o via diante de sua janela o escutava no rádio da sala. Percebendo-lhe a intenção zombeteira, a mulher da janela procurou entre as pessoas que se acotovelavam ao redor da Kombi ninguém menos que a amada do radialista e o amante da amada; seu Balduino Codorna. Os três quase se trombavam naquela muvuca, mas faziam que não se conheciam. Como eram descarados; o que não faziam por amor...

domingo, 3 de agosto de 2008

Crônica da Rodovia da Morte




PRECISO FALAR ALGO FORTE
Humberto Ilha
A campanha pela duplicação da BR-101 em Santa Catarina é louvável em todos os aspectos, menos no foco. A bandeira mais desfraldada pelos populares é "a morte na rodovia”. Todo santo dia morre alguém que ousa encarar a megera indomada. E é aqui que peço licença para falar algo mais forte. Esse argumento jamais vai tirar o sono dos burocratas.
Conheço um padre que, ao encomendar um defunto, começa dizendo: “Irmãos, este corpo que aqui está, nós temos que sepultá-lo imediatamente”. Nada mais certo. Primeiro porque isso tira o foco do corpo físico do morto para valorizar-lhe a alma indestrutível (de acordo com a fé geral). E segundo, porque de verdade, não resta nada mais a fazer. Para as autoridades, quem morre precisa é de um bom enterro. Ao invés de mostrarmos as cruzes dos nossos sepultados, devemos enchê-los de fotos e filmes dos que sobreviveram aos acidentes. E essas pessoas são mais de noventa por cento. Uns estão até hoje em hospitais. Outros estão mutilados. Outros viraram alcoólatras, depressivos e desesperados. E quanto está custando isso tudo?
Perceberam agora quão forte estou falando? É de assustar. Se para nós uma vida não tem preço, para os burocratas o que tem preço é o acidentado que teima em viver. Esse incomoda e se transforma num centro de custos que sangra o Tesouro. E se incomoda, vamos mudar o foco da nossa campanha já. E o morto? Só nos resta sepultá-lo no silêncio da nossa dor, para que não acorde quem descansa no Planalto.