terça-feira, 7 de julho de 2009

LAURO PENTEADO

Humberto Ilha

Desde que fora morar no bairro, os vizinhos comentavam sobre a vida particular dele. Rolavam umas ofensas à meia boca entre Arílio e Anselmo, solteirões e fofoqueiros.
— Esse Lauro não me engana: é um baita maricão.
— Tem o cabelo e as unhas bem cuidadas para um pintor de paredes, mas pode ser que seja apenas um corno manso.
Era impossível não notá-lo em cima daquela bicicleta ornamentada. Além disso, o homem era o mestre do pedal. Tinha destreza tanto para a velocidade, quanto para desfilar. Sabia fazer as manobras de palco de circo. Com a bicicleta parada plantava bananeira e passava por dentro do quadro. Pedalava de costas; depois era a vez de pedalar com as mãos. Andava aos pulos feito um canguru e terminava a apresentação pedalando em uma só roda como um macaco bem treinado.
Tudo ali falava em favor do capricho do proprietário, que era magrinho como o próprio veículo. Jovem puro, mas, diziam de novo, levava chifre da patroa. Pelo jeito de se enturmar ou não sabia de nada ou fingia não saber, porque levando tanto guampaço havia de ter alguma vergonha de aparecer na rua. A esposa tinha ciúme dele com aquele petrecho engalanado. Desejava — dizia — ter a metade da atenção que ele dava à condução. A penteadeira dela tinha menos adornos que a rival bicicleta. Enfeites como flâmulas de time, par de espelhos, dupla sineta, farol com dínamo, pára-lamas, olho de gato, selim estofado, guidão com barbicachos até os joelhos, deixavam todos admirando aquele homem bom que tinha um sonho: possuir uma “lombreta”.
Se ele era observado pelos vizinhos pelos motivos mais invejosos, com a mesma intensidade ele próprio admirava o estafeta da Marinha quando o via pilotando a lambreta da viúva, que era como ele chamava a pátria amada Brasil. O marinheiro era um cearense que estava prestes a ser promovido. Os vizinhos pediam-lhe para dar uma voltinha, mas ele jamais emprestaria a cinzenta. O máximo que permitia era deixar que olhassem de perto o motociclo novinho em folha.
Num final de tarde de verão o estafeta parou para assistir futebol entre os vizinhos. Como era bom goleiro, foi convidado. Não resistiu e se meteu no meio da trave para estancar a goleada. Nisso aparece Laurinho junto à lambreta que tanto amava. Maurício, o marujo, estava tão focado no jogo que não viu o namoro do pintor. Começou tirando um pozinho inexistente no espelho retrovisor. Depois tirou o veículo do descanso para poder sentir seu real peso. Empurrou para frente e depois para trás. Escutou o chacoalhar da gasolina no tanque. Sentou no banco confortável e sentiu a diferença do que é estar no comando de um veículo motorizado. Quem pudesse andar para todos os lugares sem precisar pedalar, se cansar. Então meteu o pé com vontade no pedal de arranque só para sentir o tremor do bicho nos braços. Mas o marinheiro tinha deixado a marcha engatada. Foi como mexer em gaveta de lacraia. A lambreta deu um salto para frente igual um galão de cavalo xucro, assumindo o comando da desgraceira com o pintor assombrado em seu dorso corcoveante.
— Ponto-morto... Ponto-morto — suplicava já de mãos postas o marinheiro.
Mas Lauro não escutava nada e parece ter mirado em cima de Arílio, que nada entendia do que se estava passando porque pouco enxergava sem o par de óculos. Mas com os óculos em cima do nariz sabia cobiçar a mulher do outro. Assim mesmo decidiu pegar a lambreta à unha. A colisão foi tão forte que o arremessou de encontro à patente do seu Gercino, pai do presidente do Figueirense. Depois pareceu que o veículo escolheu o Anselmo para brincar de pegar. O rapaz saiu a toda na frente da lambreta até dar-lhe um drible magnífico feito um toureador. Na manobra escorregou e caiu. Quando se pôs de pé a mula-sem-cabeça já vinha em sua direção. Nem deu tempo de comemorar o olé. O veículo juntou Anselmo pelo suspensório e jogou-o para cima com raiva, parece. Era como se fora um zebu do inferno se vingando do matador. Camoci, a cachorra companheira, cheirou Anselmo caído e atacou a lambreta. Queria morder os pneus do desenfreado veículo. A essa altura Lauro já estava com os olhos fechados como querendo se proteger de cada esbarrão. Mais parecia um anjo montado num porco. E nisso não viu que o estafeta colocou-se na frente querendo parar a moto. A trombada foi mais feia que indigestão de torresmo. Lauro por certo se perguntava por que foi dar forma ao sonho de possuir uma lambretta. Bem que poderia ter ficado alisando sua bicicleta. Assim não se envolveria numa confusão daquelas. Estava pagando o preço por ousar sonhar. Do chão ainda viu o motociclo desgovernado, agarrado à unha pelo marinheiro, indo se estatelar junto à cerca de cedrinho do seu Hélio.
Camoci abandonou a perseguição e meteu-se a ganir numa desabalada correria em direção à casa. Pareceu ter visto algo assombroso. Era o novilho Diamante do seu Mané Fenca todo alucinado. Livre da corda queria espetar as costas do pintor jogado no meio do campinho de futebol. Lauro mais parecia um ferro retorcido. Sabia que um touro de cola para cima era sinal de perigo. Que um bicho daqueles, com a cabeça baixa e armado com aquelas guampas, era para ser respeitado pelo estrago que sabia fazer. Ele na frente e o novilho insano atrás decretou que gritasse desesperado:
— Tira este bicho daqui.
De repente Diamante parou o intento raivento. A mulher de Lauro apareceu agarrada ao rabo do novilho. Deu um jeito e enrolou o braço na cauda do bicho. O animal queria se soltar das mãos dela. Curvava-se todo para guampear quem lhe segurava a cola. Mas ela, hábil e firme, mantinha-se atrás do bicho com movimentos ágeis de um toureador. Naquele momento Lauro só não tomou chifrada porque ela resistiu e não soltou o gracioso rabo, que terminava em chumaço negro enfeitando o vistoso Diamante.