sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

LITERATURA (Deu no DC)

Duas feras das letras na Barca dos Livros
A Barca dos Livros de hoje recebe dois grandes nomes das letras catarinense. Sérgio da Costa Ramos e Flávio José Cardozo, autores de centenas de livros, vão falar sobre a crônica, o estilo de texto escrito de forma livre e pessoal, que aborda assuntos da atualidade nos mais variados temas como política, artes, esportes, cotidiano, entre outros. A edição A Arte de Escrever Crônicas tem entrada franca e começa às 20h, na Rua Senador Ivo D’Aquino, 103 (em frente aos trapiches), na Lagoa da Conceição, em Florianópolis.Os dois escritores lançaram juntos recentemente a obra Duas Violas Arteiras. Ambos dividiram páginas espelhadas por cerca de um ano no Diário Catarinense, jornal no qual Sérgio possui uma coluna diária. Eles aproveitaram a “vizinhança” para trocar alguns provocações amigáveis, crônicas travessas e molecagens que agora estão reunidas neste livro. Esse duelo literário poderá ser conferido também neste bate-papo gostoso de dois escritores que transformam um dia simples numa bela, engraçada, inteligente e interessante crônica. É a maneira que eles encontraram de ver a vida com outros olhos.Informações pelo fone (48) 3879-3208.
Fonte: Diário Catarinense edição de 23 de janeiro de 2009.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

MAU PRESSÁGIO

Humberto Ilha
Era urgente ter uma conversa séria com a mãe. Arãozinho não pretendia estudar para ser padre. E também não queria mais ser coroinha da Igreja. Era-lhe insuportável ver tantos coleguinhas debocharem e cuspirem na sua cruz. Um dia enfrentou a velha de homem para homem: ia acabar com o calvário da sua amargurada vida. Nem bem havia começado a argumentar quando ela o interrompeu para repetir a ladainha de sempre: que o rapaz fora consagrado à vida sacerdotal desde quando resgatado do mar após dia inteiro de busca e suplício da família.
— Eu nem me lembro disso.
— Não blasfema, insolente.
— Quem mandou a senhora fazer uma promessa ridícula dessas.
Foi pior ter aberto o diálogo com a professora. Dela escutou que era possuidor de méritos proféticos; e de fato era mesmo. O menino nem sabia como essas coisas aconteciam. O entendimento daquilo, nem o mais letrado desenredava. Era complicado explicar como o garoto adivinhava o futuro e encontrava coisas escondidas. Eram fenômenos que aconteciam quando menos esperava. Vinham do nada e a qualquer momento. De repente sentia mudança no ambiente ou um desconforto passageiro. Podia contar, algo iria acontecer. A mãe, que não perdia um lance da vida do rapaz, tinha lá suas razões para alicerçar a fé inabalável na carreira religiosa do filho.
— Se é para viver com esses dons — dizia —, então que seja com as vestes de um sacerdote.

A maior preocupação de Arãozinho, naqueles dias, eram os colegas. Muito difícil ficar escutando um xingatório do tipo: "carola". Ainda que revidasse baixinho: “excomungado”, escutava em seguida: "papa hóstia". Então replicava com maior ofensa: “tua mãe não é séria”. Era terrível escutar: "sacristão", para arrematar com ódio: "teu pai é um corno". Só podia responder às provocações da matilha de forma muito tímida.

Um dia, Corpus Christi, estando perfilado para acompanhar a procissão carregando um incensório improvisado, notou a presença da cachorrada antegozando a teatral passagem pela frente deles. "Isso não vai prestar" — cismou pessimista; — "ninguém merece tanto enxofre". Olhou para o sacerdote que estava pálido. Era inverno, mas o homem suava no rosto. "Que lhe teria acontecido?" Pensou em pedir-lhe ajuda, mas parecia que o padre tinha visto fantasma. Ocorreu-lhe que o religioso devia ter muita fé para estar ali tão doente assim. Diante de tamanha pressão, decidiu abandonar o cortejo mentindo.
— Padre, tenho de ir à patente agora.
— Nada de banheiro. Se fosse um desmaio eu aceitaria, mas titica de jeito nenhum.
E o bondoso homem rompeu a marcha sem dar chance de reação ao menino. Problema maior era o dele, padre. De manhãzinha constatara que haviam roubado diversos utensílios sacros da igreja. Nem havia dado tempo de registrar queixa na delegacia de polícia. Isso ficaria para depois. Agora, o importante e mais urgente era dar conta da cerimônia.

Foi só Arãozinho passar pelos meninos e começou a escutar os elogios. E o pior, a corja vinha acompanhando a cerimônia pertinho dele, todos no gargarejo da primeira fila. Cabeça baixa, trazia o ar compungido de quem estava diante do próprio Deus. Tinha que dar essa impressão para a mãe que a tudo acompanhava. Quem primeiro pisava no tapete de flores era o inefável Corpo de Deus através dos pés do sacerdote, que ali era simples assistente ritualístico — conforme pregava. Esse ambiente de encantamento fascinava o garoto. Contudo seus coleguinhas estavam longe de entenderem tal situação no mesmo grau. Achava que as pessoas não se permitiam ofuscar pela presença de Deus. Por isso os coleguinhas não respeitavam o papel que ele estava exercendo naquele momento. Diante disso não se achava com suficiente vocação para a vida religiosa, pois tinha vontade de esganar um por um.

Quando o acompanhamento chegou defronte ao armazém Casemiro Rosa parou para uma estação ritualística. O incenso fumegava além do combinado. O sacerdote fazia sinais desesperados para o pequeno ajudante abaixar o volume do fumo. O garoto não sabia manusear aquele turíbulo todo amassado e velho. Quanto menos fumaça o padre pedia, mais o braseiro consumia o pó do incenso. Arãozinho resolveu abafar o turíbulo fumegante com a própria batina na ânsia de atender a ordem do apavorado religioso. Foi pior, não suportando o calor da brasa entre as mãos juvenis, acabou por liberar o medonho fumacê. O padre quase chorava de raiva. O menino tentou balançar com velocidade a peça repositória das essências aromáticas. Até resolvia um pouco, mas quando parava o movimento, por cansaço, o fumo era ainda maior. Ocorreu-lhe uma idéia que, no improviso, poderia funcionar. Começou a fazer círculos com o incensório como os de uma roda gigante. Fez um ar de riso, porque funcionou bem. Era-lhe menos cansativo, eficiente e divertido. Mas o revés da sorte mandou-lhe recado: a peça ritual, que em muito se parecia com uma chaleira de chimarrão, desprendeu-se da correntinha e foi cair com grande estrondo em cima do armazém. Dois quilos de puro ferro fumegante. Havia fiéis que, do final do cortejo, juravam ter tido uma visão de arrebatamento espiritual, tamanha a esteira de fumaça, ruído e brilho que produziu o lançamento daquele meteoro esotérico. Sem ação diante daquela visão quase profética, alguns se ajoelharam contritos e esperaram pelo pior. Era coisa de Deus ou do diabo? Isso todos iriam ver em seguida.

O impacto fez um rombo no telhado e um vulcão ficou ativo dentro do sótão do velho prédio. O buraco fumegava semelhante chaminé e dele saiu um homem fumarento com um saco cheio de coisas às costas tilintando desordenadamente. Correria na procissão; "desçam o homem do telhado". Quem era, quem não era? E o turíbulo, como fica? Logo depois, e graças à polícia, o equipamento litúrgico já estava incorporado ao cortejo, mais amarrotado e com o pito já apagado.

Arãozinho, contudo, não estava mais ali. O sermão ia ser grande. Então começou a arrumar as roupas na mochila para ir para a casa da avó na Terra Fraca. Não deu tempo. Porta adentro entrou a mãe, que foi perguntando:
— Arão, como fizeste aquilo?
— Aquilo o quê?
— Incrível, hás de ser mesmo um padre. Quem, senão um iluminado, iria adivinhar que o ladrão da igreja estava escondido no sótão do armazém?
— Oh não! Por que me persegues, encosto?

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

SAI DESSA!

Humberto Ilha
Não posso deixar de falar nas coisas que ouço. Algumas, de tão cabeludas, me deixam confuso e sem ação para rebater as declarações de descrença que sou obrigado a ouvir. O que vou relatar aconteceu na subida da Serra. Zé Amaro adoecia grave e não batia a caçoleta. Naquele vai-não-vai há um mês, a teimosia em permanecer vivo era desaprovação geral. Há tempo andava com aquele ar de quem morre em breve, mas morrer mesmo que é bom ele não morria. Orgulhoso empedernido que a todos contrariava e aborrecia, fincava pé nas convicções inarredáveis e dali não se movia. Além disso, era metido a valentão; mas isso era só de boca. Coitado, talvez quisesse viver mais um pouco além do pouco. Porque a vida, mesmo longa, é muito curta. Homem de muitos pecados e pouca água benta, maltratava dona Alfreda e ainda vivia de caçoada com as outras. Além de avô amargo era um atleta dos abismos da vida. Assim fazia para lá ficar enquanto concebia planos inconfessáveis. Havia descoberto que devia praticar mais a beira do abismo. Ousar mais, ir lá onde o medo tritura a coragem. Sem freqüentar o limite, sem esgarçar a dor, não conheceria a substância de uma vida insolente diante do medo. Para, quando aquela hora chegar, caminhar de olhos fechados até o precipício que o tragará. Porque a morte é a morte e a quem a terra entulhar, nunca mais o largará.
Com os anos a patroa havia acumulado muitas contrariedades advindas dele. Agora, diante da morte do marido, lembrava da brigalhada que ele aprontara por conta de um zelo em vida. Ela havia comprado dois terrenos no cemitério. Um para ele e outro para ela. O agora moribundo não concordara ser enterrado num só lote, se um dia — claro — largasse a casca. Os que ficassem haveriam de sepultá-lo sozinho e no meio das duas vagas que ela comprara. Tinha mal-morrer e mal-dormir. Quantas noites ele se atravessara na cama deixando-a de fora? Nos finais de semana era certo acontecer. Mamava misturado de conhaque, vinho e funcho para depois ficar entregue aos urubus. Ela que não deixava, embora dele colhesse estranha gratidão: "Vá dormir no quartinho, nega". Para não levar adiante o rolo, ia concordando. Fosse ela encarregada de enterrá-lo o serviço seria feito como planejado, um no ladinho do outro. Se contrário, que ele fizesse como quisesse, pois já estava morta mesmo. Não queria se ocupar do furdunço antes da hora. Prática, Alfreda alinhava os ouvidos no vento e nada mais entrava ali que não quisesse. Antevendo o velho esticar o pernil já dava mostras de sentir os percalços da viuvez. Quanto desejou isso a ele, o luto. Quanto desejou morrer antes do companheiro; pelo menos ia descansar. Mas parece que a vez era do teimoso. Ele é que ia para a sombra.
Diante da prolonga, a torcida pressionava e bradava dolorosas nênias em silêncio: "esse velho que não morre; basta desgraçado; vai em paz, estrume". Em verdade, desde que adoecera e ficara grave, não mais se ouvia em casa os rugidos de luta que sabia produzir. Não se escutava mais os gritos ferozes de ameaças e nem seus queixumes tristes. Muito menos mais se ouvia o estalar do ameaçador relho de couro cru no cano da bota preta. Até um fantasma vestido de mortalha roxa deixou de aparecer na sala. Daí que seu Régis, um barbeiro-farmacêutico, sugeriu se lhe desse boa colher de graspa. "Mas isso só com a ordem de dona Alfreda" — que estava ocupada na cozinha. Chamada, fez o que tinha de fazer: trancou o nariz do marido e forçou o líquido descer goela abaixo. A dose fora excessiva, disseram depois. O homem branqueou, fixou os olhos na esposa, careteou um pouco e defuntou. Era o que faltava para o desafogo do entorno doméstico, que bem não era uma família e sim um ajuntamento, tamanho o desprezo pelo extinto, agora sem mais proveito. Quanto alívio lhes trouxera aquela unção tão incomum. Cochichavam que o derradeiro trago dera-lhe o descanso da sua amotinada alma.
Haviam de tomar conta do morto. Ninguém melhor que o compadre. "Chama o cabo Dourado" — um corneteiro do quartel e cúmplice das boas farras do finado. Quase um profissional do luto, aos que partiam se oferecia a dar banho, vestir o terno, amarrar o queixo bem amarrado, tamponar tudo, deitar na essa, juntar as mãos, atar os pés, acender as duas tochas, encomendar o corpo, ler trecho próprio da bíblia, providenciar a certidão, combinar o enterro e executar Silêncio junto à cova. Sensível, não conseguia tocar a música sem que lhe escorresse sentidas lágrimas pelo rosto. Era raro fazer, mas, considerando o renome do falecido, finalizava o concerto com o terceiro movimento da Marcha Fúnebre de Chopin. Ali ele se perdia nos caminhos da arte incompreendida. Alguns achavam aquilo luminoso, mas a maioria não gostava e ia dando o fora diante do agouro saído daquela trombeta do anjo vingador. Tudo isso o velho cabo fazia como se procurador do além. "No meu fraco pensar" — dizia — "um sepultamento é um ato comunitário para recomendar a alma a receber a graça divina. Para harmonizar — pela mediação da cabocla Jurema — o ambiente de dor que o finado deixa. Para consolar a família a receber os desejos de leve luto. Um velório seguido de sepultamento" — ensinava — "é desafio que dura o dia inteiro". Concluía: "enterrar com dignidade um e consolar os parentes que um dia também irão, pois disso ninguém escapa". Havia um cunhado metido ali que resmungava muito; fazia tempo que não aparecia. Naquele dia apareceu com um crucifixo acorrentado no pescoço, o agourento, para recomendar que do morto nada mais se falasse. "O que ele fez, está feito; a conferência dele agora é com Aquele-lá-de-cima; e tem que enterrar logo o corpo antes que comece a feder".
A vizinhança começou a chegar e dona Alfreda botou de lado o desânimo para providenciar assistência aos amigos e parentes que vinham de lugares distantes para prestar tributos ao finado. Café preto, rosca de polvilho, pão de casa, geléia e licor de butiá. Tão rápido preparou a mesa que se desconfiava que havia preparado tudo antes do marido morrer. Vez em quando algum parente vinha beijar a testa do branco defunto. A reza do terço não parou até a meia-noite, quando a maioria foi dormir.
Dia amanheceu, galaria cantando há muito, e a tampa do caixão já ameaçadora encostada na parede da sala. Chegaram mais pessoas e mais tumulto. Mas o corneteiro botava ordem em tudo. Conhecia o ritual mais que ninguém. Marcado para as onze horas, resolveu que o sepultamento havia de ser antecipado, pois o ribombo de trovoada vindo dos lados do Morro Grande deixava todos assustados. Trovão vindo daquelas bandas era certeza de muita água. Com sorte daria tempo para o procedimento. "Enterro debaixo de chuva era uma coisa desventurada" — dizia.
O cortejo seguia apressado com o caixão carregado por seis homens. Dois mais traziam os cavaletes de descanso. Mas havia uma ponte no meio do caminho. No meio do caminho havia uma ponte que dava susto nas pessoas. A bem dizer não era sequer um pontilhão e sim uma pinguela improvisada, uma estiva. Quando chegaram ali já chovia um bocado. Tudo liso, o chão, as alças da urna, a ponte, os sapatos. A segurar a caixa mortuária, somente dois homens iam transpor a carga: um na cabeça e outro nos pés. Um peso enorme daqueles tinha que ser para dois dos bons; acostumados a fazer força.
E dê-lhe chuva e mais chuva. O riacho enchia rápido. Um dos que seguravam a urna — Mané Caetano, que também atendia por Graxaim — usava sandálias de dedos e se equilibrava andando de costas em cima da pinguela. Ninguém vai de retro calçando sandálias sem que arrume confusão. É no que dá: perdeu o calçado, parou para enfiar o pé e não mais se reachou. O da outra ponta — um tal de Quiça — queria andar e empurrar. Daí que o de costas corrupiou no tronco liso e levou todos para dentro do bueiro. A caixa escura bateu forte no passadiço e caiu na enxurrada. O defunto foi de borco para o lado oposto. Efeito dominó, um foi se agarrando no outro e todos para dentro do rio. Não foram poucos os esbarrões, cabeçadas, gritos e encontrões. Eunice, moça com nome a zelar, caiu focinhada na lama aparecendo-lhe a calcinha de saca branca que a mãe lhe fizera. Recompôs-se rápido, mas deu para ver a logomarca: Farinha de Trigo Aymoré, Marca Registrada. Isso e mais a estampa de um indomável silvícola com uma pena atravessada no nariz. Posteriormente, quando ela aparecia nas domingueiras, como zombaria, os rapazes passavam o dedo indicador entre o nariz e o bigode lembrando o adorno indígena. Não suportou; de tão humilhada foi morar na capital. Isso ela não merecia, pois que era mulher de valor, com grande capacidade de suportar situações-limite, com paixão de viver. Provou-o ao longo de toda sua honrada vida. Era dessas pintadas com tintas fortes.
Salva esse, puxa aquele, empurra pra cima o outro, retira o defunto. "Onde está o morto?" A torrente levou. Os homens no rio de transbordo a mergulhar, a procurar o corpo. Duvidoso de crer, mas o falecido conseguiu ficar engalhado por um braço na margem. Fosse pelos acompanhantes, Zé Amaro se perderia naquela inundação. Parece que seu instinto de preservação ainda estava bem vivo. E com isso acabou salvando a cerimônia. Aparece novamente o cabo Dourado, deita o homem no ataúde e prega a tampa com uns pregos enormes ruminando: "Fica-te aí, encrenqueiro". Virando-se para o coveiro: "toca a sepultar de uma vez, porque este negado não está cooperando".
Anos depois a esposa é que se foi. Então começaram a preparar outra cova ao lado da sepultura do marido. Dourado era homem acostumado com os assombros daqui e do além, mas naquele dia por pouco ele também não foi dançar nas nuvens. Com os olhos fixos dentro do buraco, mastigando incerteza, viu que a carcaça de Zé Amaro estava atravessada no terreno ocupando duas vagas, bem do jeito como queria. Ruminou com meio sorriso: "Velho teimoso!"

sábado, 3 de janeiro de 2009

SANTA ANA

Humberto Ilha
Viera do sul e lá deixara a família, até que arranjasse local de morar. Longe da patroa, começou a procurar sarna. Não devia; esposas que amam e se mantêm decentes deviam merecer blindagem contra traição; e ainda por cima, dois filhos de encanto. Tinha tudo o que um homem queria para ser feliz. Mas parece que isso não lhe bastava, o faminto. Queria, sabe-se lá por que, dar a mão ao capeta e caminhar de olhos fechados até a beira do buraco que, impiedoso, tragá-lo-ia. Sabia disso, mas ia chafurdar na lama assim mesmo, o excomungado.

Na hora de sair ficava arrebitando o bigode já grisalho diante do espelho. Touceira tão vasta que passara da corpulência permitida pelo regulamento militar, em formato e dimensão. Tanto zelo vinha-lhe da convicção de um finado reúno que não dispensara tratamento menor ao conjunto barba e bigode, até ganhar fama de sedutor nos salões nobres da nova República que acabara de proclamar. No cofiar de ornamento tão perfumado vinha-lhe ainda a certeza de que amealhara mais alegria que dor de cabeça.

Há dias elegera um destino certo de sedução: o cinema. Minto: a moça do cinema. Depois de muito subir, descer, espreitar, rondar e pesar cravou a mira no único cinema da cidade. Fizera toda essa aproximação como um franco atirador em missão. Nisso era competente: mandar bala nos outros. Tanto que ensinava os companheiros recrutas. Mas nunca dizia que era para atirar nas pessoas; não, era para atirar no alvo. Decerto era para se embromar, pois jamais estivera numa situação real de confronto armado. Isso lhe passava pela cabeça, mas muito de longe. Enquanto o inimigo não aparecia, ele queria rosetar. E ninguém melhor que a moça das balas, que era quem queria abater. Mas ela já estava de sobreaviso, porque apesar de mulher nova não precisava que lhe ensinassem uma coisa dessas. Nem adiantava ele vir com aquela tapeação sobre seus filmes preferidos que ela já lhe percebera as dissimuladas intenções. "Então não me respeita, diacho? Não se enxerga?"

O marido, dono dela e do cinema, também sacara tudo. A tentativa de encanto para cima da moça era encorajada por algo nebuloso na cabeça de Santa Ana. Será que era porque o marido tinha um bigode como o dele? "Se ele usa é porque ela gosta", cogitava. Talvez fosse apenas a atração crescente que tinha por ela, que encurralada, quase não podia negar-lhe o assédio. Talvez fosse pela delicadeza do marido que, dono de um estabelecimento público, quase tinha obrigação de tratá-lo amistosamente. Era certo que Santa Ana percebera algo no ar que o encorajava a prosseguir com a sedução. E para ganhar a esposa, conjuminou, tinha que partir para cima do marido, um senhor de idade em vista dela, tão moça ainda. Tinha de conquistar primeiro o velho. Deu então jeito de encontrá-lo no mercado, na feira, no banco e no bar; ganhou um amigo.

Numa noite de pouca gente nas ruas Santa Ana estava mais adulterino do que o rabudo. Quando a sessão começou, ele levantou-se e foi comprar chicletes. Planejou pagar com dinheiro grande e provocar enguiço no troco. Ela devolveu e disse para ele pagar outra hora. E no pegar de volta, segurou e beijou-lhe carinhosamente a mão. O roçar do bigode na mão da mulher foi fatal. Olhou fundo nos olhos de Santa Ana para dizer: "Adoro homens de bigode, sabia?" Com um sorriso de quem acabara de inventar o amor, Santa Ana disse que ia acabar de ver o filme; ia executar a segunda parte do plano.

Final da sessão, pessoal saindo, Santa Ana ficou por último. Veio o proprietário:
— Vamos embora?

Ajudou a ferrolhar a porta e passar trancas nas janelas, num agrado de má intenção. Deu certo, o homem começou puxar conversa e falar do frio. Ela cochichou algo e o outro convidou Santa Ana para tomar algo quente em casa; uma sopa, um aperitivo.

O apartamento bem organizado, mas ela pediu que não reparasse na bagunça. Ficaram os dois na sala enquanto ela sumia lá para dentro. Já estavam no segundo amarulla quando ela passou de roupão branco sorrindo. O homem convidou para assistir um pouco de televisão. Quando ele entrou ficou encantado com tanto conforto que havia no dormitório do casal; até perfumado o quarto era. Ela deitada em baixo das cobertas de olho nas Olimpíadas. Foi um rebuliço na cabeça de Santa Ana.

— Senta aí — mandando-o sentar na cama ao lado da esposa.
O velho acomodou-se ali fingindo atenção na TV; ela no meio. Antes, ele tirou os sapatos e enfiou-se nos cobertores. Santa Ana olhou para ela, que não tirava os olhos da transmissão. Olhou para o outro, que o mandou se cobrir porque o frio era de amargar. Então Santa Ana deslocou-se direto para o céu.

A moça não tirava os olhos das Olimpíadas. Roupão jogado, cabelo revolto, pegada firme, regata suada e ela torcendo na final dos cem metros nado livre. O velho de olho grudado na prova, mas nada via do que se passava na televisão; história dele! Desconfiança e medo, pistola na mão por baixo do travesseiro e ela finalmente solta o fôlego trancado para medalhar o recordista.