quarta-feira, 26 de maio de 2010

Tá no sangue

Preso em flagrante, o abatido homem diz ao delegado:

— Ainda criança eu fazia o reconhecimento no quintal dos vizinhos. Era um bisbilhoteiro que se encantava com os pertences dos outros. Um dia, brincando nos fundos de uma oficina mecânica, encontrei um par de óculos de sol. Fui correndo entregar a minha mãe, que logo quis saber onde eu havia encontrado o objeto. “Ali, no matinho da mamona”.

No momento em que confessa, lágrimas molham-lhe as faces. E continua.

— Percebi que mamãe quis ir à oficina entregar o objeto, mas achou melhor entregá-lo ao meu pai para, ele sim que era homem, devolver.

O preso dizia que, para ele, aquilo era uma preciosidade, mesmo tratando-se de um óculos para adultos. Novinho em folha, armação dourada, o modelo era usado pelos pilotos da Força Aérea americana. As lentes verdes tinham a qualidade de refletir com exatidão o encanto que era o esboço das nuvens, do mar e das aves.

— Meu pai escutou com interesse o relato de minha mãe. Depois olhou os óculos de todos os ângulos. No final, colocou-o sobre o nariz. Todos rirmos satisfeitos. Inclusive ele, que não tinha a noção moral do “achado tem que devolver ao dono”.
Disse-lhe o policial:

— Seu pai devia ter ido procurar o dono da oficina e devolver o que você achara dentro do quintal alheio. Ele acomodou a cobiça para o mal. E o maior estrago foi feito em você, que estava em formação. Dizer que uma criança de quatro anos não observa essas coisas é ingenuidade; pois ela já o percebe.

O homem continuou a depor, mas a escrivã parou de registrar o depoimento tão comovida ficou. Traçava um paralelo entre aquele homem e os próprios filhos pequenos. E o preso:

— Anos depois, furtei dinheiro de uma senhora que visitava nossa casa. Sabia a dimensão do delito, mas já estava insensível ao drama alheio. Quando a mulher sentiu a falta, foi direto numa velhinha que adivinhava as coisas: Dona Jozima. “Foi um menino de uns dez anos, loirinho, crespo e filho de uma que está presente na sala”. Todos olharam para a minha mãe. “Mandem buscar o menino, que ainda não gastou o dinheiro”, dizia a mãe de santo. “Não quero saber de nada, — dizia eu, já detido — achei o dinheiro enterrado no lixo da oficina”. A mesma oficina mecânica onde achara os óculos de luxo. Todos riam do meu ridículo álibi, menos eu, convincente. Tomei uma surra de vara. Era muita vergonha para a minha mãe. Era como se ela estivesse sendo acusada daquela fraude. Mas o certo é que ela era quem deveria ser punida por me haver iniciado naquele primeiro delito infantil dos óculos. Eu não tinha noção do erro, mas ela e o meu pai sim.

O homem disse confessar porque precisa ser humilde e ir até a beira do abismo para mais da vida aprender. E concluiu:

— Depois de velho, furtei esta moto que bem podia comprar. Mas parece que estou condenado a aprender somente quando visito o medo e o estresse do desmoronamento interior. Quanto sofrimento poderia ser evitado se mais honra e compaixão houvesse na minha infância.

Então a escrivã chorou.