sábado, 29 de novembro de 2008

CIDADE SEM XERIFE

Humberto Ilha

O dentista Orlandino Piedade fechou o consultório na hora do almoço e foi pegar o carro defronte ao prédio onde trabalhava. Vasculhou a rua toda e não encontrou o automóvel. Então começou a xingar o governo que não oferecia segurança. Seu carro desaparecera em plena luz do dia. Tomou um taxi e foi para casa, mas não conseguiu almoçar, pois estava indignado com a perda do veículo ainda financiado. Aquilo só podia ser coisa de gente que o andava negaceando para esperar a hora certa de agir com impunidade. A própria cidade não dava chance alguma aos cidadãos. Instituíra agora uma tal de zonazul com o pretexto de redistribuir as escassas vagas no centro para que todos usufruíssem com mais justiça. Mas o povo não assimilou o argumento e apelidou a idéia técnica de “pretexto para meter a mão no bolso dos cidadãos”.

Piedade foi até a Delegacia de Furtos e lavrou um Boletim onde deixou consignado todo o seu descontentamento com o prefeito. Bradou que iria trocar de partido político, como se isso fosse impressionar os policiais de plantão. Registrou a queixa e foi-se embora para esquecer tudo em menos de duas semanas. "Quem sabe um dia meu carrinho aparece". Comprou outro e tocou a vida.

Um mês depois havia atendido um amigo que lhe pedira carona. Vieram conversando pela Tiradentes quando o outro parou e ele seguiu falando sozinho. O dentista estranhou e fez sinal para que o acompanhasse até ao estacionamento. O outro ficou olhando para um determinado veículo e perguntou:
— Mas este aqui não é o seu carro?
Orlandino olhou, examinou bem aquele veículo todo empoeirado. Conferiu as placas e viu que se tratava do carro desaparecido. Olhou para trás e deu de cara com os barbeiros olhando para ele.
— Vocês sabiam que este carro estava aqui?
— Está aí há mais de mês e daí nunca saiu. A gente estranhava ver o doutor passar por ele e deixá-lo aí, mas fazer o quê? Decerto queria caminhar. Hoje isso está na moda, caminhar.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O REBOCADOR TRIUNFO

Humberto Ilha

Manhã cedo, o pequeno navio R 22 ressoa a aguda sirene e atraca no porto da Rua Quatorze de Julho exibindo ainda as bandeiras sinalizadoras de serviço. Horatio Magalhães era o capitão de corveta mais charmoso da Armada; e o mais complicado também. Este era o seu primeiro comando. Ainda que fizesse algum esforço de parecer cortês, pela presença de civis no local, o cansaço da manobra era-lhe visível. Além disso era um militar de pouco riso. Podia-se dizer que já estava endurecido pelo sol e pela salmoura. Ainda jovem adquirira aguçado nível de lucidez. Fora preparado em casa para caminhar na dureza do convés das embarcações. O velho orgulhava-se da própria dispensabilidade para que o menino enfrentasse a vida por si. Estava sendo bem preparado. Chegou a compor a equipe brasileira de salto em altura nos Jogos Pan-americanos de Cali. Encaminhado para ser um campeão, era um daqueles que seguia vocação cultivando vaidade de família. Mas, diferente dos mortais, não tivera que fazer carreira com as mãos. Dizem que para ingressar na Escola Naval tivera dificuldades com a prova de Português. Deu branco e estava reprovado. Época de singular ordenamento nacional, ninguém ousou contestar argumentos do tipo “Todos sabemos que o garoto ficou nervoso. E também sabemos que ele sabe; ou não sabemos?”

Desde pequeno auferia proveito dos que gravitavam em torno do pai; olhava a maruja com descaso. Era exímio em bem demonstrar aquele ilusório ranço de elite, muito embora zeloso de suas obrigações. O comandante do Colégio Naval foi por ele chamado de maricão quando lhe exigiu a camaradagem da continência negada no pátio interno. O oficial envermelheceu diante de todos e entrou no gabinete para morder o ódio que nutria por ser mesmo diferente.

Horatio preferia não dar moleza aos de baixo para preservar a distância entre quem manda e quem tem juízo. Isso desde sempre; e não somente agora que estrondeara com força uma revolução, cuja gota d’água fora o desrespeito pela oficialidade do mar. Naquele cenário político, um oficial com algum cacoete nazista tinha carreira garantida nos quadros da Armada. E isso ele tinha de sobra. Talvez daí lhe viesse o apelido de Barradão, que é como os subordinados chamam aquele que lhes barra os melhores planos. Olhando-o de longe, parecia ficar melhor na pele de um fuzileiro naval de tão durão que era com os homens. Fora o primeiro de sua turma a conquistar o posto de oficial superior. Gostava de estudar e nisso ia fundo. Mas, se mandava nos homens e todos obedeciam, igualmente se via obrigado a obedecer ao mar e o que dele vinha. “Ah, o mar que a ninguém obedecia. Ai de quem viesse com a ladainha de que só a Netuno o mar respeitava; história!” O oficial era chegado em mastigar: “Netuno morreu faz tempo e o mar nada respeita”. Para rematar, se fosse provocado: “A negociação com o mar se dá antes de nele entrar. Como entrar no mar sem conhecer o retelho das nuvens e a leitura dos ventos?” Significa dizer que ele somente acreditava no planejamento, na prudência e no conhecimento do instante dramático a vivenciar no mar. “Os mortos — dizia — já esperam deitados; e deitado ninguém planeja. Ficar vivo no mar implica em ter que pedir licença para não precisar pedir socorro”.

Tudo o que Horatio Magalhães fazia, fazia bem feito. Sextante ele tinha quatro. Um deles era pequeno, para caber nas mãos do filho. Equipamento de mergulho eram dois novinhos. Um para ele e outro para a esposa, que adorava mergulhar nas ilhas da costa fluminense atrás de garoupa-chita. Lancha, era questão de honra, tinha uma com dois motores de cento e dez cavalos e toda adaptada para mergulho. A bordo do Vendaval, um veleiro de trinta e dois pés que lhe dera o pai, buscava a utopia da velejada perfeita. Poucos oficiais praticavam a navegação à vela. Mas onde mais se permitia desfrutar a própria essência era dentro da água, mergulhando em apnéia. Poucos sabiam onde estava o prazer de pertencer ao mar. Ali estava, dizia ele. “Lá dentro só escuto o pulso do meu coração. O mergulho me leva ao coração do impossível”.

Remanescente da Marinha americana, Triunfo era um rebocador empregado em missões de resgate. Tarefa pacífica que dava algum charme àquela embarcação tão antiquada quanto robusta. Um só mastro e um só castelo, o de proa. O resto da estrutura era destinado ao suporte das missões de força. Difícil achar quem não goste de um socorrista. Triunfo parecia um bicho vivo querendo se comunicar com o entorno. A comunicação pelo Código Internacional de Sinais através das quatro bandeiras já era mensagem de amizade e paz. Aquele rebocador, onde quer que aparecesse, invocava um sentimento bom nas pessoas porque não manifestava sinal de hostilidade advindo da exposição de armamentos próprios das embarcações de guerra. Ao invés de canhões, bombas e metralhas, viam-se no convés de popa rasa dele apenas grossas correntes, cordas, cabos de aço, roldanas enormes, sarilhos engenhosos, polias reforçadas e robusto pau de carga para agüentar o tranco nas operações de força em socorro de algum navio agonizante em ameaçador costão ou praia deserta. Ou ainda de algum outro refém da deriva tenebrosa no meio de alguma tormenta assassina a reclamar o sossego que as embarcações não lhe costumam dar.

Depois da atracação o cozinheiro supervisionava um embarque de carne. Três grumetes faziam a estiva da viatura para o frigorífico da embarcação. De repente um balaio cheio foi parar no mar. O grumete, negro musculoso de uns vinte e quatro anos, tropeçou nos trilhos do trapiche e não conseguiu evitar o acidente. Nesse momento o comandante estava chegando, viu tudo e já foi dando a ordem:
— Mergulha grumete; vá buscar a carne.
O rapaz ficou de calção e se atirou na água. Ali já estavam quase todos para verem no que ia dar a situação. Outros colegas queriam ajudar, mas aí o capitão deixou à mostra o tanto de peçonha que ainda habitava em seu caráter.
— Ninguém mais na água. A responsabilidade é dele.
A cada vez que voltava do fundo com um pedaço de carne o jovem tinha maior dificuldade. Numa das vezes voltou sem nada nas mãos e sangrando pelos ouvidos. O médico pediu para parar com aquilo, mas Horatio não concordou e mandou que mergulhasse mais. O sangue não parava, então o cozinheiro se meteu e disse ao grumete para não mergulhar mais. O comandante virou-se para o cabo:
— Como ousa?
— O senhor está errado e meu irmão não mergulha mais hoje.

O médico sentiu que era hora de intervir e mandou que o grumete fosse levado para a enfermaria. Sofrera um derrame cerebral que iria apagar o seu futuro e a carreira festiva de Horatio Magalhães, que recolheu a vergonha diante da gravidade do episódio e foi trancar-se na cabine. Inimigo de si mesmo, lembrou-se que um dia fora insolente com um comandante que também não conseguia domesticar a matraca.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

FAZ PARTE!

Humberto Ilha

O casal passava quando viu uma idosa tentando atravessar a avenida da vila militar. Era um lugar difícil até para os mais jovens. Reparando a dificuldade da mulher resolveram dar meia volta no carro e encolher a distância entre eles e aquela que nem conheciam. Ao retornarem ela ainda estava longe de atravessar a arriscada via. Apoiava-se numa bengala e carregava uma sacola com roupas. O homem se ofereceu para atravessá-la tomando-lhe a sacola no que ela enfiou o braço no dele. Quando sentiram que estava favorável começaram a cruzar. Ele fazia sinais ostensivos para os motoristas abaixarem a velocidade. Parou o trânsito na hora. Caminhando na velocidade que ela conseguia, chegaram ao outro lado. Então ele perguntou para onde ela estava indo. À missa na Igreja São Francisco; frei Balbílio é o celebrante. Ela se referia a um homem grande, vermelhão, inquieto, de alguma idade e saúde de ferro. Diziam que se curava com ervas que lhe vinham da Alemanha. Falava português com sotaque carregado e alegre. Trajava sempre aquela batina marrom e sandálias. Como ele se virava no inverno ninguém sabia, porque também nunca foi visto com outro abrigo além daquele traje capuchinho. No verão, a mesma coisa: um calorão medonho e ele dentro daquela roupa escura gerando mais calor. Ali, parece, dava demonstração do obstinado ofício como servo do Senhor. O povo dispensava-lhe estima; era confessor de gente graúda.

— Vou levar umas roupinhas de bebê que fiz. Faço parte de um grupo que se reúne todo mês; ele é o nosso orientador espiritual. Conhece cada um de nós pelo nome e sobrenome; um santo em vida.
— Posso deixá-la na igreja, se quiser.
— Ora, se não quero.

Colocada no banco da frente, a mulher nem sabia afivelar o cinto de segurança. Na tentativa ela arrumou uma confusão de braço por dentro e braço por fora até ficar com o pescoço imóvel pelo cinto. O casal achou graça da dificuldade. O homem lembrou-se da própria mãe, que também fazia aquela confusão. Ajeitou-lhe o cinto e foram para a igreja deixando-a na porta. A mulher agradeceu e foi entrando com aquela bengala de madeira envernizada que lhe dava dignidade. O casal voltou para o carro e retomou a viagem, que era na seqüência daquele trajeto: o cinema do shopping assistir Julio Verne na versão reciclada em terceira dimensão da sempiterna Viagem ao Centro da Terra, agora com Brendam Fazer. Jurou à esposa que os truques da produção não iriam surpreendê-lo. Era melhor ter fechado a matraca, porque no primeiro minuto de filme quis tirar com a mão um beija-flor que lhe veio pinicar o nariz. Depois de muitas risadas ele entregou-se ao filme e às atrações que oferecia: cavernas profundas, peixes voadores, dinossauros zangados, cipós que sufocavam o herói, rochas que desafiavam a gravidade. Como o livro, na Islândia também estava a porta de entrada para aquela aventura. Só que o guia no filme era uma linda mulher, coisa impensada pelo autor no machista século dezenove. Estava envolto naquela nostalgia quando algo lhe trovejou num efeito dolby surround: Fiquei com a sacola da velha dentro do carro. Quis explicar a confusão para a esposa. Ela mandou que abaixasse a voz porque o filme era dublado. O homem disse que ia sair e voltaria dentro de meia horinha: pode marcar no relógio.
—Hãm... Hãm... — de olho lá dentro do telão.

Saiu ansiado da sala como surdo em bingo. Uma pobre lixeira voou fazendo estardalhaço numa canelada que deu quando saiu da sala sem enxergar nada. Já no estacionamento olhou a sacola da senhorinha no banco de trás e tocou para a igreja. Quando chegou já havia terminado a missa, mas notou a presença de algumas pessoas por ali. Foi entrando porta adentro encontrando frei Balbílio que saía às pressas e olhando para trás. Dentro da igreja somente umas pessoas em oração aqui e ali. Perdi a velha. Olhando na sacristia viu um bolo de gente. Ela estava vomitando numa pia; as amigas em volta dela. Coitada, por que o padre não ficou aqui para atendê-la já que a conhecia pelo nome e sobrenome? Por que, já que era o orientador espiritual do grupo? Lembrou que ainda o vira se afastando, decerto para não ficar refém da responsabilidade. Levou a senhorinha à emergência do Hospital Senhor dos Passos. Depois de encaminhada colocou junto à cama a sacolinha e voltou para o cinema buscar a esposa. Precisavam voltar ao hospital e depois levar a mulher em casa: era no Buraco da Onça.

Já contou algumas vezes esta história com a gravidade que merece, mas não quer mais porque o pessoal começa a rir e dizer-lhe bem-feito, metido.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O DOM DE NÃO ENTENDER

Um sossego de varanda e então dormi,
‘inda vi casal tentando vôo sem graça
abatido no gramado sucumbir.

Grave ela ferida na agonia
ele aflito se havendo em covardia
por desgosto de com ela então morrer.
Mas ficar ali por perto era preciso;
de verdade bem saber ele sabia.

Esperar por mais seis luas e voltar
para o sol, após velar o que amou.
A esse tempo a pobre ave quis saber:
Por quê?

Por seus olhos quis fazê-lo então saber
que esta vida é fugidia, mas convém
ser levado igual criança no viés
do mistério que o juízo indulgencia.

Longe de entender, por mais que tente,
uma ave não me sabe compreender.
Como igual não entendo o próprio Deus,
que descendo vem olhar no meu olhar
e dizer-me o que não posso decifrar.

(Humberto Ilha)


sábado, 8 de novembro de 2008

SONO E SOMBRA


Na sombra, às vezes me deixo
Dormir igual a um vadio
Um sono de longo trecho,
Mas torto e fugaz... Vazio.

Nem sempre consigo um sonho
Daqueles bons de sonhar
Às vezes de tão medonho
Dou-me graças de acordar.

E quando eu sonho calado
Nada de mal me acontece.
Mas se é sonho agoniado
Meu coração desfalece.

Mil vezes viro menino
No’embrulho dessa magia
Sonhando um sonho divino
De alegrar a alegria.

Nesse dia tudo cabe.
Bom e ruim tomam vida.
Quem nunca sonhou não sabe
E dos que sabem duvida.

Acordar nem sempre é bom,
Quando o sonho é de primeira.
Há que se ter algum dom
P’rá parar com a brincadeira.

Sonhar tem que ser assim:
O mal e o bem juvenis.
Se um sonho me deixa ruim,
Outro me deixa feliz.
(Humberto Ilha)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CLIENTE LEVA BRONZE

Humberto Ilha

Toda semana ele enfrentava aquela aporrinhação dos caixas eletrônicos. A tecnologia da informação viera para atrapalhar os que foram pegos de surpresa; como os da terceira idade. Claudionor era dos que não se davam com a parafernália de cartões magnéticos, senhas alfanuméricas, portas giratórias de segurança, casamatas blindadas, guardas armados, câmaras de vídeo, alarmes. Recente no bloco dos idosos, desejava usufruir regalia dos de sua categoria: usar um caixa preferencial. Não estava disposto a abrir mão desse direito há pouco reconhecido. Queria ser atendido com requinte nem que fosse uma só vez. Foi ao banco e não gostou do que viu lá dentro. Imaginava receber um pouco mais de consideração. Aquele aviso indicando o caixa destinado a atender idosos era perverso. Primeira vez que se permitira a ele recorrer achava aquilo uma carta de exclusão. Mesma coisa que tocar uma sirene obsequiosa para todo mundo ficar sabendo que ali estava um velho. Remascava que o atendimento merecia mais recato. Diabos, se um idoso, uma gestante ou um deficiente físico precisasse de atenção especial era só pedir que o banco saberia atender. Reinava em todo lugar, de uma hora para outra, uma mesura nervosa em favor do senil, mas parece que não sabiam atendê-lo. Havia supermercado que oferecia café da manhã. Prefeituras que garantiam gratuidade no transporte. Até as primas faziam promoção no cachê para os mais travessos. Outro dia a televisão mostrou uma dona Rosinha de setenta e três anos fazendo ponto numa esquina de São Paulo dando atendimento preferencial de geriatria.

Aproximando-se do caixa a ele destinado, Claudionor ia esboçar um sorriso de boa-tarde quando uma jovem senhora lhe tomou a frente. Ignorando-o, ela furou-lhe a vez toda sorridente e com a bolsa aberta cheia de maços de dinheiro para depositar. Era tanto dinheiro que fora levado para a máquina eletrônica de contar. Flip-flip-flip; nunca tinha visto tanta grana junta, nem mulher tão linda. Ele era um bugre criado mato-a-dentro lá pelas barrancas do Uruguai. Um xokleng simbólico: baixo, moreno, quase um bronze, sem um fio de grisalho na cabeça; braços e pernas fortes. Havia de relatar em casa o que estava presenciando. Mesmo sentindo-se transparente tragava prazer enorme e não perdia um movimento da gorducha mulher. Que visão do céu. Por ele não saía mais dali; e não saiu mesmo. Disse para si que ninguém o tiraria dali por nada. Se necessário esperaria o resto do dia. A senhora passava maços e maços de dinheiro ao caixa. A sacola parecia não ter fundo, de tanto dinheiro que havia ali dentro. Entretanto, dava a impressão de querer desvencilhar-se logo da grana como que a transferir de uma vez ao banco a responsabilidade pela guarda daquele pequeno tesouro. Queria logo o recibo, a prova do depósito. E Claudionor: "Ao invés de abraçar e beijar aquele dinheiro todo, ela quer se ver livre dele". Ali, de pé atrás da mulher, podia sentir o perfume cítrico que ela usava. "Uma delícia! Devia custar mais que o rancho mensal". Ainda ali, de pé atrás da mulher, se encantou com o longo sobretudo vermelho que lhe cobria o corpo. O aroma vinha daquele casaco que se mexeu com a mulher dentro para chamar o marido.
— Nego, chega aqui.
Claudionor pode então ver como era linda. Era muita merenda para o recreio do Nego, que era um dragão de feio. Depois de cochichar algo no ouvido dele, o homem encostou-se nela colocando-lhe as mãos na cintura. Isso fez de modo acintoso e olhando nos olhos de Claudionor, dando-lhe ainda vigorosa cotovelada nas costelas. O índio achou haver sido sem querer. Então, o amargoso se mexeu novamente e deu-lhe outro cotovelão para o coitado resmungar algo como “putz”. Agora estava passando da conta. O prosa virou-se para trás e perguntou se o outro não estava desconfiando de nada.
— ???
— Afaste-se de minha esposa. Você está invadindo a privacidade dela. Seu lugar é para além da faixa amarela; e não colado na patroa.
Claudionor percebeu o vacilo; tinha razão, o infame. Desacostumado com a novidade nos bancos, nem percebera que estava invadindo o ninho daquela cobra. Mesmo assim deixou claro ao homem que não gostara do tom da voz dele, para em seguida ouvir:
— Será que eu vou ter que me incomodar com você?
Claudionor já estava tomando o caminho do seu modesto lugar, atrás daquela faixa amarela colada no piso da sala. Faixa Amarela... Algo ameaçador estrondeou dentro da cabeça dele. Lembrou que era ele um faixa-preta. Fora admoestado pelo salgado diante de pessoas e não gostara. O comportamento impróprio do homem deixou-o furioso, mas conseguiu abafar-se. Entretanto, dissera ao outro para se cuidar porque na próxima ele o faria engolir os insultos. Claudionor bem sabia que acabara de proferir uma ofensa maior do que a que havia escutado. O trouxa mordeu a isca e falou esbravejando desgovernadamente:
— Vai querer me encarar?
O bugre conteve-se mais um pouco. Era necessário provocar mais raiva no outro até sobrevir o ponto ideal de enfrentá-lo. Até que ficasse totalmente sem controle emocional. Antegozando um ódio desmedido e represado retrucou na debocheira:
— Posso encarar você, mas não vale me chifrar.

Xingar alguém de corno era uma de suas melhores provocações. De sua boca não saiam palavras afetuosas quando o sangue lhe subia. O valentão arremeteu com tudo para cima de Claudionor, mas girou como só um bailarino gira, terminando aterrissado junto ao bebedouro. Que lambança; a bombona explodiu no chão como um torpedo, encharcando tudo. O segurança tentou imobilizá-lo, mas o bugre fê-lo soltar um grito horrível. De não acreditar, mas Claudionor neutralizou-o fazendo forte pressão num dos dedos dobrados da mão do guarda. Como fazia muita choradeira, o bugre desvencilhou-se dele com grande estrondo; também ele beijou a lona. E no chão dormiu de ladinho perto de uma dentadura quebrada que não se sabe de onde veio. Agora ia juntar o confiado para completar o trabalho. Mas a cúmplice mulher subitamente avançou contra ele, como se tivesse sido atingida por uma espetada no popô. Nem deu tempo para desconsiderar a ameaça. A água espalhada fez que patinasse como se patina pela primeira vez: numa coreografia desengonçada com os braços abertos e os olhos arregalados de pânico. Todo o corpo atraente dela deslizou até amontoar-se sobre um vaso ornamental. Funcionários juntaram-na e ao marido e levaram os dois lá para dentro. Claudionor estava branco e alerta. Eram mesmo de bronze seus braços e pernas de tanto estrago que faziam. Sabia que o pior estava a caminho. Como a se defender, falou aos que viram o bafafá que fora um erro o homem tê-lo desafiado daquele jeito. “Meter-se comigo é caixão. Afinal, eu pratico artes marciais”, falou bancando o campeão de si mesmo. E era verdade, mas seu maior talento era a rapidez de raciocínio aliada à grande mobilidade diante de situações desse tipo. Sobrevinha-lhe ainda saber combinar rapidez com potência de golpes certeiros. Era um ninja, desses que a gente vê na televisão. Durante todo o entrevero não emitia palavra, mas nada lhe escapava à atenção. Nem o guardinha dormindo no chão, nem as câmaras de vídeo que tudo registravam.

Como parte da rotina de segurança os funcionários chamaram a polícia, que cercou a agência com grande aparato de resposta tática, preparada que veio para enfrentar assaltantes, seqüestradores, terroristas ou sabe-se lá o que mais. O oficial que tudo aquilo comandava não imaginara que fora acionado para acabar com um bate-boca. Sirenas, faróis acesos, pisca-pisca, bombeiros, coletes de segurança, escudos blindados, armamento pesado e muita tropa entrincheirada por detrás dos carros tipo caveirões. Aquele monumento de bronze feito homem olhou para fora e balanceou a situação: “tô ferrado”. Fitou as pessoas no interior do banco, quase que a pedir ajuda. Mas ninguém parecia lhe dispensar benevolência. Sequer chegavam perto dele. Decidiu então encarar sozinho o caso, como sempre fizera na vida.
Um megafone saiu por trás de uma viatura camuflada, e dele vinha a ordem para que todos se atirassem ao chão. Foi pra já! Todos se deitaram, inclusive Claudionor, que se deitou ao lado do segurança que dormia de ladinho. Os policiais entraram e não encontraram a oposição que esperavam. Sequer sabiam a quem prender. Mas um comandante de polícia tem lá suas manhas. Com pausada voz de comando determinou que somente os funcionários do banco se levantassem. Ainda assim, verificou que havia muita gente pelo chão. A seguir autorizou que o segurança também se erguesse. No chão, só os clientes. E entre eles, por certo, os autores de toda aquela encrenca. Separando o joio do trigo ficaria mais fácil prender os bandidos.

Mas, e Claudionor? Fez-se oculto ali mesmo. A polícia não sabia onde ele estava, muito embora parecesse que havia sido indultado pelos que tinham visto o seu desempenho em defesa da honra ultrajada; atuação que todos viram mas não entenderam, tamanha a rapidez e precisão de movimentos daquele herói solitário. Nosso Senhor depois de ressuscitar no terceiro dia foi mais demorado para se esconder nas nuvens, de acordo com o que nos contaram na catequese. Com tudo que O qualificava demorou muito mais tempo que o bugre para fazer-se oculto. E agora nem bem deitou ao lado do guardinha esse velhaco desaparece diante dos olhos de todo mundo para ressurgir fardado ninguém sabe como. Sobrou à polícia apenas prender o casal de lambanceiros. Queria o depoimento deles para o competente inquérito. Por muito pouco não levou uma vaia.
Enquanto tudo isso se passava, o segurança falava ao rádio em voz alta com alguém a respeito da briga que havia presenciado no interior da agência bancária. Ao tempo em que parecia relatar tudo com detalhes ganhava a rua movimentada. E assim caminhou até o ponto de ônibus para sumir da vista da polícia. Entrando em casa, de uniforme, a mulher estranhou e perguntou se ele havia arranjado emprego de guarda. Fez que não com a cabeça.