segunda-feira, 14 de novembro de 2011

VIDA E MORTE NA RUA


Quem há de se compor num quadro de indigência? Os da rua não compreendem o que lhes está posto. Na democracia um mendigo não trabalha e no capitalismo, só atrapalha. Ao próprio corpo, o indigente desobriga zelo. É um frágil. Sentado na melhor esquina da cidade, vindica a caridade. O “Tenho Fome” estampado na caixa ao chão molhado, recebe o que julga seu tributo: a esmola. Sobre feixe de escoras podres, segura com as duas mãos o guarda-chuva do lixo que estampa o brilho do restaurante “Doce Vida”. Ali, símil àquele patrimônio de varões quebrados, torna-se um escasso que a ventania se esforça em derrubar. Pelo jeito comprou o tempo, para ter tempo de ali estar governando o nada. O estômago contrai, quando os desbotados olhos rapinam despojos no saco de lixo eviscerado. A boca, num cacoete de secreções inevitáveis, é quase uma felicidade. Esta vem mais tarde, quando metade do saco revela-se digerível. No meio da chuva, ninguém lhe passa perto. E se lhe ocorre a cena, fica transparente de não se ver.
Mas a dor também explode no poste em frente. Um corpo de mulher lhe veio aos pés já sem cor de vida e voltou a respirar profundo depois que ele pulou no inferno e lhe deu o ar de vida com seu ar de pinga. Fora de risco, foi levada pela ambulância faiscante. À tarde, ela parou na esquina para confessar-lhe carinho. Não teve coragem. Nauseada, deixou por isso mesmo.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Tá no sangue

Preso em flagrante, o abatido homem diz ao delegado:

— Ainda criança eu fazia o reconhecimento no quintal dos vizinhos. Era um bisbilhoteiro que se encantava com os pertences dos outros. Um dia, brincando nos fundos de uma oficina mecânica, encontrei um par de óculos de sol. Fui correndo entregar a minha mãe, que logo quis saber onde eu havia encontrado o objeto. “Ali, no matinho da mamona”.

No momento em que confessa, lágrimas molham-lhe as faces. E continua.

— Percebi que mamãe quis ir à oficina entregar o objeto, mas achou melhor entregá-lo ao meu pai para, ele sim que era homem, devolver.

O preso dizia que, para ele, aquilo era uma preciosidade, mesmo tratando-se de um óculos para adultos. Novinho em folha, armação dourada, o modelo era usado pelos pilotos da Força Aérea americana. As lentes verdes tinham a qualidade de refletir com exatidão o encanto que era o esboço das nuvens, do mar e das aves.

— Meu pai escutou com interesse o relato de minha mãe. Depois olhou os óculos de todos os ângulos. No final, colocou-o sobre o nariz. Todos rirmos satisfeitos. Inclusive ele, que não tinha a noção moral do “achado tem que devolver ao dono”.
Disse-lhe o policial:

— Seu pai devia ter ido procurar o dono da oficina e devolver o que você achara dentro do quintal alheio. Ele acomodou a cobiça para o mal. E o maior estrago foi feito em você, que estava em formação. Dizer que uma criança de quatro anos não observa essas coisas é ingenuidade; pois ela já o percebe.

O homem continuou a depor, mas a escrivã parou de registrar o depoimento tão comovida ficou. Traçava um paralelo entre aquele homem e os próprios filhos pequenos. E o preso:

— Anos depois, furtei dinheiro de uma senhora que visitava nossa casa. Sabia a dimensão do delito, mas já estava insensível ao drama alheio. Quando a mulher sentiu a falta, foi direto numa velhinha que adivinhava as coisas: Dona Jozima. “Foi um menino de uns dez anos, loirinho, crespo e filho de uma que está presente na sala”. Todos olharam para a minha mãe. “Mandem buscar o menino, que ainda não gastou o dinheiro”, dizia a mãe de santo. “Não quero saber de nada, — dizia eu, já detido — achei o dinheiro enterrado no lixo da oficina”. A mesma oficina mecânica onde achara os óculos de luxo. Todos riam do meu ridículo álibi, menos eu, convincente. Tomei uma surra de vara. Era muita vergonha para a minha mãe. Era como se ela estivesse sendo acusada daquela fraude. Mas o certo é que ela era quem deveria ser punida por me haver iniciado naquele primeiro delito infantil dos óculos. Eu não tinha noção do erro, mas ela e o meu pai sim.

O homem disse confessar porque precisa ser humilde e ir até a beira do abismo para mais da vida aprender. E concluiu:

— Depois de velho, furtei esta moto que bem podia comprar. Mas parece que estou condenado a aprender somente quando visito o medo e o estresse do desmoronamento interior. Quanto sofrimento poderia ser evitado se mais honra e compaixão houvesse na minha infância.

Então a escrivã chorou.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Luva de Prata

Nunca entrei naquele açougue, minha mãe proibiu. Mas escutei meu vizinho relatando a história daquele abatedouro encantado. A mãe dele mandava-o para acompanhar o pai. Era mentira do Felipe? Não era, não podia ser. Um adolescente já percebe esse tipo de falcatrua. Ele via a verdade estampada nas caras dos homens, que dali saiam abraçados aos pacotes a lhes mancharem as camisas.
Estava estampado acima da porta o nome do estabelecimento, "Açougue e Matadouro Rei Artur", nome que a esposa do proprietário detestava. Não pelo "matadouro", que lhe trazia antigas e estimulantes lembranças, mas "Rei Artur, tenha a santa paciência”! O homem explicava que era o nome do avô, Artur, um cara namorador, rei da noite.
Cedo ele abria as portas mágicas do estabelecimento, mas ela só aparecia depois, toda maquiada e dentro de um macacão branco colado à pele. Branco, por exigência da Vigilância Sanitária. Colado ao corpo, pela ditadura do apelo sensual.
Havia certa semelhança com a preparação de uma peça de teatro. Os funcionários de palco, o bilheteiro, o porteiro, o diretor, a orquestra, todos chegam mais cedo, mas a atriz principal chega por último com o prestígio do talento.
Os fregueses adoravam o cenário montado pelas peças de carnes penduradas nos ganchos de aço. Dispostos cuidadosamente sobre a mesa, as facas de carnear e desossar. A serra pendurada na parede perdia a gravidade da função porque todos sabiam que somente seria tocada por ela, a artista cobiçada.
Na hora certa ela chegava e quase ignorava o marido, mesmo quando recebia dele um cumprimento afetuoso. Voluptuosa, calçava a mão direita com uma luva de aço. Era hora de entrar em cena e faturar. Nela, a luva ficava como se fosse de prata, tal o jeito que tinha de calçá-la, tal o movimento das pequenas mãos. A platéia já se espremendo para ser atendida. Eu dizia para a minha mãe que eles queriam era ver o desempenho dela. “Vagabunda”, respondia ela.
O proprietário bem sabia por que seus fregueses eram homens. E todos gentis, pois cediam sempre a vez uns aos outros. Sabia que os açougues eram estabelecimentos em extinção, a não ser que agregassem serviço. Mas nada de jogo do bicho ou televisão. Tinha a visão para algo mais terminante, nevrálgico, infalível. Por isso ele a colocou a trabalhar ali. Mulher dentro de açougue era coisa que não se via. Depois, a vocação dela não poderia se perder sem render algum. Ainda mais que renegava a casa; principalmente o fogão. Não se reconhecia nessa situação. Dizia que não se tratava de uma qualquer.
— Por que continua fazendo isso comigo, querida? Ensinei tudo a você...
— Já lhe respondi: homem nenhum me abafa e me basta.
— Mas precisa três, além de mim?
— Você eu nem conto. Um dia eu lhe disse que só tinha compromisso com a minha vontade. Sou autêntica, você me quis assim quando me tirou do Vip Drink.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Um amor complicado

Por certo a decisão que tomara fora amadurecida pelo tempo. Provável que pesasse as conseqüências: exonerar-se da vida e arder no inferno, porque salvar-se não ia não. Mas um suicida de verdade surpreende a todos. Nunca ameaça; vai lá e se mata. Simples assim.

Quando o marido soube, a primeira coisa que cismou foi na coragem dela ao jogar-se da ponte com um frio daqueles no meio da noite escura. Ele julgava saber a extensão do desgosto que dava a ela. Mas jogar-se da ponte com aquele frio? E se pegasse uma gripe? Jamais Eduardo soube a essência do que residia no coração dela.

A maternidade alterou-lhe os fios do coração; amadureceu-lhe o espírito de jeito terminante. Ao deixar-se ficar mãe, aquela mulher foi de carona com o vento para o fundo do abismo. E gostava de ficar lá. Ele, parece, ficava na beirada querendo entender o quadro. Para se indultar, dizia que ela adorava voar e que gostava de emoções fortes. Que nada! Se ela bobeasse ele a empurrava de um rochedo sem remorso. Quem gosta de emoções desse tipo é ele. Quem gosta de veneno na veia é ele. Quem alberga o apetite voraz pela desgraceira é somente ele. Deveria ir lá também para ver onde mora o peso nas costas.

Nunca se viu um marido se jogar com a esposa no vazio do céu, onde está a consumição das noites mal dormidas, o tremor da febre, o sonho falido, o silêncio diante da sombra. Muito menos o Edu faria isso. Ela não enxergava recurso para aquele tormento. Parecia um cachorro ao lado daquele homem. Eduardo dizia que ela o obedecia porque ele era o deus dela. Dela e de mais umas três. Ao ver o que via, minha ternura por ela aumentava. Era uma mulher de alma guerreira com as cicatrizes das batalhas, que eram mais luminosas que suas tatuagens de sensualidade.

Durante uma hora, pedi que não se atirasse. Mas não teve jeito, lançou-se no vazio quando descuidei um pouco. Então me joguei atrás. Senti que o mar ia ser de concreto duro e que tudo ia se acabar num já. Mas durante o vôo, desejei que a água bem pudesse abrir-se em boca para acolher o desatino. A água cada vez mais perto, até sentir as costas como que se partindo em dois pedaços. Ela afundou e voltou à superfície com o vestido comprido cheio de ar em balonê. Encontrei-a flutuando, mas sabia que era por pouco tempo. Segurei-a por trás e nadei uns trinta metros até a praia. Eu bufava de cansaço e pedia para ela ajudar com as pernas, num quase grito dentro do ouvido. Tal foi o desespero na minha voz, que ela começou a bater os pés com vigor. Puxei-a para o raso com o resto das minhas forças. Deitamos em nossa praia, em nossa areia.

— Era a madrinha, mãe — noticiei.

Depois, somente as duas:

— Caí da ponte, comadre.
— O Toninho viu tudo, a comadre se jogou.
— Ainda bem que o Toninho me salvou. Como foi aparecer naquela hora?
— A comadre sabe muito bem como ele apareceu ali.

Por muito pouco, meus filhos não perderam a mãe.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Fé na hora de voar

Anos atrás todos sofreram com um drama mostrado na televisão. Depois de se amarrar bem amarrado num amontoado de balões de aniversário e começar a ganhar o endereço do céu, o padre Adelir de Carli largou a mão dos cordames e começou a fazer o sinal da cruz no ar, retribuindo os votos de “vai com Deus” da multidão, que dele foi se despedir.

— Ele está no meio de nós... Ele está no meio de nós... — respondia às jaculatórias que o povo lhe endereçava.

A aventura mal planejada colocou em sério risco a vida do religioso. Tentou fazer um curso de balonismo que não concluíra. Teimoso, queria voar. No dia marcado estava lá todo empinado, igual cavalo de circo. Alguém lembrou de lhe colocar num bolso um telefone celular global, desses via satélite que também acabam a bateria. Mas levou um GPS que não sabia usar. Confiou na providência celestial e não se preparou para voar por aqui. Encheu-se o coração de Deus para fazer uma diabrura desautorizada: voar como o padre Bartolomeu de Gusmão. Só que aquele era um bom piloto.

Adelir desejava ir para o Mato Grosso e foi parar no Rio de Janeiro. Lá chegou sem préstimo algum para esta vida. Deu um exemplo de como não se deve brincar de desafiar os dois maiores abismos deste mundo: o céu e o mar. Tenho receio quando vejo festivais religiosos e romarias. Parece que acabam sempre em tragédias. Ao acomodar-se no meio daquelas bolas o padre alojou-se no meio de uma fé insolente para hoje não mais existir entre nós. Acabou recebendo o prêmio Darwin pela maneira estúpida como acabou com a própria vida. Deveria merecer comenda mais séria pela luta em favor dos desassistidos das ruas de Paranaguá que morrem nas unhas de grupos de extermínio e dos traficantes de drogas.

Anos antes, numa Palhoça inundada, também se viu exemplo de fé absurda num fiel evangélico. Quase se matou e à própria família quando também decidiu voar “em o nome do Senhor Jesus”. Vinha ele dirigindo seu carro pela alagada Capitão Augusto Vidal quando, na altura da ponte de pedra levada pela enxurrada, a esposa mandou que parasse porque não havia mais ponte. Num ato de fé petulante respondeu que ia fazer a travessia porque confiava na providência divina. Estatelou-se lá embaixo. Jurou abandonar a igreja ali mesmo dentro da vala. Sua Brasília foi arrastada um bom pedaço e ele quase complica a vida da esposa e dos filhos. O rapaz também misturava muito as coisas do céu com as coisas da terra.

Caramba, parece que voar é a pulsão mais escolhida quando se põe a fé para trabalhar. Por certo é o poder mais bacana que existe. Eu mesmo já voei diversas vezes, mas sempre com a ajuda do cartão de crédito.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O sequestro do ônibus 1274


Os que levam a vida resistindo às tentações do trabalho desonesto, nunca esperam se envolver em cenas criminosas. Pois dois trabalhadores, Roberto Carlos Ouriques e Marci Alberes Córdova de Jesus, motorista e cobrador de ônibus, são desses que zelam pela dignidade de suas funções e foram vítimas de um seqüestro.
Trabalharam na tarde do último domingo e foram até quase meia-noite fazendo o que muitos de nós se nega: trabalhar, ao invés de descansar. Na última viagem apareceu um passageiro empoleirado na convicção da impunidade e seqüestrou, sob ameaça, um utilitário da comunidade: o ônibus 1274. Menos mal se levasse tão somente o ônibus. Levou sob ameaça dois que ralavam no domingo enquanto ele, Valmir Florentino da Costa vagabundeava sem receio da segunda-feira, que é dia de trabalho para a maioria de nós.
Sabia impostar a voz criminosa e fria para dizer ao motorista: "Se tu parar, tu morre". Ninguém deveria fazer uma ameaça dessas sem arcar com as conseqüências daí advindas. Seqüestro é tipificado como crime, pela nossa legislação. E crime que o legislador entendeu merecer maior reprovação por parte do Estado. É crime de gravidade acentuada, pelo potencial ofensivo.
Para controlar somente um, o sequestrador dispensou o cobrador, que comunicou o fato à polícia civil de Palhoça. Foi sorte, mas o motorista ainda era refém do mal. A polícia civil e militar desencadeou um plano para neutralizar a ameaça com preservação de vidas (inteligente, isso). Armaram uma barreira na entrada da ponte Pedro Ivo, em Florianópolis. O aparato policial assustou os dois ocupantes do ônibus 1274.
Ambos acharam que iam morrer ali. As miras das armas já estavam ajustadas. O sequestrador percebeu a gravidade da situação e exigiu se entregar à maior autoridade policial militar do Estado. Exigiu ainda um colete à prova de balas. Deu os passos que os criminosos sabem dar. O motorista só se lembrou da família e agarrou-se com Deus, mas ainda não se recuperou do trauma. O criminoso preferiu o abraço do coronel Eliésio Rodrigues, que negociou a rendição. Fez mais: ajudou o delinquente a se acomodar algemado no camburão. Devolveu-lhe uma carteira de couro marrom, mas o prendeu em flagrante por roubo. Nem teve tempo para o pobre do motorista. Meu receio é que algum pavão faça a defesa desse comportamento criminoso com a tese do conhecido “distúrbio mental”. Nada disso. Não há que diminuir o feito grave para defender o indefensável. Somente cabe a defesa contra os excessos da justiça, se houver. Defesa não é abrandamento, quando justa a sentença. Trata-se aqui de criminalidade intencional, portanto consciente. “A associação entre doença mental e violência, ao menos na intensidade em que tem sido noticiada, não tem base real”, afirma o especialista Wagner F. Gattaz, professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Justiça, senhores, por favor. O caso é grave. Mas que tem gente que vai jogar no pavão, isso tem...

sábado, 5 de dezembro de 2009

Um urubu de Palhoça

O que era certo é que a ave passava pelo meu quintal uma vez por mês deixando no céu um sentimento de mau agouro. Penso que era por causa do seu estranho paladar: comia o lixo do mundo. Quando chegava, fazia pouso em cima de um poste. Então eu concebia que me cumprimentava de longe. Dali, voava na direção do INPS do Estreito para receber a aposentadoria a que todos têm direito depois da Constituição de 1988. Não chegava a falar, é claro, mas grasnava e dava para entender que de lá ia passar no Ribeirão da Ilha, pois que tinha uma namorada da mesma idade; quase cem anos. Antes de sair de casa já tomava um comprimido azul para não ser surpreendido pelo fantasma da inoperância. Ficava todo agitado, cuspia na esposa e ia para o abraço pensando: “o que vier eu encaixo”. Nem usava proteção porque urubu não é hospedeiro do malvado HIV.

Um dia ele caiu do poste e foi parar no meu gramado se batendo. Fui acudir e vi que respirava com dificuldade. Havia também um pequeno sangramento embaixo da asa. Pensei em levar o bicho para o veterinário, mas me dei conta do absurdo preconceito. O que as pessoas não iriam falar de mim, vendo-me entrando porta a dentro aflito com um urubu nos braços? Fazer respiração boca a boca estava descartado. Não suporto bafo azedo. Fiquei penalizado com a situação da ave e tentei com ela falar. Olhei diretamente em seus olhos, como Deus costuma fazer conosco, e perguntei como poderia ajudá-la. Quando digo isso ninguém crê, mas o urubu pediu para deixá-lo descansar um pouco, pois havia acabado de doar sangue no laboratório do Ministério da Agricultura. Deixei-o numa sombra e fui ao Banco, na certeza de que partiria em seguida. Ao voltar, vi que ele estava lá de olhos arregalados esperando por mim. Deu-me a impressão de que falou que não podia voar; que estava traumatizado com a queda e que perdera a coragem. Peguei-o entre minhas mãos, e falei bem perto dele: “Você pode voar; você vai voar; você precisa voar”. Coloquei-o no chão e bati palmas gritando: “Vai; vai”. O bicho olhou para mim, virou o bico para saber a direção do vento e levantou o desarrumado vôo de volta para casa.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

QUEM ATIROU EM PITUCA?

A veterana cadela Pituca obedeceu ao comando recebido de ir para o meio da rua. “Passa, vá mais prá lá!” Era ordem vinda de gente conhecida; dois agentes da Penitenciária de São Pedro de Alcântara. Portanto, não havia porque não obedecer. Mas a coitada nem chegou a se distanciar cinco metros. Recebeu vários balaços nas costas e ficou agonizando a noite toda. Decerto ficou surpresa diante da agressão à falsa fé. Com certeza olhou para os bandidos, sim, porque isso é coisa de bandidos, e num fiapo de voz perguntou igual Michael Jackson ao repórter inquisidor que o massacrava com perguntas íntimas: “Por que você está fazendo isso comigo?” Ou talvez dissesse aos dois anjos negros: “Se isso vos dá intenso gozo, tirai-me a vida, muito embora não ma destes. Nem vos compreendeis ainda. Haveis de, nalgum dia, padecerdes no meu lugar. Não para aplacar-me a vingança, pois que dela não me valho. Mas para que aprendais o valor das coisas no universo. Para que conheçais a essência da piedade e a grandeza do espírito. Para que aprendais, sozinhos e na dor, a tirardes vossas almas das trevas. Para que vos seja tudo mostrado, o grande e o pequeno, o primeiro e o último, e tudo aquilo que se encontra no meio. Para conhecerdes, ainda neste mundo, o infinito da matéria, a imensidão da natureza, os céus, as terras, os mares e suas ondas. Para aprenderdes a ser úteis e felizes. Senão, morrereis com muita carne e pouco espírito”. Isso parece discurso de tribuno ou poeta, mas bem poderia ser o discurso interno de todos nós para a defesa das pessoas e dos tutelados animais. Isso que eles cometeram é crime tipificado na Lei Federal de Proteção aos Animais vigente há mais de setenta e cinco anos.
Uma coisa dessas só pode vir da arrogância milenar e até bíblica de achar que o homem é superior aos animais e deles pode se servir como bem quiser. Diminuir a população de cães nunca deu certo pelo viés do sacrifício, que é sempre agonizante. Em médio prazo o melhor é controlar a população canina pela via da esterilização, dizem os técnicos em zoonose.
Encontrada no dia seguinte agonizando, Pituca agora vive graças à compaixão de um médico veterinário (Marcelo Fricki, de São José) que lutou em favor do bicho durante quatro horas de cirurgia. As balas entraram pelas costas, atravessaram o corpo frágil e saíram pelo ventre do bichinho. Isso está dificultando a investigação da Secretaria de Justiça e Cidadania. Nem precisa, pois todos na comovida comunidade carcerária já conhecem a autoria. Uns crápulas desses e suas proezas abomináveis deixam rastros de horror até nos corredores do inferno.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

FIDELIDADE CONJUGAL

Zé Negueta costumava chegar em casa embriagado toda santa noite. Não era de dar trabalho à esposa. Mas lá um dia estalava na cabeça que devia se negar a tomar banho, trocar de roupa, jantar e escovar os dentes. Queria somente se jogar na cama e dormir. Quando muito a mulher conseguia trocar-lhe a roupa, mas também nem xixi fazia. “Diacho, eu toda perfumada e ele fedendo dessa maneira”. Às vezes rolava um bate-boca e ela dizia estar no limite. A única coisa que mantinha o casamento era a fidelidade dele. Sim, porque não havia a mínima suspeita de infidelidade. Ah, isso Negueta jurava de mãos postas que nunca acontecera; a traição. Mais a mais, essa havia sido a única exigência que ela lhe fizera: quando fora de casa só podia abrir a bragueta para o xixi nosso de cada dia. Coisa difícil de cumprir, mas não para ele. Também nunca levantou a mão para agredir a companheira. Podia estar torrado, mas não se via nele a fraca intenção de ferir os ditames da lei Maria da Penha.

De tanto beber, o médico dizia que o cérebro dele estava diminuindo tirando-lhe a capacidade de raciocinar com clareza. Daí que alguns mais engraçados diziam que permanecia no casamento porque ele não pensava mais direito. Mas Negueta dizia que amava a esposa de verdade. Dúvidas quanto a esse amor bandido revoluteavam na cabeça dela. Pelo sim e pelo não, ia agüentando a união. “Quando está são ele é um homem bom”. Mas também não se lembrava direito a última vez que o vira lúcido. Se quisesse ela saía do casamento ou dava-lhe uma camaçada de pau, porque grande e mais forte que ele ela era. Os filhos viviam monitorando o pai para não verem o casamento dos dois ruir.

Uma noite Negueta voltou do futebol totalmente gambá e, como sempre fazia, ela cuidou dele pondo-o na cama. Mas naquela noite não conseguiu sequer lavar-lhe os pés e trocar-lhe a roupa por um pijama. Negueta ficou contrariado como gato no cabresto e resmungou muito. Ela então o deixou dormindo sozinho todo enrolado nas cobertas como um pacote de despacho.

No dia seguinte saiu cedo para trabalhar, não sem antes deixar-lhe um bilhete romântico: que o amava, que ele era definitivamente o homem da vida dela. Zé Negueta quis saber dos filhos o porquê daquilo. Soube que a mulher estava trocando-lhe a roupa quando ele começou a falar com voz contrariada:
— Não faça isso moça, eu sou casado e amo minha esposa. Não vou deixar que tire minha roupa; nunca fiz isso e não vou fazer agora. Não vou trair minha esposa. Sai fora, por favor.

Negueta ficou bonito na foto e salvou o casamento.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

MAL AGRADECIDO

Rochinha era dono da farmácia ao lado do Teatro. Um dia apareceu lá um fiscal do Estado que não queria comprar nada. Queria multar o estabelecimento porque havia indícios de irregularidade na escrita fiscal. O funcionário havia dedicado boa parte do mês para proceder e finalizar os passos protocolares para a conclusão da autuação fiscal. O salário até hoje ainda é na base das multas emitidas. Significa dizer: sem multar o servidor não recebe a remuneração mensal. O auditor explicou a metodologia do ato fiscal, na esperança que Valdemar Rocha assinasse a notificação porque já era o último dia do mês. Mais de dois terços do salário do fiscal estavam nas multas daquela farmácia. Tudo o que ele mais queria era o ciente do comerciante para sentir-se um pouco menos angustiado. Foi aí que o empresário engrossou o mingau.
— Você me explicou tudo direitinho, mas não vou assinar esse documento.
— Tem dó, Rocha? Você é um homem esclarecido. Sua esposa é professora universitária. Não complica mais as coisas. Assina isso antes que a gente se aborreça.
— Está me ameaçando? Só assino depois que meu Contador ler a notificação.
— Rocha, só quero o ciente no documento. Você não precisa concordar. Se quiser pode recorrer ao Conselho Estadual de Contribuintes. Tem trinta dias de prazo para tanto.
— Não vou assinar, desculpe.
— Você é um mal agradecido que está de má fé, bem podia ter trazido o contador.
O fiscal estava sentindo que o salário daquele mês ia ser baixo pela primeira vez em sua vida. De nada valiam os argumentos para o outro que maliciosamente queria ganhar tempo e judiar do fiscal. Então concordaram em ir ao escritório do contador, que era no centro da cidade. O empresário entrou e deixou o servidor público tomando um chá de cadeira de quase duas horas entremeados de cafezinhos e recadinhos de que o doutor Fulano não demoraria em atendê-lo. Esse doutor era amigo, vizinho do fiscal na praia e irmão de loja maçônica. O jeito era fazer-se humilde, desde que arrancasse naquele dia o ciente do proprietário e ainda cadastrasse a notificação no Centro de Informática do Estado. Caso contrário não ganharia o que estava acostumado para fazer frente às despesas mensais, que não eram poucas. Finalmente foi mandado entrar no gabinete luxuoso do Contador. Não viu a amizade costumeira de outros dias, não. Só a dureza da face grave como se estivesse diante de um acordo nuclear. O comerciante começou a crescer para cima do fiscal.
— O Estado só quer tributar, ajudar que é bom? De jeito nenhum.
— Rocha, não sou eu quem cria a Lei. Também sou mandado, amigo. Se você analisar vai perceber que fui leve.
— Você está levando o automóvel que acabei de comprar para o meu filho.
Então deu no fiscal a vontade de dizer que ia refazer o ato com piores conseqüências para o comerciante. Mas isso era o mesmo que admitir haver trabalhado errado. Num derradeiro fiapo de recurso dirigiu-se ao microempresário quase em súplica:
— Rochinha, assina isso de uma vez. Vai ser bom para você...
O homem parece que vislumbrou algo estranho contido naquelas palavras. Sabia que estava colocando o dedo na tomada, mas assinou direitinho. (Vai ser bom prá você...).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

OS NEGROS E AS QUOTAS MALDITAS

Humberto Ilha (2003)
Levei uma vida inteira, aqui no sul do Brasil, trabalhando, vendo, lendo e escutando uma bagaceira de conceitos sobre o negro brasileiro. Agora vem o governador do Estado do Rio de Janeiro, Antony Garotinho, através de um Decreto garantir 40% das vagas aos negros nas duas Universidades daquele Estado. Está feita a encrenca. Isso ainda vai acabar prejudicando os negros. Sabe aquele amigo que olha prá você de cima em baixo e diz: vou orar por você? Pois é. Tem gente que com isso arruma muita complicação no céu. Quem é esse tal que se julga com poder para rezar por alguém? Ele que vá orar por ele, bolas. Estou dizendo: os negros ainda vão se complicar.
Intelectuais de lambança estão polemizando a medida. Invocam a força da Carta Magna. Invocam a aplicação da justiça meritória, como sempre se fez nas universidades públicas brasileiras. Invocam a necessidade de uma completa reformulação no ensino brasileiro. Ora, não falemos aqui de justiça senão temos que deixar de dormir o resto de nossas vidas até que haja o resgate social das pessoas seqüestradas de suas aldeias e enfiadas mato adentro por esse Brasil a trabalhar de sol a sol sem direito sequer à vida, quanto mais à dignidade. Se é para falar em justiça, então vamos invocar o discurso do Padre Antônio Vieira: “A justiça nem ao diabo se há de negar”. Não falemos na utopia da reforma do ensino porque vai levar cem anos para ser concluída. O caso aqui é de pronto-socorro mesmo. O doente vai morrer se não receber atendimento de emergência. Falar em discriminação racial agora é cretinice.
Sabemos que a inclusão social é uma necessidade em âmbito nacional. Quem não sabe disso? E por que não se a faz de uma vez? Porque não interessa à minoria dominante. Os negros na América só levaram ferro a vida inteira. Hoje o que vemos na maior democracia do mundo é um movimento racista com sinal trocado. Aqui no Brasil já está acontecendo isso também. Outro dia fui defender essa bandeira e uma amiga negra, professora universitária, respondeu: “Não precisamos mais da sua boa vontade, pois vocês agora vão ter que dar na marra”.
Contemplar o afro-descendente com o melhor do melhor é digno e necessário. Dizer que uma atitude dessas é exercício de mero paternalismo ou maniqueísmo superficial é uma vergonha nacional. Quem não vê o que aí está? O discurso de longo prazo, estratégico, é sempre aceitável. Mas onde estão as ações concretas? O negro está há séculos esperando a compaixão do senhor. E ela não vem nunca. Quem não tem cão caça com gato, diz a trova de latrina. Enquanto os iluminados não põem a andar os seus projetos socialmente corretos, convém que incluamos o excluído da maneira como podemos e sabemos.
Darcy, o Educador, dizia preferir não estar no lugar daqueles que o venceram quando tentava implantar um sistema educacional decente para todos. O negro está freqüentando as escolas superiores à troca de dinheiro pesado. Os poupadores estão dentro das Universidades públicas mantidas por toda sociedade.
Durante todo o meu tempo vivido no Brasil nunca soube o que é respeito, democracia, liberdade, segurança. Ai de mim se não me defender dos Irmãos Metralha por conta própria. O sistema nunca garantiu nada ao povão. Até fico em desconforto quando reflito sobre isso. Nunca esperei respeito de ninguém. Aprendi, com a vida, a me impor para ser preservado minimamente. Antony Garotinho deflagrou algo que há muito já deveria estar acontecendo em nosso país (não gosto da expressão neste país tão ao gosto da esquerda mordente). Por tradição, na maioria das nações, a justiça não socorre aos que dela mais precisam. Digo isso, mas tenho que dizê-lo à boca pequena. Porque sempre vai haver alguém de plantão para me puxar a orelha e ensinar que o poder judiciário não é pirulito para andar rolando na boca de desocupado. É essa ou não é essa a dura realidade? Justiça meritória é mera retórica. Lembram quando a justiça era a sentença do monarca absolutista? Pois então, aquilo era também justiça. Rui ensinava: “quem está com o direito não teme a justiça”. Bonita adaga de duplo corte, pois há direitos inegociáveis no transcurso da vida de todos nós, pretos, brancos, doentes, fetos, velhos, amarelos, homossexuais, mulheres, transplantados e empregados. Estou falando de igualdade, dignidade, educação, vida, terra, moradia, trabalho, comida, privacidade, respeito, saúde, religiosidade e liberdade. Um maluco tinha que o fazer, e o fez para ficar na história. Ademais, o que fez foi com base no já vitorioso sistema de avaliação do ENEN, que é da autoria de toda a sociedade.
Aqueles que desaprovam a medida do governador fluminense puxam a brasa para a sua sardinha, dizendo ser um decreto injusto porque desrespeita o mérito intelectual. Há que se concordar com isso, mas não se pode esquecer o mérito braçal desses irmãos e seus ancestrais que foram jogados na vala da estrada vivendo sabe-se lá como. Eram crianças e idosos no meio da boiada fedorenta e indesejável. Ora que absurdo, esse de levarmos para o esquecimento o que passaram essas pessoas. As cicatrizes do chicote, das algemas, do ferro em brasa e do tronco eles ainda as ostentam com paciência, mansidão e piedade religiosa. Mas quanto disso já está gravado nas espirais de aminoácidos dos atuais negros da nossa geração? Não pretendo aqui incensar o negro e tampouco fazer apologia do mea culpa. Como também não desejo abordar a situação de outras minorias. Não sejamos hipócritas. As outras minorias não viveram o horror da escravidão. Onde andam os negros do Brasil? No oficialato das forças armadas? Não. No clero? Não. Ensinando nas Universidades? Não. Comandando corporações produtivas? Não. No comando de aeronaves charmosas? Não. Essas são carreiras da elite bmv (branco, macho e vip). Se nem nossas mulheres brancas estão lá, imaginem as negras? O negro ou ainda está nos campos escravizado sutilmente ou está nas cidades cheirando, fumando, bebendo e fazendo o que sobrou prá ele fazer. Atualmente o branco não fuma, não bebe, não cheira, não come gordura e faz plástica estética. No meio desse luxo todo, claro, vai faltar a grana mínima para alguém. Mudemos nossa postura sim, dividamos o saber com eles sim, devolvamos a eles o mínimo de dignidade sim. Eles somos nós e nós somos eles. Ou não? Claro que somos. De branca e ibérica descendência sou também um moreno, no dizer de FHC. Se não na pele, mas certamente na alma.
Fui criado no meio de negros e disso me orgulho, pois, como nós brancos, aquele era o meu povo. Melhor ainda, quando me dei conta me vi ilhado no meio dos brancos. Negro não é macaco. Negro não é bicho. Nunca consegui entender o racismo por inteiro. A não ser como um absurdo. O negro não é algo que signifique algo. Não é um símbolo. O negro é e pronto. O racismo é que é um símbolo que significa ódio e medo. E o ódio e o medo emprestam seus nomes a muitos fracassos do espírito.

terça-feira, 7 de julho de 2009

LAURO PENTEADO

Humberto Ilha

Desde que fora morar no bairro, os vizinhos comentavam sobre a vida particular dele. Rolavam umas ofensas à meia boca entre Arílio e Anselmo, solteirões e fofoqueiros.
— Esse Lauro não me engana: é um baita maricão.
— Tem o cabelo e as unhas bem cuidadas para um pintor de paredes, mas pode ser que seja apenas um corno manso.
Era impossível não notá-lo em cima daquela bicicleta ornamentada. Além disso, o homem era o mestre do pedal. Tinha destreza tanto para a velocidade, quanto para desfilar. Sabia fazer as manobras de palco de circo. Com a bicicleta parada plantava bananeira e passava por dentro do quadro. Pedalava de costas; depois era a vez de pedalar com as mãos. Andava aos pulos feito um canguru e terminava a apresentação pedalando em uma só roda como um macaco bem treinado.
Tudo ali falava em favor do capricho do proprietário, que era magrinho como o próprio veículo. Jovem puro, mas, diziam de novo, levava chifre da patroa. Pelo jeito de se enturmar ou não sabia de nada ou fingia não saber, porque levando tanto guampaço havia de ter alguma vergonha de aparecer na rua. A esposa tinha ciúme dele com aquele petrecho engalanado. Desejava — dizia — ter a metade da atenção que ele dava à condução. A penteadeira dela tinha menos adornos que a rival bicicleta. Enfeites como flâmulas de time, par de espelhos, dupla sineta, farol com dínamo, pára-lamas, olho de gato, selim estofado, guidão com barbicachos até os joelhos, deixavam todos admirando aquele homem bom que tinha um sonho: possuir uma “lombreta”.
Se ele era observado pelos vizinhos pelos motivos mais invejosos, com a mesma intensidade ele próprio admirava o estafeta da Marinha quando o via pilotando a lambreta da viúva, que era como ele chamava a pátria amada Brasil. O marinheiro era um cearense que estava prestes a ser promovido. Os vizinhos pediam-lhe para dar uma voltinha, mas ele jamais emprestaria a cinzenta. O máximo que permitia era deixar que olhassem de perto o motociclo novinho em folha.
Num final de tarde de verão o estafeta parou para assistir futebol entre os vizinhos. Como era bom goleiro, foi convidado. Não resistiu e se meteu no meio da trave para estancar a goleada. Nisso aparece Laurinho junto à lambreta que tanto amava. Maurício, o marujo, estava tão focado no jogo que não viu o namoro do pintor. Começou tirando um pozinho inexistente no espelho retrovisor. Depois tirou o veículo do descanso para poder sentir seu real peso. Empurrou para frente e depois para trás. Escutou o chacoalhar da gasolina no tanque. Sentou no banco confortável e sentiu a diferença do que é estar no comando de um veículo motorizado. Quem pudesse andar para todos os lugares sem precisar pedalar, se cansar. Então meteu o pé com vontade no pedal de arranque só para sentir o tremor do bicho nos braços. Mas o marinheiro tinha deixado a marcha engatada. Foi como mexer em gaveta de lacraia. A lambreta deu um salto para frente igual um galão de cavalo xucro, assumindo o comando da desgraceira com o pintor assombrado em seu dorso corcoveante.
— Ponto-morto... Ponto-morto — suplicava já de mãos postas o marinheiro.
Mas Lauro não escutava nada e parece ter mirado em cima de Arílio, que nada entendia do que se estava passando porque pouco enxergava sem o par de óculos. Mas com os óculos em cima do nariz sabia cobiçar a mulher do outro. Assim mesmo decidiu pegar a lambreta à unha. A colisão foi tão forte que o arremessou de encontro à patente do seu Gercino, pai do presidente do Figueirense. Depois pareceu que o veículo escolheu o Anselmo para brincar de pegar. O rapaz saiu a toda na frente da lambreta até dar-lhe um drible magnífico feito um toureador. Na manobra escorregou e caiu. Quando se pôs de pé a mula-sem-cabeça já vinha em sua direção. Nem deu tempo de comemorar o olé. O veículo juntou Anselmo pelo suspensório e jogou-o para cima com raiva, parece. Era como se fora um zebu do inferno se vingando do matador. Camoci, a cachorra companheira, cheirou Anselmo caído e atacou a lambreta. Queria morder os pneus do desenfreado veículo. A essa altura Lauro já estava com os olhos fechados como querendo se proteger de cada esbarrão. Mais parecia um anjo montado num porco. E nisso não viu que o estafeta colocou-se na frente querendo parar a moto. A trombada foi mais feia que indigestão de torresmo. Lauro por certo se perguntava por que foi dar forma ao sonho de possuir uma lambretta. Bem que poderia ter ficado alisando sua bicicleta. Assim não se envolveria numa confusão daquelas. Estava pagando o preço por ousar sonhar. Do chão ainda viu o motociclo desgovernado, agarrado à unha pelo marinheiro, indo se estatelar junto à cerca de cedrinho do seu Hélio.
Camoci abandonou a perseguição e meteu-se a ganir numa desabalada correria em direção à casa. Pareceu ter visto algo assombroso. Era o novilho Diamante do seu Mané Fenca todo alucinado. Livre da corda queria espetar as costas do pintor jogado no meio do campinho de futebol. Lauro mais parecia um ferro retorcido. Sabia que um touro de cola para cima era sinal de perigo. Que um bicho daqueles, com a cabeça baixa e armado com aquelas guampas, era para ser respeitado pelo estrago que sabia fazer. Ele na frente e o novilho insano atrás decretou que gritasse desesperado:
— Tira este bicho daqui.
De repente Diamante parou o intento raivento. A mulher de Lauro apareceu agarrada ao rabo do novilho. Deu um jeito e enrolou o braço na cauda do bicho. O animal queria se soltar das mãos dela. Curvava-se todo para guampear quem lhe segurava a cola. Mas ela, hábil e firme, mantinha-se atrás do bicho com movimentos ágeis de um toureador. Naquele momento Lauro só não tomou chifrada porque ela resistiu e não soltou o gracioso rabo, que terminava em chumaço negro enfeitando o vistoso Diamante.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

IRMÃO PERVERSO

Humberto Ilha

Nem bem cumpriu o compromisso e saiu procurando um amigo que o acompanhasse até lá. Como não achou ninguém, o garoto foi sozinho mesmo. A adrenalina queria sair pelo nariz, de tão contente que o menino estava. Compensou ficar durante hora e meia escutando a freira da catequese. Agora estava livre para fazer a vontade do perversinho coração juvenil. A bem julgar — pensava — não era uma perversidade. Era uma malvadez para beneficiar os usuários do transporte coletivo. “Quem mandou os ônibus entrarem em greve?” Isso era o que escutava em casa, que os ônibus entravam em greve e as pessoas pagavam o pato. “Mas hoje eles vão se ver comigo, os ônibus”, quase decretava para si mesmo.

Embrenhou-se mato adentro por um terreno baldio, agarrou umas pedras e ficou escondido na tocaia. Já o céu se desalumiava, mas dali ele avistava o povo dando vaias quando os ônibus passavam. A maioria da frota estava parada e a empresa fazia o que podia com os poucos veículos dirigidos pelos empregados da administração. A intenção era jogar um calhau no pára brisa, causar um estardalhaço e correr. Agora a encrenca era com ele e não com aqueles bundas-moles que só sabiam vaiar. Escondeu-se um pouco mais, quando enxergou o cabo subdelegado. “Não é bom que me veja; com ele a conversa começa com tabefe,” pensou. Da porta da peixaria vinham os gritos ofensivos do Fodoca, um doente mental que repetia o que alguns motoristas parados mandavam que dissesse. Coitado, repetia sorrindo sem saber por que estava sendo aplaudido. Era manso, mas quando atiçado ele se transformava numa frigideira cheia de óleo fervente. O movimento no Bar Dragão mais que dobrou. A muvuca combinava com o gole fora de hora. O dono não dava conta da freguesia. Aquele vidro de ovo cozido no vinagre, encalhado há dois dias, vendeu imediatamente. Cigarros da Souza Cruz já não havia mais para vender; só os ovais Liberty, que faziam muito estrago nos pulmões.

De repente começou uma chuva de tomates nas pessoas, nas casas, nos ônibus e nas placas de anúncio. Foi quando o garoto fez seu único arremesso. Acertou onde queria: o pára-brisa do ônibus vinte e nove. Logo esse, que inspirava tantos a ganhar no bicho. Dois mais nove? Onze; e onze é cavalo, gente. Nem o Fodoca gritava impropérios contra aquele bicho, minto, veículo simpático que servia o bairro. “É, mas hoje ele queria entrar na greve. Mas não entrou. Vim aqui para agir, e já fiz a minha parte. Não tenho culpa se esse nojento atravessou o meu caminho”. O que fez, estava feito. Foi se esgueirando no matagal para depois ir correndo para casa. Quando chegou à rua onde morava viu uma multidão que vinha. Pensou: “foi bom haver saído de lá, o pau já está comendo”. O povo gritava conhecidas palavras de ordem como as que a gente ouve nos campos de futebol. O garoto passou a acompanhar aquela gritaria. Era um bom fingimento para se desvencilhar do delito cometido. Parou para ver melhor, pois vinha alguém ferido. Procurando o mártir popular, branqueou ao ver o próprio irmão com a cabeça ensangüentada. Quis logo saber quem praticara tamanha perversidade.

— Foi um vagabundinho que apedrejou o pára-brisa do ônibus vinte e nove.

sábado, 16 de maio de 2009

JOVINA

Humberto Ilha

Era preferível haver-me negado conhecer aquele quadro negro de paixões andando à solta na vida daquela criatura. Mulher vigorosa, ela parecia uma terneira distribuindo guampaços para unhar a vida. Ora chifrando um, ora escornando outro, mas sabia capitular diante da bondade das pessoas.

Concedendo-me deambular no limite do que se passa na cabeça dos outros, ouso abrir a mufla da vida de pessoas como Jovina que desde novinha nunca possuiu algo. Cabocla, pouco menos que bugra, há muito trabalhava como sempre fizeram os irmãos e os pais: para os que possuíam, mas ela nem queria nada. Os que moravam bem tinham casa e família. Família, cismava, não queria mais que isso.

Vestir, dar de comer, dar banho, de comer de novo. Enquanto isso, os olhos fechados, via a família e os filhos; só dois ela via. Sem nomes ainda, mas eram os meninos dela. E novamente fechava os olhos para vê-los chamá-la de mãe.

E, no esvair do tempo, assim passavam os dias da moça; dias não, anos. Anos que escorregavam no ralo da pia da cozinha; na pia do tanque de roupa suja, nos pratos por lavar, na comida que sobrava para guardar, no tanto de crianças que não acabava nunca para Jô sonhar com as delas. Não se importava com as roupas usadas que recebia de bom grado da patroa.
— Você — diziam — é como se fosse da família.
Também não se importava de almoçar depois, de não ser levada junto nos passeios, de dormir num quartinho improvisado perto da cozinha e de nunca ter tido uma festinha de aniversário; como as pessoas normais. Só sentia doer a alma à noite, no quarto que lhe acolhia os pensamentos mais íntimos e mais absurdos. E perdida em pensamentos adormecia e sonhava em ter algo também. Ousava, em sonhos recorrentes, ter uma família para si. Não era dona de nada. Só de um sorriso lindo. Ah, o corpo rijo e bonito também era dela. Era? Era. Então resolveu que tinha direito de fazer dele o uso que achasse melhor.

Desde adolescente sabia o quanto era desejada. Sabia mais, que havia falta de carne fresca nos becos escuros. Mas, enveredar-se por esse caminho? Sim, por que não? A lógica da jovem era indecorosa, tanto que, quando censurada, retrucava sem remorso:
—A vida é assim... Ponto!
Rodar bolsa no cais do porto era-lhe fácil. Quase natural, a julgar pelo tratamento que recebia dos que dela se aproximavam. Vinha-lhe do lado escuro da alma esse projeto que foi se ampliando. Não demorou nada e apareceu-lhe vasta freguesia. Reclamando-lhe uma chance, a moça identificava Antenor, o pardavasco mais atento e sedutor dos arredores; um mestre em se travestir de posseiro do corpo das desatentas. Era o mais veemente quando reclamava o direito que julgava possuir sobre o corpinho da moça. Jô sabia que discutir com aquele homem era inútil. Uma porque ele, já morrendo de amores por ela, não escutava ninguém. Outra porque ela, também já vivendo de amores por ele, não se dava ouvidos às próprias palavras. O caso dos dois era um desses difíceis de administrar. Pudera! Um casado e uma vendida. Um clássico do folclore mundial. Quando ela reclamava presença e segurança, ele desconversava.
— Foge comigo Antenor?
Ele respondia com a cabeça que sim, mas em seguida fazia uma figa como a desfazer-se da promessa. Fugir com ela? Nem pensar! Dias depois voltava cheio de confiança no próprio taco. Também, ela jamais trepidava em aceitar os convites daquele estivador que tinha irretocável argumento para manter tudo como estava. Mas não era só isso; tinha uma pegada que as mulheres adoravam. Por certo Antenor não merecia a confiança nele depositada pela moça, que tinha clara idéia da esperteza dele. Contudo, deixava sobrevir-lhe as artimanhas dele porque ela mesma não se entendia. Ficar com um sujeito comprometido, quando tantos havia que a quisessem. Isso não lhe parecia certo, mas também não lhe parecia errado. Admitia, internamente, estar em dúvida. Sofria vendo-se estática, como uma boneca de louça, diante do céu e do inferno. Dividida, considerava corretas ambas as alternativas. Não sabia o que fazer. Perdida na mata escura, ela negava-se a caminhar naquele terreno desconhecido. Sobressaltava-lhe o temor, a covardia e a fraqueza. Na visão de todos, ali se desenhava, com firmeza, a luta entre a razão e a paixão. Por certo havia ali uma promiscuidade entre a ficção e a realidade. Mas era nessa hora que ela mais tinha noção dela mesma. Quando estava com Antenor, tudo era mais simples e ela experimentava o céu. Mas, se ele tirava o time, ela mergulhava de cabeça no caldeirão de enxofre. Ferida de morte por paixão inexprimível, há tempos Jovina escolhera estar no paraíso, desse no que desse. Queria o Noca também para si. Não podia viver sem a presença daquele homem, que lhe dava sustança à alma de mulher calejada no pior. Ao buscar o prazer próprio, Jô revelava-se uma mulher moderna, mesmo com vinte anos por fazer. Ia à luta sem remorsos. Entretanto, em matéria de moralidade ela era uma vergonha. Ela e o Antenor, que era casado e vivia bem com a patroa. Ele era outro que não entendia o que com ele se passava. Amava a esposa, mas não podia ver rabo de saia. Dava um duro fora do comum para não ficar devendo no armazém. E só. Ao resto, tudo se lhe permitia: jogo pesado, farra, bebida e mulheres... Aos dois, de nada adiantavam as advertências que lhes davam os amigos. Eram refratários, parece, ao aprendizado pelo viés dos bons conselhos. Que passasse o tempo, e um dia ambos seriam redimidos pelas dores que, por certo, as conseqüências lhes trariam. Vale dizer, seriam resgatados pela aflição, pregados na cruz. Aliás, por menos não é que a alegoria cristã seja tão eloqüente.

Depois de dormir duas semanas entre as pilhas de madeiras no trapiche, Jovina foi morar no porão da casa de dona Nina, uma gorducha mulher que não admitia aquela vida para a moça. A nova amiga era também uma pessoa daquelas que tinham coisas. Casada com um marinheiro, vivia meses a fio só com os três filhos. Ia fazer de Jovina uma companhia. Nas primeiras semanas, deu-lhe cama e comida. Depois a jovem começou a se virar. Com o dinheirinho que arrumava adquiria coisas também. Ou melhor, coisinhas. Uma cama patente, um armário, um rádio, um fogareiro a querosene, louças, talheres e até um espelho decorado. Nina nunca perguntou o que a outra fazia para cavar a sua vidinha. Até o dia em que, à noite, Jovina começou a chorar desconsoladamente. Soubera que estava grávida. Agora tudo se esclarecia, mas a amiga lhe deu amparo e compreensão mais do que nunca. A mãe de Nina, parteira açoriana que achava solução para tudo, sugeriu que a jovem haveria de ter um homem para ganhar amparo definitivo. Para ela e para a criança que iria nascer.

Quando o navio Pernambuco voltou, Jovina ficou novamente com um velho freguês, o Demerval. Explicou que estava grávida dele. O velho, como ela o chamava carinhosamente, era um senhor grisalho, calmo, charmoso, mansinho, pele clara, olhos azuis, casado e do Rio de Janeiro. Não era lá um galo de raça, mas servia. O homem não se esquivou da paternidade. Pelas contas que fez, bem podia ser o pai. Mais velho que ela quarenta e dois anos, ficou louco de feliz. Já um sexagenário, comemorava, ainda dava no couro. Jô deu à luz uma graça de menino. Demerval solicitou que ela parasse de se virar no cais. Em compensação, todo mês mandaria dinheiro para ela se manter e à criança. Pediu mais, que não saísse do porão arrumadinho da casa da amiga. Que lá ficasse até que a proprietária não mais o permitisse. O velhinho aparecia ali uma vez por ano. Mas quando vinha ficava um mês inteiro. Passeavam, iam ao cinema, ao centro da cidade, à feira, ao armazém. Ela fazia dele um rei, a notar pelo sorriso residente no rosto daquele marujo castigado pelo sol em mar aberto. Não devia ser feliz com a primeira-dama, a julgar pela mágoa transparecida nas entrelinhas de sua conversa. Amava aquela menina, de verdade. E Jovina tinha o sonho realizado, uma cria de si.

Embora curtisse muito a presença do velho e não mais precisasse se virar para se manter, seu corpo voraz de desejo esganiçava ardente naquele porão solitário. Demerval se revelara sossegado demais para o incêndio que era ela. Tinha sonhos recorrentes com Antenor. Via-se nos braços do mulato até quando ia lavar as fraldas do bebê. Sua indigência amorosa punha-lhe um braseiro no peito. Parece que o sacana do Noca tinha-lhe colocado mandinga. Tanto era o tormento, que Jovina deixou de sorrir. E logo o sorriso, seu mais forte atributo físico. Viu-se ante a necessidade de ceder. Só foi encher-se de luz novamente quando não mais suportou a pressão e deixou que se lhe alcançasse a tentação insana. Caiu novamente nos braços de Antenor. De lembrar que quando leopardos acasalam, a intensidade ecoa na floresta. Contente, advinha-lhe a certeza de merecer a felicidade com aquele homem proibido, mas nem tanto. Não era isso o que pensava a esposa traída, picada pela muriçoca do ciúme. Sabia de tudo e rogava praga nas costas da rival. O marido lhe era infiel porque “a vagabunda não respeitava a família de ninguém”. E logo Jovina, que tanto almejava uma.
— Se essa piranha fosse decente, esbravejava a atraiçoada, meu lar teria uma chance. Homens traem porque algumas rameiras facilitam o achegamento.

Jô deitou e rolou com Noca até faltar-lhe o incômodo mensal. Analfabeta, pediu que Nina escrevesse uma carta para o velho. Estava grávida dele novamente. A amiga do peito relutou em fazê-lo, pois não gostava de trapaça.
— A mentira, dizia, é cria do rabudo.
Ainda assim, a carta foi e, de volta, chegou um telegrama informando que seguiria mais dinheiro para os gastos que ela haveria de fazer com o enxovalzinho, o berço e a farmácia.
As doloridas contrações do parto vieram numa noite chuvosa. Já mulher feita, tinha uma rusticidade tal que ela mesma fora buscar a parteira. Anna, tinha acabado de chegar de um morro próximo, aonde tinha encaminhado outra parturiente para o procedimento na manhã seguinte. Pediu um tempinho para engolir alguma coisa e matar a fome. Em seguida voltou a pegar a bolsa com os instrumentos de parto e seguiu para o porão de Jovina. Nina esperava com grande aflição as duas mulheres que enfrentavam perigo no meio da noite. Já havia preparado duas bacias com água quente e separado os cueiros de flanela para enrolar o bebê ou o que viesse daquela barriga clandestina. Não esperava sair dali boa coisa. Em seguida, a parteira fez um exame interno para medir a dilatação do colo uterino e decretou que o nascimento era para acontecer naquele momento. Anna estranhou não ouvir Jovina gemer em momento algum. Nem durante o trajeto e nem após a chegada em casa. Então, perguntou-lhe se estava sentindo dor. Jô respondeu que sim. Olhando mais atentamente, Anna percebeu que os lábios da mulher sangravam. Tamanha a dor que Jovina devia estar sentindo. Deu-lhe, a parteira, um valor extra, pois poucas de tanta fibra haviam passado por suas mãos. A experiente mulher tratou logo de encaminhar os trabalhos, não sem antes pedir proteção celestial:
— Nossa Senhora da Guia, orou de olhos fechados, ide a Deus e trazei socorro a essa mulher. E depois guiai minhas mãos para serem instrumentos do vosso zeloso querer. Amém.
Fez um gesto com as mãos calçadas em luvas, como a expô-las à vista da santa. Jovina acompanhou a prece, mas desejou que a Cabocla Jurema ali também se fizesse presente, pois outra era a fé que professava. Em vinte minutos nasceu mais um menino, perfeitinho, como no sonho. A parteira ficou espantada diante daquele mulatinho chorão. Não podia ser filho do Demerval. Jô percebeu que algo havia saído errado, pediu para ver a criança e também ficou passada. Olhou fixamente nos olhos da parteira e balbuciou algo como “Putz”.
Quando Jovina se recompôs a resposta foi automática:
- É do Noca, dona Anna.
- Juízo, rapariga. É do Demerval e não se fala mais nisso, decretou a mulher.
Em seguida ao nascimento, a velha senhora isolou e cortou o cordão umbilical a uns três centímetros do ventre do bebê, para depois colocá-lo no seio da mãe. Por último, realizou as manobras de expulsão da placenta, das membranas fetais e procedeu a revisão do trajeto do parto. Tudo estava bem.
— Nina, disse à filha, faça uma canja de galinha para ela e cuida-lhe o resguardo. Virei todos os dias até cair o umbiguinho.

E agora? O que dizer ao velho? Anna disse a ela que a lambança já estava feita e que o jeito era deixar o tempo passar. Tinha sido infiel e disso jamais se livraria. O que havia feito ficaria para sempre guardado na escuridão e esperando por ela, Jovina.

Demerval nunca mais apareceu ali. Uns diziam que tinha se aposentado. Outros que havia falecido. Pode ser, mas é quase certo que ele havia feito uma conta e não conseguia fechá-la. Nem ele e nem Antenor que, volátil, também sumiu. O que restou de Jovina desceu ladeira a baixo e sem freios.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

PARA SER ALGO QUE PRESTE

Humberto Ilha
Antônio ficava surpreso quando percebia o entusiasmo na voz do senhor Arno ao se referir à própria esposa. Olhava-o com respeito e, mesmo sem conhecê-la, era capaz de jurar que a alma da senhora Hertha alimentava-se de algo invisível, mas intuído como sublime e superior. Quase adivinhava as atitudes nobres que lhe norteavam a convivência com as pessoas. O marido afirmava ser ela uma pessoa metódica, de tocar violino diariamente. Entretanto, há um bom tempo vinha sentindo que o instrumento estava diferente. Tratava-se de um Guarnieri del Gesù que lho doara o pai há mais de oitenta e dois anos.
— Senhor Antônio, minha esposa achou por bem trocar as cordas deste violino porque estão produzindo leve desafinação. Pede ainda que as troque por cordas de titânio, que são mais próprias.

O luthier examinou o instrumento e percebeu que as cordas estavam em bom estado, pedindo que o homem viesse buscá-lo depois de amanhã. Deduziu que a senhora estava ficando sem força nos dedos já cansados para pressionar as cordas. Ao invés de trocá-las apenas desbastou um pouco a base do ponticello, onde a cordoalha se apoiava. Fez uma marca secreta para identificação futura, experimentou e colocou-o de volta na caixa; som perfeito.

No depois de amanhã marcado o homem foi buscar o violino. Conversando, o artesão ficou sabendo que o freguês lutara na Divisão Blindada de Rommel e que disso se orgulhava. Antônio mencionou um cliente que também lutara na mesma unidade: um tal Zé Kist; Zehb Kist, corrigiu o ancião. “Mora aqui, mas faz anos que não o vejo”. Como era perto do meio dia pediu licença para ir embora.
— Quanto lhe devo pelo serviço, senhor Antônio?
— Não vou fazer preço, pois nem troquei as cordas. Somente abaixei um pouquinho o cavalete para que sua esposa toque com menos esforço.
Então o homem gratificou-o com uma nota de cinqüenta.
— Muito obrigado, Senhor Antônio; o senhor é um homem honesto.
— Honestidade é obrigação, seu Krueger.

Passado um tempo, o alemão voltou com outro incomum Guarnieri para dar jeito na afinação.
— Senhor Antônio, minha esposa desconfia que este também tenha o mesmo problema daquele outro. O senhor pode verificar isso?

Pedindo-lhe que voltasse depois de amanhã, o artesão procedeu da mesma forma e nada quis cobrar, quando solicitado a fazer preço no trabalho realizado. O que recebera da primeira vez estava bem pago. Mas o homem gratificou-o com outra nota de cinqüenta.

Depois de quase um ano o alemão voltou com um dos violinos da esposa. Toninho percebeu ser o da marca feita no cavalete. Mas com um travo de desconfiança notou o homem esmaecido, triste, barbado, magro e com o colarinho puído e sujo por dentro.
— Bom dia seu Krueger, o que houve com o senhor? Nunca mais apareceu...
— Senhor Antônio, minha amada esposa faleceu.
— Oh, meu amigo... Que coisa triste...
— Ela fez a viagem e me deixou — disse com um fio de voz —. Este era o violino dela, que também pertenceu ao pai e ao avô. É um instrumento especial, pois somente uma vez no mês ela o usava para executar uma peça em louvor a Deus Todo Poderoso. É um costume ancestral que me fez prometer continuar. Contudo, não conheço quem mereça possuí-lo. Como o senhor conhece muitos violinistas e demonstrou ser um homem honesto, venho lhe pedir o favor de doá-lo a alguém que assuma o compromisso de minha amada esposa.
— Ora senhor Krueger, como farei para ajudá-lo? Não tenho idéia de quem possa ser digno de possuir um instrumento tão raro e valioso como este e ainda cumprir a tradição de sua família — disse, querendo se livrar do encargo.
— Vou deixá-lo com o senhor, pois tenho pouco tempo de vida.
— Por que diz isso? Está doente?
— Com noventa e dois anos tenho alguma saúde, mas estou deprimido e não quero mais viver sem minha amada companheira. Estou deixando de me alimentar e somente tomando água. Dessa forma aos poucos irei morrendo.

O artesão pensou ligeiro e telefonou para alguém que certamente iria encaminhar o instrumento para boas mãos: o amigo Zehb Kist, que não poderia ir naquele momento porque estava sem alguém para levá-lo. Antônio insistiu, explicando a gravidade da situação do outro. Isso fez que viesse imediatamente num táxi. Quando o outro alemão entrou viu o desanimado viúvo sentado numa cadeira de vime com a cabeça enterrada nos ombros. Antes de se falarem ambos assumiram algo parecido como uma posição militar. O que chegara saudou primeiro.
— Heil! Zehb Kist, Divisão Panzer, Tobruk.
— Heil! Arno Krueger, Divisão Panzer, Argel.
Como se houvessem combinado, Zehb Kist começou a declamar:
— Einigkeit und Recht und Freiheit Für das deutsche Vaterland!
[1]
Sorrindo, o desamparado responde:
— Danach lasst uns alle streben. Brüderlich mit Herz und Hand!
[2]
Zehb Kist insiste declamando:
— Einigkeit und Recht und Freiheit / Sind des Glückes Unterpfand.
[3]
E finalizando, os dois:
—Blüh’im Glanze dieses Glückes, Blühe, deutsches Vaterland / Blüh'im Glanze dieses Glückes, Blühe, deutsches Vaterland.
[4]

Ambos se abraçaram emocionados e iniciaram longo diálogo em alemão. O viúvo foi se acalmando e ganhando brilho na alma. Zeb comprometeu-se a encaminhar o violino para uma pessoa conhecida que daria conta da promessa. Depois chamou um táxi para o irmão de armas.

Antônio quis então saber a respeito do outro; como ficaria, já que decidira não mais viver.
— Fique descansado, homem. Ele garantiu não mais seguir em seu intento. Prometi visitá-lo toda semana.
— Fico feliz com isso, mas o que vocês conversaram logo depois que se apresentaram?
— Na guerra era costume um elevar o moral do outro recitando mutuamente os versos do hino nacional. Com isso ficávamos cheios de esperança e vida para prosseguir na luta. Assim é também na vida, somente seremos algo que preste se vivermos como irmãos.

[1] Unidade e justiça e liberdade para a pátria alemã!
[2] Por tudo isso lutemos irmanados de corações e mãos!
[3] Unidade e justiça e liberdade são a garantia de felicidade.
[4] Floresça esta bênção de felicidade, floresça, ó pátria alemã. / Floresça esta bênção de felicidade, floresça, ó pátria alemã.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

EMBAÇOU

Humberto Ilha

Houve um tempo em que, mesmo já entrado na idade da razão, Adalberto Carijó não escutava tanta sacanagem como escuta hoje em dia. Era um tempo em que as falcatruas existiam, mas parece que não eram tão divulgadas. Será que existiam mesmo? Roubo, boicote, trapaça, mentira, infidelidade, tudo isso existia, mas parece que sempre tinha um por quê. Havia um mínimo de coerência.

Hoje em dia as coisas ruins acontecem sem motivo para tanto. As pessoas que transgridem não pesam mais as conseqüências dos atos que praticam. Ganhar dinheiro é o que determina as ações das pessoas. Mas ganhar somente não basta, tem que ganhar enganando; na esperteza.

Outro dia vi uma entrevista do Maradona dizendo da paixão que o povo argentino tem pelo futebol. “El fútbol es algo que está en la sangre de los argentinos”, gabava-se ele como se fossem os inventores do esporte. “El mejor del fútbol es la trampa, el logro”, quer dizer: a tramóia. É de aceitar o drible refinado durante o jogo, o gol sem querer, o gol contra, mas a tramóia como aquele gol de mão na Copa de 1986 contra a Inglaterra, isso não e não. Fosse decente o atleta, ele próprio, invalidaria o gol marcado ilicitamente. Depois veio dizer que não foi a mão dele e sim a de Deus. E ainda se gaba da imundice que produziu. Ficou muito longe do zagueiro maranhense João Evangelista Belfort Duarte, que num jogo colocou a mão na bola dentro da área e o juiz não vira. Ele próprio se acusou e chamou a atenção do juiz para o pênalti que cometera. Com esse nem precisava de árbitro. Deve estar batendo bola no céu. Para Maradona o melhor juiz é o rabudo. Vai te catar, nojento.

Pois Carijó comprou quatro barrinhas de cereal para ir comendo aos poucos durante a semana. Na terceira ele notou algo se mexendo dentro do papel e viu uma larva. Quase deu um ataque de nervos. Já havia notado algo estranho na anterior. Quando em casa abriu a quarta larva, digo quarta barra, o que encontrou? Ela, a larva. Mexendo-se toda alegre, como a rir dele. Verificou o prazo de validade e: peguei você, desgraçado — disse com o dedo no nariz do fabricante — comi três bichos desses, mas isso vai me render boa indenização por danos morais. Aqui está minha aposentadoria. De inocente consumidor passou a juiz perverso. Ficou maldoso como petiço de guri. Já procurou o telefone do órgão de defesa do consumidor.
— Não precisa haver dolo, seu Carijó. Cabe a indenização, sim. Venha à repartição que encaminharemos o processo.
Um ano de aporrinhação nas audiências de conciliação. Adalberto não queria saber de acordo e ainda ameaçava divulgar a notícia na TV. Quando o fabricante pedia de mãos postas para ele não fazer isso, aí mesmo é que Carijó se abagualava e redobrava a ameaça em voz alta. Achava-se o todo-poderoso diante do gigante domesticado. Ia faturar alto em cima do dragão fumegante. O fabricante fingiu-se abaladiço até que achou um erro formal no processo. Para não mais discutir causa ganha propôs uma indecência ao reclamante. Uma barrinha grátis de cereal por dia durante um ano. Aquela indenizaçãozinha mais pareceu um guascaço no lombo do homem que sonhava ganhar algum sem muito esforço. Se quisesse mais que fosse reclamar com o papa. Carijó acabou fazendo acordo, mas depois de um mês não podia mais ver aquelas barrinhas, quanto mais comê-las. O fabricante melhorou o processo de fabricação e Carijó, desconfio, aprendeu que não precisava exagerar na dose quando alguém ficasse de joelhos pedindo clemência.

terça-feira, 24 de março de 2009

AULA DE CATEQUESE

Humberto Ilha


— Quem responde?
Todos levantaram o dedinho, pois era pergunta fácil. O Bispo de Roma tinha acabado de assumir. A primeira tendência de cada criança era de levantar o dedo para responder. Ainda mais depois de lerem no semblante do sacerdote a resposta, eis que não desgrudava os olhos de uma branquíssima fotografia papal. O menino de bonezinho assustou-se como se levasse uma chicotada.
— Você, que está com esse boné ridículo dentro da igreja.
O garoto examinou bem a foto, decifrou dois sopros baixos e:
— Bento Dezesseis, padre Osvaldo.
— Bento Dezesseis...

O velho padre sentiu ruminar por dentro um alvoroço raivento, porque a resposta estava correta. Queria abalroar os petulantes, isto é, aqueles que ousavam ensaiar uma resposta correta. Não havia chance das crianças sobreviverem, pois o religioso era do tempo de Pio Doze.
— E antes do Santo Padre Bento Dezesseis, quem era o Papa?

Agora poucos dedinhos no ar. O encolerizado ministro mirou na menina que às vezes falava um pouco alto.
— Você, menininha assanhada que matraqueia o tempo todo.
A garota sabia responder, mas não tirava o olho dele em busca de uma dica que lhe reforçasse a convicção. Olhou em redor e somente vislumbrou a imagem do Senhor, que muito bem sabia não ter sido um papa e sim o Deus-Todo-Poderoso quando andou entre nós. Terminadas as observações, virou-se para o sacerdote e disse com segurança de gente grande:
—João Paulo Segundo.

“Calma Osvaldo, esses fedelhos não vão agüentar por muito tempo. Credo-em-cruz, mais parece a voz do pé-cascudo no meu ouvido. Vá com calma, Osvaldão. Calma? Se pudessem eles me papavam. Vivem contando piadinhas de padres por trás de mim. Agora é a minha vez; se fosse de minha escolha eu não dava a primeira eucaristia para nenhum desses capetinhas que agora posam de anjinhos”.
— E antes dele? Quem foi o Papa antes de João Paulo Segundo?

Nesse momento o homem deixou escapar um sorriso perigoso somente notado pela catequista que o acompanhava há anos. “Este homem tem um espírito voraz que vive a se propor enigmas e sobre eles acampa para folhear-lhes a natureza mais escondida”. A mulher temeu pela próxima criança a ser alvejada pelo rancor do religioso e escreveu algo num pedaço de papel e entregou para a menina que estava ao lado. Imediatamente o papelzinho circulou entre as mãozinhas ansiosas. O padre demorou demais e apontou para uma aluna que já havia lido o recado:
— João Paulo Primeiro.

“Já vai acabar o oxigênio. Degusta a falsa vitória deles, vai”.
— E antes dele? Quem foi o Papa antes de João Paulo Primeiro?
Sua voz troou mais lentamente que das vezes anteriores. Antegozando o triunfo, o pároco começou a rir da carinha das crianças. É que parecia ter visto subir enorme sinal de interrogação no meio da igreja. Mas o papelzinho já circulava veloz entre a garotada, saído que fora das mãos da dissidente professora. E com o dedo gordinho de unhas bem cuidadas a revolutear no ar:

— Você... Você não... Deixa ver se adivinho quem sabe.
Ele queria era adivinhar quem não sabia, porque a descompostura já estava preparada. Somente um levantou o dedinho, o irmão do coroinha:
— Padre Osvaldo...
— Errou. Eu nunca fui Papa na minha vida.
— Desculpe, mas eu quero ir ao banheiro.
O padre mediu o garoto do pé-a-ponta e condicionou:
— Só se acertar a resposta.
— Paulo Sexto; fui — respondeu o arrojado pirralho já na porta.

“Vai fundo agora, Osvaldão. Deus que me perdoe, mas agora me deu até vontade de fazer xixi”. Era a excitação, o jorro de adrenalina diante do abalroamento final. Depois da resposta do pirralho um grande alívio descansou o espírito da catequista, que tudo fazia para não ver estilhaçados os sonhos de primeira comunhão daquelas crianças. Mas o homem queria mais encrenca com os pequenos.
— E o arcebispo de Florianópolis, quem é?

O papelzinho já circulava antes mesmo de haver largado a pergunta. Um estranhamento atingiu a espinha de cada criança. A professora agarrou-se na cruz de Nosso Senhor e esperou os cravos.
— Ivinho, responda.
— Padre Osvaldo, o papelzinho aqui está errado, porque o nome do arcebispo é Dom Murilo.

domingo, 8 de março de 2009

O FOSSO

Humberto Ilha

Não gosto, mas sou obrigado a abrir o miolo para ver o que tem lá dentro desse pesadelo desde a infância. Estou dentro da cabeça do aldeão na paisagem gelada do norte. No sonho vejo tudo pelos olhos do espadilha de adultos, crianças, doentes e idosos em lugar ainda guardado de roubo, abuso e miséria. Ali o cansaço e o sono desdormido que há para dormir. Nele, no maldito sonho, a ausência de somente um dia de paz no lugar do remorso que grita no oco da cabeça. Nele o medo da surpresa da barbárie que sempre espreita os mansos. Mas um dia, ó morte que te fiz? Muito, por certo. Chega o dia do despojo de vida e fim. A rinha desconforme pela vida! O ajuste pelas gentes concorde o costume. De um lado a arena que sangra de outro a rendição para o resguardo da aldeia. Lutar e perder trará a sobrevivência escrava. Render fará a aldeia aliada do algoz. Se assim, não sobrevivo ao acordo.

No sonho a beira do fosso de seis metros de fundo com doze cães treinados para lacerar. Doze delitos cometidos pelo espadilha contra o seu próprio povo: traição, roubo, mentira, preguiça, covardia, vício, inveja, orgulho, ódio, ciúme, homicídio e vingança.

Um sabre curto e morrer como valente, mesmo sem merecer. Os meus não choram, porque os escravizei. O inimigo não sorri, quer a justiça para a aldeia. Diante do fim estou entrando em choque. O remorso chega tarde, e à má hora, pedindo a clemência covarde. Agora é pular no fosso e morrer. Encaro o medo com um grito de pavor. Alguém me sacuda. Porque se alguém me acordar, juro, vou trilhar o caminho estreito da compaixão. Vou viver meus valores de berço.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O REGENTE

(Texto ficcional inspirado no conto “O Artista do Trapézio”, de Franz Kafka)
Humberto Ilha
Um capricho nem sempre é encarado de boa vontade pelas pessoas. Contudo, quando advindo de um artista, parece que todos se empenham em compreender. Daí que, o mestre de quem falo, ordenara sua vida de tal maneira a permanecer dia e noite no coro da igreja enquanto durasse o tempo para o qual fora contratado para reger o coral. Assim fazia por dois principais motivos: um mandamento profissional de perfeição e um capricho que se tornava cruel. Não arredava pé dali de jeito nenhum. Todas as suas necessidades eram voluntariamente satisfeitas por intermédio da coordenação do presidente e da diretoria do coral. Os cantores se revezavam para que nada faltasse ao regente.

Esse modo de viver não criava dificuldades especiais entre ele e as pessoas. Mas o regente era caprichoso e cobrava-se muito quanto ao próprio desempenho. Sem embargo, não deixava por menos o desempenho dos voluntários sob seu comando despótico. Era um tirano, e ninguém lhe contava isso, pois, se numa hora era cruel e duro, em outras era amável e doce. Alguns lhe lembravam a semelhança de personalidade que tinha com Mozart. E, quando isso chegava aos ouvidos dele, arrancava-se-lhe um sorriso bonito de explícita vaidade.

Ele era assim, mas os padres e os diretores do coral o perdoavam, porque se tratava de um artista extraordinário. Além disso, era sabido que vivia assim para estar sempre em forma artística. Ele também gostava de estar sempre lá em cima do coro. Até o banho ele tomava numa banheira trazida para cima. A água servida era carregada para baixo em baldes pelos cantores numa hora de nenhuma atividade na igreja. Contudo, suas relações humanas estavam muito limitadas. Alguma vez ele se permitia conversar com alguém que não fosse do coral; que subisse um colega regente para conversarem longamente. Às vezes, papeava com algum operário que consertava o teto do templo, trocando com ele algumas palavras. Ou com a zeladora da igreja, que fazia a limpeza diariamente. Com os conhecidos conversava de longe lhes dirigindo algumas palavras gritadas, mas respeitosas, se bem que pouco compreensíveis. A não ser por essas ocasiões, estava sempre solitário.

Muitas vezes algum fiel elevava o olhar procurando ver quem tão maravilhosamente executava peças sacras. Mas nada encontrava a não ser o som do órgão, que enchia toda a igreja. Tampouco o regente sabia que estava sendo observado por alguém que lhe admirava a arte. Nos ensaios, dava verdadeiro show de impaciência com os cantores menos dotados de alguma virtude vocal. Chamava qualquer um à atenção, homem ou mulher, jovem ou idoso. Se o infeliz resmungasse alguma coisa, ele então migrava para a humilhação. A cólera sobressaía-lhe do peito para esquecer que era um cristão praticante. Usava termos, como voz-de-galinha, miado-de-gato, gata-no-cio, voz-de-caipira ou voz-de-machorra, para caprichar na degradação. Vangloriava-se de ter um ouvido superior ao de todos ali. Melhor, que era dotado de ouvido absoluto. Não restava nenhuma virtude para ninguém. As que o coral possuía estavam com ele, regente. Quando o coral se reunia sem a presença dele, seus membros consideravam-se um bando de quadrúpedes.

Com tanto ódio pelos erros dos cantores, ele foi fazendo, sem o perceber, que o coral minguasse. Quase ninguém se submetia a cantar com ele. A não ser alguns que o toleravam porque era um ser humano. Alguns lhe davam conselhos amigáveis para melhorar o tratamento com as pessoas. Contudo, ele não aceitava isso de quem quer que fosse. Proclamava que preferia ficar com poucos e bons a muitos e ruins. Os coralistas queriam tirá-lo da regência, pois não agüentavam mais tanto rebaixamento moral. Mas, como dito, os padres gostavam muito dele. As missas eram belíssimas com ele na direção musical. Tinha ele grande prestígio junto aos dirigentes da igreja, pois conhecia como ninguém o rito de todas as cerimônias.

Tanto fez o regente que, um dia, após determinar não admitir a ausência de quem quer que fosse a uma missa, os cantores — todos — se combinaram e deixaram-no sozinho na hora do santo ofício. Viu-se sozinho no coro. Não se deu por vencido. Tocou todas as peças sacras com raro brilho. Naquele dia não houve cantores. Somente o órgão e a voz do povo. Ficou bonito e diferente. Mas o regente não aturou aquela desfeita. Chamou o pároco e contou-lhe o sucedido. O padre quis relativizar a atitude dos coralistas, eis que tinha inúmeras queixas contra o regente. Mas o maestro não aceitou. Disse que a partir daquele dia queria receber honorários dobrados. O padre ponderou não ser possível, que a Igreja vivia da entrega voluntária de cada fiel. Mas o dirigente argumentou que os coralistas deviam fazer um mutirão para arrumar o dinheiro que estava pedindo. Então o padre pediu para ele se lembrar de que estava dentro de uma igreja. Foi aí que o regente se deu conta do embaraço em que os coralistas o deixaram. Estava realmente sozinho. Acabava de levar uma admoestação do próprio padre, seu admirador. Então caiu num choro convulsivo de quase meia hora. O bondoso padre também reconheceu que havia exagerado na dose e lhe pediu desculpas. O regente o desculpou, mas não parava de chorar. Estava inconsolável. Foram chamados mais dois padres que não deram jeito na situação. Então o pároco chamou a mãe do regente. Quando ela chegou, ele se atirou em seus braços. Ela o abraçou carinhosamente e sentiu as lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto. Estreitou seu rosto infantil molhado entre suas ternas mãos, fechou os olhos como num sofrimento sincero e balbuciou: “Meu filho, vamos embora. Quando você fizer doze anos, prometo trazê-lo de volta”.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

OMBRO, ARMAS!

Humberto Ilha

Quando cheguei à Praça XV o militar já estava lá, vendo tudo de cima. Com certeza madrugara para conseguir o melhor lugar. No carnaval também estivera naquele local bizarro. Sabe-se lá como se pusera tão no alto. Desconfio que deva ter sido com a ajuda do colega ao lado. Sozinho é que não deve ter sido. De se imaginar como desceria dali. Talvez fizesse isso numa hora sem alguém por perto. Quadro insólito deveria ser ele descendo daquela peanha de pedra. Por mais que se colocasse elegante deixaria transparecer estampa imprópria na hora de colocar um pé aqui e uma mão ali para se manter longe de desabar. O temor de perder a compostura com certeza trai-lo-ia diante das réstias iluminantes do sol da manhã. O gosto de estar no alto, no andar de cima, parece próprio dos que nada tem a esconder. Dos que nunca fracassaram no desempenho da capacidade geral para a cooperação social.

Quanto a mim, olhar o desfile do alto era um desejo recorrente. Muitos subiam em árvores, se apinhavam nas sacadas, se acomodavam em cima de muros e edifícios. O Dia da Independência era o verdadeiro teatro da cidade. A cada ano se extraía nova linguagem social. Uma poesia ainda não falada. Uma compreensão ainda não assimilada, não aprendida, não expressada em anos anteriores. A cidade se abraçava para o rito do Sete de Setembro que só sabe ser majestoso quando acontece nas ruas.
Cedo, muitas vezes eu chegava para o desfile conseguindo bons lugares. Ficava ali, na corda, aguardando durante horas, olhando as pessoas chegando, conversando, se acomodando. Contudo, à medida que o momento se aproximava, era tragado pela multidão e acabava vendo pouco. A me contentar, apenas o som intenso do evento. De se ver, somente as pernas dos que passavam. Conhecia prazer olhar o trabalho dos narradores, repórteres e auxiliares das emissoras de rádio. Ocupados em transmitir e preparar equipamentos, davam ares de que não tinham brecha na agenda para perceberem a muvuca no entorno. Iam e vinham, como bichinhos, não enxergando ninguém. Ainda que numa estudada aparência, era a elite: Antunes Severo, Acir Cabral, Souza Miranda, Eugênio Luiz e José Valério. Um time e tanto, mesmo com a ausência do Roberto Alves, que ainda era pintinho na Rádio Anita. Naquele dia não estavam todos ali. Mas reconheci o João Ari, único trajando vistosa calça faroeste com a bainha dobrada para fora, auxiliado nos cabos de transmissão por ninguém menos que Cici, que muitos chamavam de Gambá e até de Oraci. Há esse tempo, eu havia concebido um poleiro para ser encaixado no alto de um poste e de lá tudo ver melhor. Um trambolho que nunca ousei construir. Mais-a-mais, temia que a polícia me arrancasse de lá a tapas. Era uma época em que o toque dos adultos ainda me era dolorido; tanto dentro quanto fora de casa.

Conferindo o retelho das nuvens, vi o oficial no melhor ponto. Num estranhamento o flagrei com a atenção voltada para o mar da baía sul, lado oposto ao da alameda por onde haveriam de passar as tropas. Homem grande, mais que o habitual, trajava gala, o que lhe dava um ar de distinção. Dos que eu já conhecera era o mais nobre, mas também o mais acobreado e o mais sofrido dos oficiais de toda a brigada. Pontes de Miranda decerto com ele aprendera que “sofrer não significava desviver, mas conhecer e sentir a vida.” Devia tê-la conhecido profundamente; a vida.

Revestido de luvas, dragonas, espada e quepe, trazia à mão vistosa luneta, que bem merecia ser insígnia de comando. Provável que para melhor fazer o reconhecimento do terreno, coisa bem a gosto de comandantes. Quase certo que divagava em recordações de campanha enquanto aguardava o passo grave dos irmãos de armas. Olhar no longe, parecia sobrepor ao mar seu vulto de fantasia para encaixar no ouvido, que é por onde quase tudo começa, o vento-sul com notícias de algum lugar conhecido. Dava mostras de que procurava localizar a ilha dos Ratos, a julgar pela posição do rosto virado para aquele rumo; mal sabia que agora já designada "do Carvão". Pareceu-me querendo entender o ambiente estranho daquela praça se sobrepondo ao miramar e ao mercado público com as pessoas, os escravos e as cozinheiras atrás de carne, farinha e pescado. Pensativo, nem se mexeu quando me agarrei à bainha de sua espada para erguer-me um pouco acima das pessoas. Fiz como já houvera feito antes, agarrando-me à generosidade dos bons para subir os lanços que precisava subir para aprender, ser útil e ver melhor. Fiquei bem colocado. Não tanto quanto o militar que, repito, supunha importante a julgar pela farda e o porte. No rebrilho do sol da manhã, parecia ter o austero rosto ornado por um bronzeado meio sorriso. Pudera, com a visão que descortinava não era de admirar. Fiquei encarapitado naquele granito que, de tão polido, parecia ter sido esculpido para ele. Bem me lembro que fiquei sem me mexer, sequer aplaudir, para não chamar-lhe a atenção. A despeito de muito me impressionarem as manobras das tropas terrestres, da ordem unida, dos veículos, das encilhas dos animais, das bandeiras históricas, dos galhardetes das pequenas frações e das ordens bem troadas dos comandantes, dele nada escutei que lhe traísse emoção. Nem mesmo quando o locutor oficial nomeava os heróis do passado e suas batalhas: Luis Alves de Lima, Antônio Sampaio, Fernando Machado, Felisberto Caldeira de Andrada, Farroupilha, Curuzu, Passo da Pátria, Tuiuti, Potreiro Pires, Linha Sauce, Curupaiti e Humaitá.

No chão, o som de fundo dos coturnos marcava os compassos dos dobrados que a banda executava. Tudo isso me deixava encrespado, do pé à ponta. Era aflição e alegria, tudo misturado. Meu coração parecia haver recebido, lá no oco, uma pastilha que permanecia fervilhando concedendo-me grande prazer. Ali, naquela atmosfera de patriotismo íntimo eu me consagrei a viver meu quinhão social em favor do Brasil pelo viés do Exército. E então fiz a escolha primordial da minha vida. Fiquei alucinado, palavra de honra.

Ocorreu-me perguntar ao respeitável oficial sobre as evoluções militares que iam acontecendo. Ele dava-me respostas convincentes. Num português impecável, lembro, disse que o mais importante trabalho daqueles homens ficava invisível no coração deles. Não havia dúvida de que estava diante de um patriota, longe de um daqueles cujo poder somente serve para mandar soltar e prender. Vi tratar-se de um cavalheiro, a julgar pela paciência no responder. Arrisquei saber de onde viera.
— De Nossa Senhora do Desterro, mas ainda jovem me apartei dos encantos da capital para cursar a Escola Militar da Corte. Trabalhei duro, guardei a fé no Brasil, lutei batalhas impossíveis no sul até a derradeira de sessenta e oito, que me levou o corpo que ora longe inverna.

Tudo falava sem que me olhasse. Não experimentei estranhamento, pois que tudo perguntava sem nele também colocar meus olhos. Com atributos tão singulares, seria alguém conhecido? Ainda uma vez gentil, saciou minha angústia interrogativa:
— Sou o sargento Kawahala, fotógrafo. O da estátua é o coronel Fernando Machado de Souza, herói morto na Batalha do Itororó contra Solano.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

LITERATURA (Deu no DC)

Duas feras das letras na Barca dos Livros
A Barca dos Livros de hoje recebe dois grandes nomes das letras catarinense. Sérgio da Costa Ramos e Flávio José Cardozo, autores de centenas de livros, vão falar sobre a crônica, o estilo de texto escrito de forma livre e pessoal, que aborda assuntos da atualidade nos mais variados temas como política, artes, esportes, cotidiano, entre outros. A edição A Arte de Escrever Crônicas tem entrada franca e começa às 20h, na Rua Senador Ivo D’Aquino, 103 (em frente aos trapiches), na Lagoa da Conceição, em Florianópolis.Os dois escritores lançaram juntos recentemente a obra Duas Violas Arteiras. Ambos dividiram páginas espelhadas por cerca de um ano no Diário Catarinense, jornal no qual Sérgio possui uma coluna diária. Eles aproveitaram a “vizinhança” para trocar alguns provocações amigáveis, crônicas travessas e molecagens que agora estão reunidas neste livro. Esse duelo literário poderá ser conferido também neste bate-papo gostoso de dois escritores que transformam um dia simples numa bela, engraçada, inteligente e interessante crônica. É a maneira que eles encontraram de ver a vida com outros olhos.Informações pelo fone (48) 3879-3208.
Fonte: Diário Catarinense edição de 23 de janeiro de 2009.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

MAU PRESSÁGIO

Humberto Ilha
Era urgente ter uma conversa séria com a mãe. Arãozinho não pretendia estudar para ser padre. E também não queria mais ser coroinha da Igreja. Era-lhe insuportável ver tantos coleguinhas debocharem e cuspirem na sua cruz. Um dia enfrentou a velha de homem para homem: ia acabar com o calvário da sua amargurada vida. Nem bem havia começado a argumentar quando ela o interrompeu para repetir a ladainha de sempre: que o rapaz fora consagrado à vida sacerdotal desde quando resgatado do mar após dia inteiro de busca e suplício da família.
— Eu nem me lembro disso.
— Não blasfema, insolente.
— Quem mandou a senhora fazer uma promessa ridícula dessas.
Foi pior ter aberto o diálogo com a professora. Dela escutou que era possuidor de méritos proféticos; e de fato era mesmo. O menino nem sabia como essas coisas aconteciam. O entendimento daquilo, nem o mais letrado desenredava. Era complicado explicar como o garoto adivinhava o futuro e encontrava coisas escondidas. Eram fenômenos que aconteciam quando menos esperava. Vinham do nada e a qualquer momento. De repente sentia mudança no ambiente ou um desconforto passageiro. Podia contar, algo iria acontecer. A mãe, que não perdia um lance da vida do rapaz, tinha lá suas razões para alicerçar a fé inabalável na carreira religiosa do filho.
— Se é para viver com esses dons — dizia —, então que seja com as vestes de um sacerdote.

A maior preocupação de Arãozinho, naqueles dias, eram os colegas. Muito difícil ficar escutando um xingatório do tipo: "carola". Ainda que revidasse baixinho: “excomungado”, escutava em seguida: "papa hóstia". Então replicava com maior ofensa: “tua mãe não é séria”. Era terrível escutar: "sacristão", para arrematar com ódio: "teu pai é um corno". Só podia responder às provocações da matilha de forma muito tímida.

Um dia, Corpus Christi, estando perfilado para acompanhar a procissão carregando um incensório improvisado, notou a presença da cachorrada antegozando a teatral passagem pela frente deles. "Isso não vai prestar" — cismou pessimista; — "ninguém merece tanto enxofre". Olhou para o sacerdote que estava pálido. Era inverno, mas o homem suava no rosto. "Que lhe teria acontecido?" Pensou em pedir-lhe ajuda, mas parecia que o padre tinha visto fantasma. Ocorreu-lhe que o religioso devia ter muita fé para estar ali tão doente assim. Diante de tamanha pressão, decidiu abandonar o cortejo mentindo.
— Padre, tenho de ir à patente agora.
— Nada de banheiro. Se fosse um desmaio eu aceitaria, mas titica de jeito nenhum.
E o bondoso homem rompeu a marcha sem dar chance de reação ao menino. Problema maior era o dele, padre. De manhãzinha constatara que haviam roubado diversos utensílios sacros da igreja. Nem havia dado tempo de registrar queixa na delegacia de polícia. Isso ficaria para depois. Agora, o importante e mais urgente era dar conta da cerimônia.

Foi só Arãozinho passar pelos meninos e começou a escutar os elogios. E o pior, a corja vinha acompanhando a cerimônia pertinho dele, todos no gargarejo da primeira fila. Cabeça baixa, trazia o ar compungido de quem estava diante do próprio Deus. Tinha que dar essa impressão para a mãe que a tudo acompanhava. Quem primeiro pisava no tapete de flores era o inefável Corpo de Deus através dos pés do sacerdote, que ali era simples assistente ritualístico — conforme pregava. Esse ambiente de encantamento fascinava o garoto. Contudo seus coleguinhas estavam longe de entenderem tal situação no mesmo grau. Achava que as pessoas não se permitiam ofuscar pela presença de Deus. Por isso os coleguinhas não respeitavam o papel que ele estava exercendo naquele momento. Diante disso não se achava com suficiente vocação para a vida religiosa, pois tinha vontade de esganar um por um.

Quando o acompanhamento chegou defronte ao armazém Casemiro Rosa parou para uma estação ritualística. O incenso fumegava além do combinado. O sacerdote fazia sinais desesperados para o pequeno ajudante abaixar o volume do fumo. O garoto não sabia manusear aquele turíbulo todo amassado e velho. Quanto menos fumaça o padre pedia, mais o braseiro consumia o pó do incenso. Arãozinho resolveu abafar o turíbulo fumegante com a própria batina na ânsia de atender a ordem do apavorado religioso. Foi pior, não suportando o calor da brasa entre as mãos juvenis, acabou por liberar o medonho fumacê. O padre quase chorava de raiva. O menino tentou balançar com velocidade a peça repositória das essências aromáticas. Até resolvia um pouco, mas quando parava o movimento, por cansaço, o fumo era ainda maior. Ocorreu-lhe uma idéia que, no improviso, poderia funcionar. Começou a fazer círculos com o incensório como os de uma roda gigante. Fez um ar de riso, porque funcionou bem. Era-lhe menos cansativo, eficiente e divertido. Mas o revés da sorte mandou-lhe recado: a peça ritual, que em muito se parecia com uma chaleira de chimarrão, desprendeu-se da correntinha e foi cair com grande estrondo em cima do armazém. Dois quilos de puro ferro fumegante. Havia fiéis que, do final do cortejo, juravam ter tido uma visão de arrebatamento espiritual, tamanha a esteira de fumaça, ruído e brilho que produziu o lançamento daquele meteoro esotérico. Sem ação diante daquela visão quase profética, alguns se ajoelharam contritos e esperaram pelo pior. Era coisa de Deus ou do diabo? Isso todos iriam ver em seguida.

O impacto fez um rombo no telhado e um vulcão ficou ativo dentro do sótão do velho prédio. O buraco fumegava semelhante chaminé e dele saiu um homem fumarento com um saco cheio de coisas às costas tilintando desordenadamente. Correria na procissão; "desçam o homem do telhado". Quem era, quem não era? E o turíbulo, como fica? Logo depois, e graças à polícia, o equipamento litúrgico já estava incorporado ao cortejo, mais amarrotado e com o pito já apagado.

Arãozinho, contudo, não estava mais ali. O sermão ia ser grande. Então começou a arrumar as roupas na mochila para ir para a casa da avó na Terra Fraca. Não deu tempo. Porta adentro entrou a mãe, que foi perguntando:
— Arão, como fizeste aquilo?
— Aquilo o quê?
— Incrível, hás de ser mesmo um padre. Quem, senão um iluminado, iria adivinhar que o ladrão da igreja estava escondido no sótão do armazém?
— Oh não! Por que me persegues, encosto?

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

SAI DESSA!

Humberto Ilha
Não posso deixar de falar nas coisas que ouço. Algumas, de tão cabeludas, me deixam confuso e sem ação para rebater as declarações de descrença que sou obrigado a ouvir. O que vou relatar aconteceu na subida da Serra. Zé Amaro adoecia grave e não batia a caçoleta. Naquele vai-não-vai há um mês, a teimosia em permanecer vivo era desaprovação geral. Há tempo andava com aquele ar de quem morre em breve, mas morrer mesmo que é bom ele não morria. Orgulhoso empedernido que a todos contrariava e aborrecia, fincava pé nas convicções inarredáveis e dali não se movia. Além disso, era metido a valentão; mas isso era só de boca. Coitado, talvez quisesse viver mais um pouco além do pouco. Porque a vida, mesmo longa, é muito curta. Homem de muitos pecados e pouca água benta, maltratava dona Alfreda e ainda vivia de caçoada com as outras. Além de avô amargo era um atleta dos abismos da vida. Assim fazia para lá ficar enquanto concebia planos inconfessáveis. Havia descoberto que devia praticar mais a beira do abismo. Ousar mais, ir lá onde o medo tritura a coragem. Sem freqüentar o limite, sem esgarçar a dor, não conheceria a substância de uma vida insolente diante do medo. Para, quando aquela hora chegar, caminhar de olhos fechados até o precipício que o tragará. Porque a morte é a morte e a quem a terra entulhar, nunca mais o largará.
Com os anos a patroa havia acumulado muitas contrariedades advindas dele. Agora, diante da morte do marido, lembrava da brigalhada que ele aprontara por conta de um zelo em vida. Ela havia comprado dois terrenos no cemitério. Um para ele e outro para ela. O agora moribundo não concordara ser enterrado num só lote, se um dia — claro — largasse a casca. Os que ficassem haveriam de sepultá-lo sozinho e no meio das duas vagas que ela comprara. Tinha mal-morrer e mal-dormir. Quantas noites ele se atravessara na cama deixando-a de fora? Nos finais de semana era certo acontecer. Mamava misturado de conhaque, vinho e funcho para depois ficar entregue aos urubus. Ela que não deixava, embora dele colhesse estranha gratidão: "Vá dormir no quartinho, nega". Para não levar adiante o rolo, ia concordando. Fosse ela encarregada de enterrá-lo o serviço seria feito como planejado, um no ladinho do outro. Se contrário, que ele fizesse como quisesse, pois já estava morta mesmo. Não queria se ocupar do furdunço antes da hora. Prática, Alfreda alinhava os ouvidos no vento e nada mais entrava ali que não quisesse. Antevendo o velho esticar o pernil já dava mostras de sentir os percalços da viuvez. Quanto desejou isso a ele, o luto. Quanto desejou morrer antes do companheiro; pelo menos ia descansar. Mas parece que a vez era do teimoso. Ele é que ia para a sombra.
Diante da prolonga, a torcida pressionava e bradava dolorosas nênias em silêncio: "esse velho que não morre; basta desgraçado; vai em paz, estrume". Em verdade, desde que adoecera e ficara grave, não mais se ouvia em casa os rugidos de luta que sabia produzir. Não se escutava mais os gritos ferozes de ameaças e nem seus queixumes tristes. Muito menos mais se ouvia o estalar do ameaçador relho de couro cru no cano da bota preta. Até um fantasma vestido de mortalha roxa deixou de aparecer na sala. Daí que seu Régis, um barbeiro-farmacêutico, sugeriu se lhe desse boa colher de graspa. "Mas isso só com a ordem de dona Alfreda" — que estava ocupada na cozinha. Chamada, fez o que tinha de fazer: trancou o nariz do marido e forçou o líquido descer goela abaixo. A dose fora excessiva, disseram depois. O homem branqueou, fixou os olhos na esposa, careteou um pouco e defuntou. Era o que faltava para o desafogo do entorno doméstico, que bem não era uma família e sim um ajuntamento, tamanho o desprezo pelo extinto, agora sem mais proveito. Quanto alívio lhes trouxera aquela unção tão incomum. Cochichavam que o derradeiro trago dera-lhe o descanso da sua amotinada alma.
Haviam de tomar conta do morto. Ninguém melhor que o compadre. "Chama o cabo Dourado" — um corneteiro do quartel e cúmplice das boas farras do finado. Quase um profissional do luto, aos que partiam se oferecia a dar banho, vestir o terno, amarrar o queixo bem amarrado, tamponar tudo, deitar na essa, juntar as mãos, atar os pés, acender as duas tochas, encomendar o corpo, ler trecho próprio da bíblia, providenciar a certidão, combinar o enterro e executar Silêncio junto à cova. Sensível, não conseguia tocar a música sem que lhe escorresse sentidas lágrimas pelo rosto. Era raro fazer, mas, considerando o renome do falecido, finalizava o concerto com o terceiro movimento da Marcha Fúnebre de Chopin. Ali ele se perdia nos caminhos da arte incompreendida. Alguns achavam aquilo luminoso, mas a maioria não gostava e ia dando o fora diante do agouro saído daquela trombeta do anjo vingador. Tudo isso o velho cabo fazia como se procurador do além. "No meu fraco pensar" — dizia — "um sepultamento é um ato comunitário para recomendar a alma a receber a graça divina. Para harmonizar — pela mediação da cabocla Jurema — o ambiente de dor que o finado deixa. Para consolar a família a receber os desejos de leve luto. Um velório seguido de sepultamento" — ensinava — "é desafio que dura o dia inteiro". Concluía: "enterrar com dignidade um e consolar os parentes que um dia também irão, pois disso ninguém escapa". Havia um cunhado metido ali que resmungava muito; fazia tempo que não aparecia. Naquele dia apareceu com um crucifixo acorrentado no pescoço, o agourento, para recomendar que do morto nada mais se falasse. "O que ele fez, está feito; a conferência dele agora é com Aquele-lá-de-cima; e tem que enterrar logo o corpo antes que comece a feder".
A vizinhança começou a chegar e dona Alfreda botou de lado o desânimo para providenciar assistência aos amigos e parentes que vinham de lugares distantes para prestar tributos ao finado. Café preto, rosca de polvilho, pão de casa, geléia e licor de butiá. Tão rápido preparou a mesa que se desconfiava que havia preparado tudo antes do marido morrer. Vez em quando algum parente vinha beijar a testa do branco defunto. A reza do terço não parou até a meia-noite, quando a maioria foi dormir.
Dia amanheceu, galaria cantando há muito, e a tampa do caixão já ameaçadora encostada na parede da sala. Chegaram mais pessoas e mais tumulto. Mas o corneteiro botava ordem em tudo. Conhecia o ritual mais que ninguém. Marcado para as onze horas, resolveu que o sepultamento havia de ser antecipado, pois o ribombo de trovoada vindo dos lados do Morro Grande deixava todos assustados. Trovão vindo daquelas bandas era certeza de muita água. Com sorte daria tempo para o procedimento. "Enterro debaixo de chuva era uma coisa desventurada" — dizia.
O cortejo seguia apressado com o caixão carregado por seis homens. Dois mais traziam os cavaletes de descanso. Mas havia uma ponte no meio do caminho. No meio do caminho havia uma ponte que dava susto nas pessoas. A bem dizer não era sequer um pontilhão e sim uma pinguela improvisada, uma estiva. Quando chegaram ali já chovia um bocado. Tudo liso, o chão, as alças da urna, a ponte, os sapatos. A segurar a caixa mortuária, somente dois homens iam transpor a carga: um na cabeça e outro nos pés. Um peso enorme daqueles tinha que ser para dois dos bons; acostumados a fazer força.
E dê-lhe chuva e mais chuva. O riacho enchia rápido. Um dos que seguravam a urna — Mané Caetano, que também atendia por Graxaim — usava sandálias de dedos e se equilibrava andando de costas em cima da pinguela. Ninguém vai de retro calçando sandálias sem que arrume confusão. É no que dá: perdeu o calçado, parou para enfiar o pé e não mais se reachou. O da outra ponta — um tal de Quiça — queria andar e empurrar. Daí que o de costas corrupiou no tronco liso e levou todos para dentro do bueiro. A caixa escura bateu forte no passadiço e caiu na enxurrada. O defunto foi de borco para o lado oposto. Efeito dominó, um foi se agarrando no outro e todos para dentro do rio. Não foram poucos os esbarrões, cabeçadas, gritos e encontrões. Eunice, moça com nome a zelar, caiu focinhada na lama aparecendo-lhe a calcinha de saca branca que a mãe lhe fizera. Recompôs-se rápido, mas deu para ver a logomarca: Farinha de Trigo Aymoré, Marca Registrada. Isso e mais a estampa de um indomável silvícola com uma pena atravessada no nariz. Posteriormente, quando ela aparecia nas domingueiras, como zombaria, os rapazes passavam o dedo indicador entre o nariz e o bigode lembrando o adorno indígena. Não suportou; de tão humilhada foi morar na capital. Isso ela não merecia, pois que era mulher de valor, com grande capacidade de suportar situações-limite, com paixão de viver. Provou-o ao longo de toda sua honrada vida. Era dessas pintadas com tintas fortes.
Salva esse, puxa aquele, empurra pra cima o outro, retira o defunto. "Onde está o morto?" A torrente levou. Os homens no rio de transbordo a mergulhar, a procurar o corpo. Duvidoso de crer, mas o falecido conseguiu ficar engalhado por um braço na margem. Fosse pelos acompanhantes, Zé Amaro se perderia naquela inundação. Parece que seu instinto de preservação ainda estava bem vivo. E com isso acabou salvando a cerimônia. Aparece novamente o cabo Dourado, deita o homem no ataúde e prega a tampa com uns pregos enormes ruminando: "Fica-te aí, encrenqueiro". Virando-se para o coveiro: "toca a sepultar de uma vez, porque este negado não está cooperando".
Anos depois a esposa é que se foi. Então começaram a preparar outra cova ao lado da sepultura do marido. Dourado era homem acostumado com os assombros daqui e do além, mas naquele dia por pouco ele também não foi dançar nas nuvens. Com os olhos fixos dentro do buraco, mastigando incerteza, viu que a carcaça de Zé Amaro estava atravessada no terreno ocupando duas vagas, bem do jeito como queria. Ruminou com meio sorriso: "Velho teimoso!"