quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

O BOM SAMARITANO

Humberto Ilha
Passava das nove da noite, quando Thumé Cruz saiu do escritório. Esperava o ônibus quando ouviu um gemido. Demorou a achar o homem na vala. Puxou o coitado enquanto os carros passavam, mas pessoas se ajuntavam. Constatou fratura na perna. Pensou em hemorragia e pediu chamarem o resgate enquanto fazia torniquete com o próprio cinto. Colocou a mão sobre o nó do garrote para sentir calor intenso no local. Pensou em jorro de sangue. “Faça agora o que tem de ser feito”. Ao ouvir aquela voz cadenciada sentiu um assombro, parecia ser do senhor da escuridão. Contudo, não se permitiu pavor. Naquele instante só queria a polícia e dar o fora. Mas o dono do escuro insistiu dizendo que ia desmaiar. “Meu São Francisco de Assis!”, murmurou Thumé. Foi quando a própria mão ficou azul além de quente. Começou a passá-la suavemente na perna do homem. Daí que tudo foi se recompondo estranhamente. Continuou com os movimentos na ânsia de ver no que ia dar aquela alucinação. A perna se refez curada e o homem voltou a si. “Meu São Francisco”, essa era a intimidade de Thumé Cruz. Perguntou e o estranho disse que estava bem. Sorriu levemente e desatou o nó do garrote. Dos ferimentos não ficou vestígio. O outro agradeceu e pôs-se de pé. Thumé Cruz ficou ajoelhado ainda por um tempo com o coração aos solavancos. Os lábios e o nariz anestesiados. Tudo instantâneo, mas estava chocado. Havia acabado de presenciar algo maior que ele. Só não pensava em ser coisa do capeta porque já ouvira a respeito.
Quase chorando Thumé Cruz abriu os braços respondendo que não sabia, quando o bombeiro perguntou como estava. Foi convidado a entrar na ambulância, que saiu dali com a sirene aberta para o hospital. O médico disse que ele estava só assustado e aplicou-lhe uma injeção. Nem deixou dizer que o atropelado era outra pessoa. Quando acordou pediu para ficar descansando. Sozinho e com a cabeça no acontecido, eis que entrou um casal. Thumé sentou-se e percebeu que eles se entreolharam. O homem maneou a cabeça como a indicar Thumé, que reconheceu nele o motorista da ambulância. Nunca tinha visto a mulher, mas ela lhe entregou uma pequena sacola. Thumé Cruz viu que ali estava o próprio cinto usado no socorro. Ela sorriu:
— É o cinto dos iniciados na Ordem de Samaria.
— ???
— Francisco de Assis é o Primeiro Guardião.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

NATAL, UM PONTO DE VISTA

Da pertença da leitura do natal,
Bem assim também da quaresmal,
Que Jesus por nós se entrega em dor.
Nasce e morre nosso Salvador.

Madeiro da cruz e cocheira, a esperança,
Quis Jesus a um só tempo então juntar
Mostrando pela fé que o dom de amar
É fortuna nos deixada como herança.

De pensar em qual dia se deu mais
Se na cruz, em suplício solitário.
Ou então, muito mais, pelo contrário,

Ao nascer, nos tornando imortais.
Teve a dor do Senhor breve passagem,
Pois nascer foi Seu ato de coragem.


(Humberto Ilha)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ENCOMENDA MUITO ÍNTIMA

“Eu sou desonesto. E pode-se sempre confiar num desonesto, porque vocês sabem que ele sempre será desonesto. Honestamente, são os honestos que devem ser vigiados. Porque nunca se sabe quando eles farão algo incrivelmente estúpido!” (Cap. Jack Sparrow, Piratas do Caribe)

Humberto Ilha
Sabe a Leila Diniz? Dizia que conhecera muitos cafajestes, mas todos eram uns anjos de pessoas. Ocorre que esse tipo de gente parece ter sempre missão na aldeia dos bons. Canalhas que indultamos porque deles precisamos. Refinados, não se prestam a cuspir na calçada ou deixar a toalha molhada em cima da cama. Nada disso. Com eles o buraco é mais embaixo. Adoram dizer: sou seu dono. E isso é que é grave. A metade deles desconfia que esteja fazendo benemerência. A outra metade tem certeza. Em férias por São Paulo, presencie uma campana policial na 25 de Março para neutralizar um desses que se achava o cara. Um tal Simão Cireneu que aguardava o momento de a mulher passar por ali para dar o bote. Todos os dias ela fazia o mesmo trajeto; já era caçapa cantada há dias. Ia ser facinho; um serviço de acordo com o que ambos haviam combinado sem dizer palavra. Ambos não, os três. A mulher era de idade. O camelô era um louco, um espião da vida alheia, um pervertido. Já avistara o vadio e esfregava as mãos, ansioso pelo momento do ataque. Num quase sorriso mastigava o cigarro de tanta tensão, ao mesmo tempo em que esfregava as mãos com impaciência. Conheciam a mulher, inclusive seus mais secretos escaninhos. Ela possuía o que Simão queria, pois carregava em vida o que não queria carregar. Dizia ser fardo, os pertences: pulseiras, bolsas, anéis, cartões e dinheiro. Cismava: “Tanta gente passando necessidade e eu no luxo”. Desejar pouco para viver. Dia claro, aquela era uma rua inimputável diante das contravenções de toda hora; diante da banalização dos pequenos crimes que dali sobrevinham. Ao contrário de muitos cenários, aquele era um local para se trabalhar de dia; com o sol resplandecente. Fosse à noite não haveria gente, platéia, nada. Só o caminhão do lixo e os enfeites de natal apagados. Cireneu era um solitário no cavar a vida. Roubar ou aliviar o fardo alheio? Disso fizera uma opção de vida. Não se incomodava com os pensamentos que tinha. Era a sua lógica, o seu absurdo, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em ser roubado, mas sabia de gente que morria de vontade de sê-lo. Os que se deixavam roubar eram os doentes, os ingênuos, os medrosos, os culpados, os trouxas, os otários. Os que roubavam eram os cafajestes, os espertos, os donos das ruas. A mulher ele conhecera sentada ao lado no ônibus. Sorriram e se encontraram depois: "só pela amizade", mentia ele. Saíram diversas vezes sem nunca darem aos encontros algo diferente que o sentido da amizade. Ela sincera, ele tramando. E concluiu que era ela quem dele precisava; que lhe cabia a tarefa de mitigar os mais íntimos desejos dela; reclamos de sua indecifrável alma. Viu-se um anjo de capa preta diante da mulher.
— Você se importa — perguntava ela — de eu ser assim?
Ele fazia que não com a cabeça. O camelô impaciente vez por outra cruzava o olhar com o do bandido e mandava, por gestos, quase uma intimação. Dava ares de um juiz de futebol, só que não interferia no resultado. Não conseguia vender nada enquanto não trombasse com algo forte no começo do dia. Nervoso, não tinha sossego enquanto não lhe viesse o descarrego da alma lavada. Enquanto não sentisse o cheiro do sangue do outro; amargava enquanto não sofresse nocaute. Então ela apareceu na rua apinhada de gente. Mas tanta que dali trescalava cheiro de pele humana. O rapaz foi-lhe ao encontro e percebeu-a diferente: olhos cristalizados, narinas ofegantes e mãos trêmulas. De olhos fechados, esperou o inevitável. Foi despojada de tudo: pulseiras, relógio, brincos, carteira, telefone, cartão de crédito... O rapaz não disse palavra enquanto atendia a mulher, que gemia baixinho. Havia nela uma expressão de alívio e um meio sorriso no rosto. Entre eles havia um entendimento da transgressão, que revelava o prazer proibido albergado em cada um. Ela fez-se paciente e resignada, cônscia de estar cumprindo penitência; viajava. Temeu demais aquilo que podia acontecer. Encontrou algum consolo quando aconteceu. Antes de sair dali o safado disse-lhe dentro do ouvido:
— Sou teu anjo negro. Eu te alivio a mochila que carregas. O covarde declamou isso inspirado na própria coragem que veio do medo estampado na alma da mulher, que permanecia imóvel e esvaindo-se ali mesmo. Ao passar pelo mascate, a mulher dele recebeu uma toalhinha felpuda para ajudar na faxina e a proclama gritante:
— Vi tudo; nada perdi; foi chocante. Deu-se ele também por aliviado da pressão interna. Estava feliz como pinto no lixo. O cafajeste, já identificado, ainda estava lidando com um remorso que não conseguia sentir. Pilhado em flagrante, reinventou-se em amargurada vítima para escapar. Mentiroso, confessava arrependimento. A mulher precisava equilibrar o gosto de ser roubada, que tinha origem num passado que iria continuar supurando. Ele merecia cadeia. Policiais sequer encostavam-lhe a mão. Haveria de ser encaminhado à delegacia de menores. Aparentando agilidade e sangue frio, respondeu canalhamente ao repórter:
— Roubo? Apenas aliviei a embarcação para que não submergisse.

sábado, 6 de dezembro de 2008

ALQUIMIA DO BEM

Humberto Ilha

A moça padecia de um mal que ninguém conseguia sequer diagnosticar. Consta que nascera saudável e com dez meses contraíra doença neurológica que a incapacitava progressivamente. Com vinte anos, e cadeirante há dez, os pais a levaram para uma consulta com o doutor Asteróide do Espírito Santo. Após exames diversos decidiu que a moça ficaria no hospital para um tratamento que ele havia concebido. Entretanto a jovem estava há uma semana deitada numa maca da emergência sem conseguir vaga para um quarto. Quase tudo ali lhe era negado: a higiene pessoal, o repouso, a dignidade, a gentileza de um sorriso. Quando sucedia precisar de banheiro era tirada dali às pressas. Viajava pelos corredores olhando o teto e vendo os rostos distorcidos das pessoas; sentindo cada solavanco das rodinhas da maca nas curvas para chegar ao elevador e lá ficar confinada, acompanhada pelo murmúrio do engenho das correntes e dos contrapesos da caixa de aço. Depois, de volta, tudo de novo sob o comando de outro atendente, pois o que a trouxera fora lanchar ou entregara o plantão para descansar no colchão macio de casa. Sentia-se longe da própria casa diante do efeito maca-na-emergência. Uma semana ali varreria da memória de qualquer um os contornos da própria carteira de identidade; mas a moça era valente e resistia, saindo daquela impiedosa cena para se abrigar na vigorosa esperança que lhe nutria a alma.

Todos os dias o médico dizia que estava providenciando um lugar. Durante o tempo que a visitava parecia que também fazia alguns exames misteriosos. Espetava-lhe as partes dormentes das pernas, das mãos, dos braços, dos pés, das costas, do abdome e da cabeça. Muito embora ela experimentasse leve desconforto, mantinha-se resignada durante os exames. Guardava uma fé quase absurda de cura mais-dia menos-dia. Mas esperando naquele corredor ela também pressentia que não ia acontecer nada.

Daí que os pais decidiram levá-la para casa à revelia do médico. Tiveram um trabalho imenso para encaixá-la naquela cadeira da má sorte. Ajuntaram as coisas e já iam saindo quando o doutor chegou.
— Vamos levá-la para casa. Isto aqui é desumano — disse a mãe.
— Ela não pode interromper o tratamento.
— Tratamento? O senhor está de brincadeira.
— Ela tem de ficar no hospital. Esperem que irei providenciar um quarto. Além do quadro clínico tenho de resolver o enguiço administrativo. Odeio isso.
Saiu e não voltou, mas dois funcionários de roupões verdes, pantufas e toucas acomodaram-na num quarto com mais duas mulheres. Então os pais puderam dormir em casa naquela noite. Dia seguinte voltaram e não a encontraram. Havia duas camas vazias e uma doente que dormia profundo. Deram-lhe alguns safanões delicados para acordá-la, mas parece que ela queria ficar dormindo. Com os olhos fechados perguntou "o que é?"
— Onde estão as pacientes? — perguntou a mãe com angústia na voz.
— As duas foram levadas à noite, mas parece que uma não resistiu.
Disse isso e voltou a dormir no abismo. Pai e mãe entraram em aflição e desembestaram correria ao posto de enfermagem saber o certo. Escutava-se o desespero deles pelo corredor e muitas pessoas vinham ver. Nisso veio também o doutor Asteróide. Ambos voaram-lhe em cima para dele exigir explicações. Nem o deixavam falar, que, ainda assim, mantinha-se calmo.
—Vamos até o quarto — precisou decretar. O que aconteceu com ela e com mais alguns ainda não sabemos explicar. O certo é que isso está me trazendo algum desgosto e nociva fama porque está fora do padrão profissional. Só não abandono isso porque o meu sonho de ajudar os doentes é muito maior do que eu. Mas confesso que essa loucura está ganhando vida própria e ficando maior que tudo.

Encontraram a paciente que havia dado aquela notícia trágica dormindo como desfalecida. Para surpresa geral a jovem sumida saiu andando sozinha do banheiro enxugando os cabelos. Abraçou os pais e contou que estava curada. Que fora levada dali na madrugada para uma sala com pessoas que a esperavam. Que o doutor disse que iam fazer nela uma cirurgia, mas que durante o procedimento ninguém tocou nela. Que fora trazida de volta e dormira bem o resto da noite. Quando acordou quis levantar-se e tomar um banho.
— O resto vocês já sabem.

Os pais procuraram o médico que não estava mais ali. Foi encontrado combinando no telefone móvel outra cirurgia para aquela noite, pois somente a noite sabia guardar os segredos dos fenômenos de assimetria.