sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O INEVITÁVEL DANIEL BARBADA

Humberto Ilha

— Pode haver coisa mais absurda? Estudante civilizado não há de trapacear nas provas. Só se for por cima do meu cadáver.
Era um vexame. Um rapaz tão galante levar tão grave sermão de mulher tão cheia de letras quanto bonita. Mas também era quase uma imprudência falar de maneira tão áspera a alguém tão engenhoso, porque ele era bem capaz de passar por cima dela para colar só por deboche.
Ninguém pode afirmar que "desta água não beberei". Sempre existe o imponderável argumento da outra parte. Seja em palavras, gestos ou intenções. O rapaz demonstrava saber dar a volta por cima das situações já perdidas. Sabia curvar a espinha diante de ventos fortes, mas não deixava de aplicar um pouco de fortidão na pegada com as mulheres. Era disso que elas gostavam nele; aquela irresistível pegada.

Nesses tempos em que se convive com escolas invadidas por vândalos, professores agredidos por delinqüentes armados, tiroteios, tráfico de drogas no portão dos colégios e gravidez precoce tolerada nos pátios, colar devia parecer um delito menor. Mas não, agredir, tirotear, fumar e cafungar são crimes que não mais surpreendem a polícia. Quando nem a escola, que é o recurso de edificação da sociedade, é digna de respeito, o alarme dispara causando susto em todos. Delito não menos pior, copiar clandestinamente num exame escrito é algo que ensangüenta a honra, liquida a carreira do estudante e deixa o professor vacilante. Felipe Gonzáles garantia que o estudante que manchasse o currículo com um episódio de cola jamais seria político na Espanha. Um delito tão pequeno, praticado por pequenos, mas que vira um dragão para o resto da vida. A cola é irreparável e não merece perdão pelo intrínseco da sua gravidade. Conheci alguns dos bons nessa arte. A eles jamais me entreguei para deles extrair sequer notícias de futebol. Quando passam parece que ainda ostentam a tatuagem da vergonha na testa. Não foram e não serão confiáveis porque a prática da cola é sorrateira, planejada e mentirosa. Tanto que sobressalta os educadores e os que zelam pela formação ética da juventude. Muito pior se o delinqüente for universitário. A aflição do professor que pilha alguém com a boca na botija semelha-se ao luto pelo próprio filho. Ficará ruminando muitos dias: “Onde foi que eu errei? Veja o suíno que irá me substituir” Se o transgressor for mulher, dessas que escondem a tramóia nas coxas, pode contar: é daquelas tendentes às negociações suspeitas. Emparelhar com elas num casamento é chifre certo.

Barbada, o que estava levando aquele sermão escandaloso, era desses com as pernas demasiado cabeludas para enternecer alguém. Portanto, tinha que arrumar um jeito de esconder o cambalacho noutro lugar. Fotógrafo competente, Daniel passava boa parte do escasso tempo livre a reproduzir e reduzir textos escolares. Transformava tudo em instantâneos de trapaça para se dar bem nas provas. Na hora oportuna fazia sumir todo o petrecho nas furnas da própria roupa. Era comum vê-lo com maços de cigarros, cada um encobrindo um estelionato. Mesmo em dias de calor trajava famigerado fardão de lã cheio de bolsos. Aparecia no abafo todo encilhado de malfeitor. Bruxo requintado, jamais fora pego em flagrante. Professores faziam de tudo para ele não colar; pois colava. Uns diziam que eles sabiam e condenavam-no a morder o próprio rabo como no mito da serpente cósmica. Deixavam-no proscrito na circularidade da própria falência. Outros não compreendiam como o rapaz se valia desse meio suspeitoso se possuía brilhante inteligência. Outros ainda lembravam o lendário gol de mão de Diego Maradona: "indigno, mas fantástico". Aliás, é de se perguntar se os que baixam o pau no argentino teriam a grandeza de, no lugar dele, pedirem ao árbitro que invalidasse o gol em nome do fair play, mesmo que disso resultasse a derrota da própria equipe. Duvi-de-ó-dó.

A seu favor Daniel confessava-se inseguro para fazer provas escolares. Contudo, em seu benefício havia o carisma de ser um profissional requisitado pelas principais agências publicitárias do país. Conhecia o mundo, tornando-se um humanitário diante do que captou e transformou em instantâneos. Suas fotos eram veementes nas exposições e publicações que organizava. Suas lentes focavam as pessoas na guerra, no trabalho, na alegria, no esporte, na escravidão, na orfandade, na dor, na morte, na ternura, no abuso, na solidariedade, na prepotência, no desamparo, no amor. Sua câmara foi intensa e denunciadora de barbáries contra as gentes do Timor Leste. No Zaire dos diamantes foi levado pelas mãos de crianças aos locais de ternura embrulhados pela dor de uma guerra até hoje não prescrita. Trabalhando tão apaixonadamente, aprendia que a Geografia era o espaço onde as pessoas viviam. E esse era o motivo pelo qual estava ali. Queria ser um fotógrafo-geógrafo; pois que o deixassem sê-lo, por certo para o bem. Contudo, em dias de exames virava uma pilha de nervos e tudo ficava embaralhado em sua cabeça. Pressionado errava até tabuada de seis. Para os que duvidavam mostrava a caixa de calmantes que tomava à noite. Conseguir notas boas era uma barbada quando o professor era descuidado, gabava-se. Para a maioria das pessoas ele era um safado. Rodava pelos corredores que um professor chegou a pegá-lo com o caderno aberto no chão e o baita só se dando ao trabalho de copiar, virando as páginas com a absurda destreza dos dedos dos pés. Diziam que o professor, diante de tamanha cara-de-pau, não tivera coragem de dar-lhe zero. Pelo jeito Daniel Barbada também conhecia o íntimo das pessoas ao apostar na falta de ação do mestre, porquanto um delito desses, praticado com o sol a pino, era coisa de merecer redondo zero. Mas, dizem, o catedrático tremelicou de tanta vergonha que sentiu pelo velhaco. A partir desse episódio a fama do fraudador e sua inditosa arte só fez crescer. Quando o Diretor tomou conhecimento do fato, chamou a professora que havia jurado barrar-lhe a farsa. Aquela braba do esculacho e do corpo torneado descrita no início. Barbada estava no meio de um rolo enorme, contudo alegava jamais haver usado os petrechos malditos para fazer as provas. Admitia preparar, mas não chegava a usá-los. Dócil, chamava “aquela fratura exposta” de lembrete ou material de apoio. Ninguém lhe negava a fama construída na falcatrua, mas também o reconheciam como um sedutor convincente.

A última prova do curso seria realizada sob a supervisão daquela fera tão amarga quanto linda. Se Barbada lograsse êxito sem colar na prova, sua mala cheia de culpa ficaria esquecida para sempre. Tinha que aceitar o desafio, mas estava acovardado: “Sou bruxo, mas nem tanto. Esse sargentão fareja tudo e vai me espicaçar”. Pensou em fazer um acordo com o Diretor, mas não lhe ocorria nada lícito que viesse em seu amparo. Sem saída, concordou com os termos da proposta. Faria a prova final sozinho e sob a supervisão da tal que lhe jurara nocaute. Havia feito duas provas com notas baixíssimas, precisava sair-se bem na última. Foi no banheiro e voltou trajado como um feiticeiro para o desonroso truque de tirar água de pedra. No entanto, ao botar os olhos na professora ficou paralisado. Como era linda aquela mulher. Agora é que se dava conta vendo-a num minivestido de seda preta que lhe desvelava as formas perfeitas. Como um radar, Daniel percebeu a existência de uma tatuagem indefinida no tornozelo da moça. Isso dava a ela um ar de independência e charme. O desenho, quase impreciso sem seus óculos de grau, parecia querer proclamar a própria presença naquela parte quase oculta do corpo da deusa. Lembrava algo já visto, contudo não conseguia decifrar aquela figura. Foi aí que sentiu estrondear-se por inteiro experimentando o angustiante ímpeto de gritar que havia achado a mulher da sua vida. Mas Daniel Barbada sufocou o sentimento para não piorar ainda mais a situação em que estava metido. Recompôs-se nos alicerces, mas parece que ela percebeu-lhe os estragos.

Mandado começar a prova, tudo tentou que sabia na arte da diabrura da cola. Inventou mil truques e nada dava certo. Estava cada vez mais tenso. Meia hora de prova e não respondera nada. Então começou a rezar e imaginar o conteúdo das perguntas. Oxossi, o que mandava na mata, haveria de lembrar-se dele mais uma vez. Entregou a alma e matutou: "O que o destino me mandar, eu encaixo". De repente pareceu que lera em algum lugar a resposta de uma das questões, escrita com inconfundível caligrafia feminina. Esboçou ar de riso e cravou a alternativa correta. Voltou o pensamento para o santinho caçador de dragões. Assumiu o trejeito de quem estava raciocinando e veio-lhe a segunda resposta. Antes de responder olhou a professora, que demonstrava estar virando uma tocha ardente diante dele. As respostas vinham em borbotões, como uma torneira que não consegue estancar a água. Barbada respondia as perguntas com rapidez uma atrás da outra. Quando respondeu a derradeira, a mulher parecia estar cheia de luz. Instalou-se dentro dela um desabalar nevoento de fantasias. Havia passado por um jovializante processo e agora estava arpoada. Estava deixando o mesmo que uma porta aberta para o ladrão. Daniel combinou consigo mesmo: "Ela voltou dos infernos". Olhou aquele fermento indomável com um travo de paixão. Quis entregar a prova e sair dali, mas, como que por magia, ficou preso à presença dela. Estava também arpoado. O coração queria saltar-lhe pelo umbigo de tanto querer, mas seus olhos não se despregavam da cola caprichosamente escrita naquele tornozelo de fada.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

LADEIRA ABAIXO

Humberto Ilha

A semana no pé daquela serra majestosa iniciava com rebuliço; pelo menos no povoado. Nada assombroso se o começo da lida não fosse às quatro da manhã. Em meia hora o ônibus sairá para engatar com o horário do trem das seis para Tubarão. "Levanta o patrão porque hoje o motorista não veio". Quando isso acontecia sobrava sururu para todo mundo. O próprio dono ia fazer a linha dirigindo o veículo; a mulher já na cozinha para o café; o filho fazendo o embarque. Sempre rigorosamente calmo, justo e honesto nos negócios, manso e cordial, Riccoldo Mansi planejara não precisar mais trabalhar duro após os quarenta. Era bom no que fuçar a vida, mas era péssimo no como fazê-lo. Para tanto botava os filhos e empregados. Jamais negou uma vaguinha para um parente, mas costumava pagar quase nada de salário. Econômico, não abria a mão nem para espantar moscas. Adorava comer ensopado de pato, mas quando havia carne de gado gostava de patinho para comer assado com recheio de toicinho e pimentão. Sedutor no silêncio, bonitão, olhos azuis expressivos, não sabia dizer não às mulheres que nele se encostavam como abelhas no mel. Vinha daí a infelicidade da esposa que o amava e unida cavucava com ele no esfocinhar a vida.

Quando o empresário chegou à garagem, o cobrador já havia aprontado o veículo para a viagem. Sentou-se ao volante, conferiu tudo e partiram devagar. A vizinhança já acordada com a maldição diária do barulho de esquentar o motor. Quem tinha juízo não chiava; o homem era também dono do armazém, da sapataria e da mina; um patrão meio blindado aos desaforos de empregados e parentes.

Na última poltrona, todo escanchado, viajava um compadre que era mais chato que chinelo de gordo. O velho, miudinho, não economizava deboche quando Mansi era o motorista; proclamava que o amigo guiava mal. "Hoje ninguém chega lá; cuidado aí, chofer". Fazia mais escândalo do que relincho de burro garanhão. O gringo era homem de pouco riso, mas também sabia encaixar com humor os gracejos do outro. Então o veículo começou a fazer uma descida grave. O cobrador começou subir a escada externa para cobrar os passageiros que se amontoavam na capota. Quando sentiu a velocidade aumentando além do costume, achou melhor se atracar com a escada; pressentiu que aquela descida ia ser diferente. Rabeou os olhos para os passageiros lá de cima e riu para dentro, porque eles já estavam apavorados com as mãos garreadas nas grades. Acostumado a passar por ali todos os dias, o menino percebeu que o empresário perdera o controle do veículo. Com algum esforço o veículo conseguiu fazer a primeira curva, mas daí deparou-se com uma tora de bracatinga atravessada. Não havia o que mais fazer: o homem firmou-se no volante, calçou os pés, virou o rosto contraído e encarou o tronco. O choque foi medonho; mais feio que indigestão de torresmo. Os cinco que estavam na capota voaram para se estatelar no chão, mas um foi parar na frente daquele dragão desgovernado. Ficou no chão quieto, parecia desacordado. Nesse meio tempo o veículo subiu um pequeno barranco parecendo querer parar. Mas não, voltou para o meio da estrada reiniciando o ziguezaguear do inferno na direção daquele que estava estirado. Mas também, foi só dar uns buzinaços que ele rolou para a beira da estrada, feito James Bond diante da morte. Safou-se, mas ficou com o cotovelo virado de ré para o resto da vida. Mas aquela era um época em que pouco se via alguém cavando falta para levar vantagem. De modos que nunca vindicou uma merecida indenização.
Com a parada repentina o zombeteiro que viajava na cozinha veio escorregando pelo corredor encharcado de óleo empacando esbeiçado em cima do painel de instrumentos. Não perdeu a pose: "Compadre Riccoldo Mansi, você tem aí uma carta de motorista ou um Almanaque da Lua"?
Depois desse episódio os fregueses fizeram um abaixo-assinado para impedir o proprietário de dirigir o próprio ônibus, mas ele ignorou o petitório. Então formalizaram queixa na delegacia de polícia. Com isso começaram a aparecer outras reclamações. Um queixou-se que ele havia atropelado por querer quatro galinhas. Outro dava conta que em dias de chuva ele fazia questão de passar por dentro das poças encharcando todo mundo. Outro reclamava da falta de horários. Outros ainda acusavam atrasos quando o motorista era o dono. E teve até passageiro reclamando que ele deixava embarcar animais como cabritos, bezerros e marrecos infernizando a vida de todos dentro do ônibus. Diziam que uma novilha enjoou e deixou uma fedentina insuportável. Daí não teve jeito, o delegado pediu que o homem não dirigisse mais o veículo. Mas ele se dizia injustiçado por se considerar um bom motorista; mas não era não.

sábado, 25 de outubro de 2008

UM CANDIDATO DE RESPEITO

Humberto Ilha

Aquele idoso havia sido o melhor prefeito da cidade. Como fizeram em eleições passadas, os notáveis da cidade se reuniram e decidiram apoiar-lhe a candidatura. Mas ele não queria ser reeleito.

O desejo de ser prefeito nascera-lhe de uma indignação, quando ainda jovem. Consta que tomou conhecimento do que vinha sendo feito com o dinheiro público. “É uma ladroeira que ninguém dá jeito”, dizia corajoso. Tanto que seu discurso base era não roubar para poder administrar. Agora velho, mas ainda topetudo, vivia dizendo que se merecesse a aprovação popular iria pavimentar cinco quilômetros de atoleiro, que alguns chamavam de estrada, somente com o dinheiro economizado do roubo. A estrada era um anseio comunitário prometido e nunca cumprido. Era uma obra necessária para escoar oitenta por cento da produção de cebola do município. Ninguém o levava a sério, mas ele insistia no plano.

De tanto perseverar acabou sendo procurado pelo grupo de pessoas nascidas ali, mas que morava em outras cidades. Era esse o tal grupo de notáveis que, diziam, decidia o rumo das eleições. Nos quadros figuravam médicos, magistrados, um ex-governador, professores universitários, um líder comunitário de avançada idade, dois generais da reserva e uma senadora da república. Eram pessoas de bem e por isso mereciam credibilidade da cidade. Em anos anteriores o grupo havia escolhido um critério de preferência: a capacidade intelectual. Pessoas estudadas eram mais aderentes a um plano de ética pública. Mas não adiantava; parece que, quanto mais inteligente, mais o ladrão sabia roubar.

Chamaram o velho para uma reunião e deram-lhe a chance de expor o plano que propalava nas ruas. Não era ele um homem que reunisse as melhores qualidades que o grupo buscava. Com palavras simples e às vezes mal pronunciadas, ele falou somente do plano geral que tinha em mente.
— Eu só prometo não deixar o dinheiro sumir. Com a economia vou levar a rodovia até as tifas das lavouras de cebola. Um dia depois de assumir o engenheiro começa a trabalhar na obra.
O grupo pediu que ele mencionasse a origem dos recursos; se pensava em aumentar os impostos. Mais uma vez ele foi claro.
— Vou acabar com o esquema de propina. Trabalhando com honestidade nas concorrências públicas vou baixar os custos dos bens e serviços que a prefeitura contrata. Não vou aceitar e não deixarei que peguem propinas durante a minha gestão. O controle do dinheiro passará por mim pessoalmente. Vou ficar com a chave do cofre em respeito ao povo.
O grupo suspendeu a reunião por meia hora e voltou com a decisão.
— Vamos dar ao senhor a oportunidade que tanto pede e vamos elege-lo — disse-lhe a senadora falando em nome do grupo.

A partir daquele dia o homem começou a se trajar totalmente de branco. E vestiu-se desse jeito até o dia da posse. Não gastou sequer um centavo com a própria campanha. O trabalho do grupo foi eficiente porque se multiplicou pelos seguidores e parentes, mas a mensagem de que o candidato estava de mãos limpas para servir foi definitiva para o resultado estrondoso das urnas. Fora uma mensagem como nunca ninguém viu. Só se falava no homem de branco.

No dia seguinte à posse, sua neta foi vista demarcando a área para a construção da rodovia prometida. Fixou o prazo de cem semanas para entregar a obra. Na inauguração, nada de foguetório. Entregou a estrada sem alardear e continuou trabalhando serenamente até a hora que o mesmo grupo veio pedir para reelegê-lo. Não quis mais o cargo; já havia feito o que lhe competia. Aconselhou que escolhessem outra pessoa que aceitasse trajar roupas brancas durante o mandato. Então o grupo solicitou que ele indicasse alguém. Relutou por causa do nepotismo, mas no fim foi convencido e indicou uma pessoa jovem e com pouca visibilidade na cidade: a engenheira da rodovia, sua neta.

No dia da posse da moça, ambos trajavam roupas brancas. Como se fosse um branco pontifício, comprometido com a honra e a ética que o cargo exigia.

DEU A CAÇAPA CANTADA NA BARRA

Humberto Ilha

Naquela noite houvera um bafafá medonho com um paulista, só porque usava vistoso chapéu branco de rodeio com as abas enroladas feito Rocky Lane. Rapazes da barra costumam provocar forasteiros atraídos pela beleza e paz da cidade. É nada disso, a violência campeia impune nas ruas. Nem se sabe mais se é caso de punição, pois o que se está reconhecendo é que os índices de criminalidade aumentam com a ampliação da injustiça social. O direito de ir-e-vir das pessoas estava sendo ignorado pelos moços da barra. É inegável a implicância de algumas pessoas com relação aos visitantes. A barra é comunidade fechada que se nega a entregar a virgindade por razões que nem sempre se entende. Abrir-se para o novo pode provocar insegurança e medo. E o medo faz coisas. Se não fosse a lojista reacionária, o turista seria muito machucado. A mulher, uma gaúcha, meteu-se no meio da briga e prometeu chamar a polícia a bem de pararem com aquela agressão. Mas o automóvel importado dele ficou bastante danificado de tanto coco que recebeu. Era apenas um psiquiatra que estava em férias contra um grupo local que passava dos limites. Melhor, era um bando de hienas sorridentes com as presas afiadas querendo guardar a praia e o verão que julgavam ser deles.

Os rapazes ainda estavam saboreando a vitória covarde, quando a atenção das pessoas ficou voltada para nova demonstração de intolerância. Dois gaúchos trajando bombachas e alpargatas mal iniciaram a matear fora da camionete estacionada de frente para a maresia, quando começaram a ser insultados. Os dois não deram importância para as chacotas até que escutaram o bufo do habitual coco se esborrachando na porta do carro. Foram conferir o estrago e pediram para que parassem. Um dos gaúchos, um cinqüentão chamado Gotardo, que se soube também tocava acordeona, quis falar mais alguma coisa, mas foi atingido por uma latinha cheia de cerveja que lhe abriu uma fossa enorme na cabeça. Em seguida, foi jogado no chão e agredido a pontapés até ficar em coma. O outro, um homem de Sarandi, conseguiu afastar os agressores e colocar meio jogado o amigo na caçamba da perua. Tinha pressa de seguir para a emergência do Hospital Universitário. Nem esboçou reação de bate-boca, pois só queria socorrer o ferido que sangrava muito. Furtivamente encarou cada um dos oito covardes. Sem movimentos bruscos embarcou no veículo avaliando o quanto aqueles rapazes eram malvados. Foram mais pontapés, palavrões e cocos, armas eficientes saídas da secura do verão. O forasteiro foi embora enquanto o bando proclamava vitória. Mas era só o começo do rebuliço, pois quase imediatamente ele voltou. Deixara o companheiro encaminhado para um cirurgião remover-lhe um coágulo no cérebro. Só que agora trouxe um reforço também bombachudo, o dono do carro e irmão da vítima. Os malfeitores de finais de semana passaram a hostilizá-los com mais veemência. Não o fariam se suspeitassem que o homem era um delegado de polícia acostumado a lidar com salteadores e assassinos. Os dois turistas desceram do carro amassado e o proprietário perguntou quem se responsabilizaria pelo estrago. Um dos valentes respondeu que não tinham visto nada e recomendou que eles fossem embora dali. Mas os dois vieram com um plano e imobilizaram o valentão que falara. Como num passe de mágica o delegado armou-se de uma pistola e colocou-a entre as pernas do rapaz. À vista daquela arma ameaçadora os demais fugiram como fogem os covardes. Então o policial disse que eles estavam se metendo com quem não conheciam. Que um gaúcho não admitia insultos; e que ele não gostava de cocos — matava a sede com chimarrão amargoso na losna — e que o chiru refém ia saber o que era ser perverso. Disse mais: que era obrigado a ensiná-lo da pior maneira, pois a lei da rua o obrigava assim proceder quando não sentisse necessidade de tirar a vida de um bicho sem mais préstimo. Dizia isso aos demais com a arma sempre encostada no corpudo, que chorava arrependimento inútil.

De repente um estampido forte, uma cápsula zunindo e o rapaz se contorcendo em desespero no chão; o tiro mutilou o futuro do que ainda era casto no moço topetudo da barra.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

UM ADEUS ENROSCADO

Humberto Ilha

Enquanto rezava junto ao corpo do amigo, Antônio Valadão acreditava que somente a prece dele tinha o poder de salvar aquela alma. Não poderia ter faltado ao velório para pedir em favor daquela alma tão cansada da luta que teve em vida. Sem a encomendação especial que sabia fazer, aquele homem não conseguiria bom descanso eterno. Sem o passaporte que sabia providenciar era provável que o morto fosse morar no rebordo do purgatório por bom tempo. Em vida tinha sido bom homem, obtendo créditos celestiais pelas virtudes que sempre cultivara. Mas esse prestígio de nada serviria se ele em pessoa não recomendasse aquela alma.

Olhou para os lados e deparou-se com o padre Aristeu rezando junto ao defunto. Por brevíssimo momento supôs que a prece do ministro fosse mais forte que a dele. E devia ser mesmo, pois trouxera os utensílios litúrgicos para a cerimônia: o aspersório, a estola roxa e a bíblia cheia de macetes, marcadores coloridos e até fecho ecler, parecendo o estojo de um violino raro. Mas depois, lembrando ter visto a atuação do padre na parada da diversidade, convenceu-se que seria ele, Valadão, a garantir ao finado as bem-aventuranças necessárias para triunfalmente entrar no paraíso. Afastou-se um pouco, fez-se triste junto aos familiares e, após longo recolhimento e conferência com o além, foi cumprimentar alguns conhecidos que não via há muito. “Há quanto tempo, fulano. É verdade, sicrano”. No momento em que se percebe como o tempo castigou o outro com rugas, manchas na pele e cabelos brancos, é que se vê como a gente também envelheceu. “Fazer o que? Antes velho do que vestir a mortalha”. Cumprimentando alguns deu de cara com um que havia sido seu subordinado numa empresa de ônibus. Estendeu-lhe a mão de maneira amistosa, mas o outro refugou. Havia uma rusga antiga que estava esquecida para Tonhão, mas não para o outro, que fora pego em flagrante roubando o dinheiro dos passes que vendia no guichê. O gatuno era ainda um jovem descabeçado, mas fora demitido com desonra. Fora exemplo aos demais para mostrar que o crime não compensava. Mas isso fora há trinta anos. Deveria tudo já estar esquecido, mas não estava.
— Como estás?
O outro olhou para a namorada e falou:
— É ruim, hein? Eu te conheço?
— Sou o Antônio, fui teu gerente na empresa de ônibus.
— Conheci lá um desgraçado que me botou no olho da rua. Eras tu?
— Que exagero, meu. Desgraçado, não.
— Deus é justo, cara. Hoje é o Nascimento, mas quem deveria estar esticado ali eras tu.
— Se Deus fosse justo tu é quem deverias estar ali. Só não estás ali deitado porque Deus é bom, ladrão de uma figa.
O outro levantou da cadeira sem cor no rosto: branco como vela de igreja, armou todo o corpo para o ataque. Antônio manteve-se calmo e arriscou:
— Que que é, vais me encarar?

O outro voou-lhe em cima e ambos foram cair sobre um biombo de pano preto junto ao caixão. Aquele anteparo móvel servia para isolar a câmara mortuária dos demais espaços profanos do ginásio, da lanchonete e dos banheiros. Sem nenhum respeito ao defunto os dois queriam brigar. Um deles parecia ter razão, o outro só queria esconder a vergonha que diante de todos. Engalfinhados, foram ao chão com os petrechos do velório: um par de velas acesas, um negro livro de condolências e uma coroa de flores do campo no cabide envernizado. O susto foi geral diante do estrondo. Ninguém acreditava no que estava se passando ali. Uma peleia num ambiente tão impróprio. Mas a cena mortuária se impôs, porque era preciso fazer força para deixar de ouvir o timbre da voz daquela câmara fatal. Uma voz que parecia a própria do falecido: “cambada de cachorros, vamos parar com essa encrenca no velório; vamos ter mais respeito e menos barulho”. Não havia como negar pelo menos isso ao dono daquela reunião lutuosa. Então os dois homens resolveram dar marcha à ré no instinto, pois que ali era local inadequado para uma vergonheira daquelas, e interromperam o pugilato. Nenhum dos dois saiu mais daquele ginásio coberto até que saísse a procissão com o finado na comissão de frente levado pelas mãos de seis nas alças prateadas. Os dois odientos pareciam duas crianças de fraldas estrumosas. Haviam levado, parecia, um pito do presunto que ainda sabia se impor diante de situações graves como aquela. Cada um no seu canto, com a turma do deixa disso na pacificação, ambos pareciam arrependidos, mas nem se olhavam fingindo que rezavam entristecidos. Mas as cabeças concebendo planos para um lugar chamado depois. Até o sepultamento um iria ficar com a orelha inchada e mascada pela dentada do outro; e o outro de olho inchado e vermelho pelo sopapo do um.

Imediatamente após o coveiro lacrar a carneira do finado, os dois retomaram o bate-boca com troca de insultos. Ainda concentrada na cerimônia a viúva dirigiu-se ao operário em tom gemente:
— Acabou?
— Acabou senhora, só falta agora calafetar as fuças desses dois aí — e despejou nos briguentos a colher de pedreiro cheia de massa.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

VIVI PACHECO, O SEDUTOR

Humberto Ilha

Quando questionado pelos colegas qual tipo de trabalho fazia na repartição, o bacharel Vivi Pacheco dizia que era um político e não estava obrigado a cumprir expediente. Que jogava no meio-de-campo, que era um articulador, um estrategista de estado e que não tinha satisfação para dar a ninguém. Mas era apenas um descansado que o amigo colunista chamava de boa praça e detetive da cidade. Posto ali em gratidão ao pai, que fora atleta, o homem só tinha cabeça para as mulheres. Sempre vestindo roupas diferenciadas e das melhores lojas, vivia mais empinado do que cavalo de circo, forcejando no contrapasso da cara muito mal-parecida. Contudo, não tinha culpa disso; coitado, era feio como um talho na bunda. Feio e vazio; mais que pastel de boteco. Só que era charmoso, bom e não conhecia a timidez. Se tivesse que falar com o governador mesmo sem agendar, ele dava um jeito e aparecia na frente do homem como quem sai do nada. Quantas vezes abriu as portas do palácio para aqueles que lhe tiravam sarro? Não sabia guardar rancor, dizia que era burrice. Para abordar uma garota na rua, caprichava no olhar dentro dos olhos dela e já mostrava logo o seu interesse. Quando ela se dava conta estava sorrindo para ele e falando em coisas tão diferentes de sedução que não percebia que aquela era a maneira dele seduzir. Primeiro ele cevava, cevava para depois fluir naturalmente para os lençóis de uma suíte de motel. Era-lhe proeminente um nariz que não sabia conviver com os óculos que possuía; por mais que tentasse, não havia Ray Ban que lhe caísse bem. Baixote e magrinho, o homem lembrava um beija-flor-da-mata: ave pequenina e de frágil aspecto que de repente aparece esvoaçante, melhorando o dia das pessoas. Quem observasse essa criaturinha, por certo conceberia o encanto residente em Vivi Pacheco, que também vivia de bater as invisíveis asinhas no ar para das pessoas extrair o doce. Ninguém se iluda ao buscar-lhe a perfeição que jamais possuiu. Como nas vezes em que, para impressionar, dava-se uma entonação arrogante na voz, como se fora carioca. Aí ficava horrível tê-lo por perto, porque fanhoso e falso como uísque paraguaio. Era um ilhéu da Crispim Mira e não conseguia representar nada melhor que isso. Educado e gentil, conhecia a dimensão do estrago que fazia nelas quando dizia sua melhor frase: “quero fazer você feliz”.

Escutar a respeito de suas conquistas era divertido porque também não escondia quando dava com os burros n'água. Como na vez em que abordou no corredor do Conselho Estadual uma deusa de enormes atributos.

— Procura alguém?
— O Andrade, meu ex-marido.
— Ainda não chegou... Aceita um cafezinho?
— Sim, obrigado.
No ir e vir com os dois copinhos de plástico queimando-lhe os dedos, um manual de artimanhas passava-lhe pela cabeça: "ex-esposa é legal; deve estar carente, a gostosa; que sorte a minha; easy, easy...”.
— Seu rosto não me é estranho, sabia?
— Mesmo? Olha só...
— Por acaso você é advogada?
— Sim.
"Você é um iluminado, cara" — quase falou alto.
— Será que conheço você da Ordem...?
— Quase nunca vou lá.
— Já sei, então conheço você do fórum — arriscou na certeza; qual o advogado vai negar nunca ter ido lá?
— Pode ser.
"Você é o cara" — exibiu-se para si mesmo.
— Em qual vara você atua?
— Fazenda Pública.
— Logo vi, sou Procurador da Fazenda.
— Trabalho lá e nunca vi o senhor.
"Senhor já é deboche", — pensou perdendo a potência, mas ainda vivo no jogo.
— Qual o seu cargo lá?
— Juíza de Direito.
— Humilhou... Quer dizer... Vou chamar o Andrade... Passar bem...

Sabia rir de si mesmo e isso já era virtude que se acha em poucos. Confessava não saber resistir aos encantos de mulher sensual; dessas que jogam charme, mas negam. Como a Glória da Assembléia, que era uma cobiça vinda das profundas do inferno. Era uma garota cara, mais que argentina nova na zona. Diferente das outras, não demorava mais que cinco segundos para se deter num homem e dele extrair os detalhes como altura, cor dos olhos, dentes, cabelos, roupas, sapatos, aliança no dedo, relógio barato, braços, peitoral, carteira, tatuagem e cor das meias; cinco segundos que as outras demoravam vinte. Um homem para assimilar isso tudo, levava quase dois minutos. Mas aí já era tarde, porque ela já largara na frente e não deixava o infeliz respirar direito.

Naquela tarde já havia notado que Vivi Pacheco a observava do outro lado da rua. Então ela se demorou observando com interesse vistosa blusa que estava em destaque na vitrine de luxo. Entrou e pediu para ver até deixar que o procurador percebesse-lhe o interesse na suéter encantada. Experimentou, serviu e mandou que o vendedor guardasse depois que ele disse o preço. Em seguida saiu e foi para dar conta do expediente fantasma. Vivi abordou o vendedor e perguntou o preço da blusa. A pancada foi tal que chegou a fechar os olhos.

— Tudo bem... Pode fazer em doze vezes no cartão? Se pode enleia para presente e manda agora na Assembléia com a mensagem que vou escrever.

Glória sorriu quando abriu a caixa e leu o que estava escrito.

— Que meigo, o cuitelinho.

O romance durou três meses e quase desmancha o casamento com a Zefa, que era como ele se referia à esposa que o amava.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

BONDADE AQUI? NÃO VAI CABER

Humberto Ilha

Nem sempre se ganha, mas às vezes é melhor perder que empatar. Adão Xadeco, motorista de coletivo, desfrutava o primeiro dia de férias. Não conseguia ficar em casa; parecia ter de sobra era vocação para a rua. Não dava à Conilda a mínima chance de ser o que queria ser: esposa. Era uma empregada que ele usava para todo ano tirar umas crias. Onze filhos encordoados, "todos perfeitinhos, graças a deus; mas dão muito trabalho à mãe". Além disso, ele tinha amante também no plural, mas isso quem dizia era ela com a voz dolorosa. Tirada do jugo do pai aos dezesseis, com trinta e seis Conilda estava sob o jugo do mandão. Ele até dente de ouro tinha, ela, coitada, perdera todos em favor da ninhada. Os dois filhos mais velhos já trabalhavam fora. A mocinha era faxineira do hospital, o rapaz vivia de engraxar sapatos, mas achava que vender esteiras de palha dava mais. Outros dois meninos anotavam jogo do bicho. O de doze vendia banana recheada, mas era roubado e apanhava freqüentemente dos marmanjos. Assim mesmo, todo o dinheirinho na mão da mãe, que lavava roupa para oito famílias. Só não passava porque Adão caprichosamente não deixava.

Viajando de passageiro queria estar perto do colega para ir conversando. Fácil de fazer amizade, vivia impecável e perfumado, como filho de barbeiro (velha alegoria que ele detestava). Tinha fama de conquistador fatal. De repente viu que uma mulher sentara-se ao seu lado e se encostara um pouco nas pernas dele. Bonita, deixava aparecer um pouco de si pela fenda da saia. Estudou-a de cima a baixo e olhou para o motorista que lhe deu uma piscadela pelo espelho. Queria saber onde a moça ia desembarcar; pois desceu defronte ao portão principal do cemitério municipal. Não parou, sequer hesitou; foi entrando e andando pelo meio dos jazigos. Adão ia desembarcar, mas o colega fez-lhe sinal para que não. Disse-lhe conhecer a moça e que era costume dela visitar aquele cemitério toda quarta feira às nove da noite; vinha rezar. Xadeco consultou o relógio e percebeu que era hoje.
— Será que vem?
— Com certeza.
— E como faço para ganhá-la?
Então o outro ensinou como fazer para o garanhão se dar bem.

Pelas nove horas estava lá esperando para ver se ela aparecia mesmo. Duvidou, mas ela veio. Desceu do ônibus e foi se esgueirando pelo meio das sepulturas com desembaraço. Xadeco deixou ela se acomodar e aproximou-se para encontrá-la ajoelhada diante de um túmulo na parte mais escura do cemitério. A misteriosa dama trajava longa capa negra com um capuz sobre a cabeça. Lembrando os conselhos do colega, o motorista se aproximou por trás e disse-lhe ser um peregrino que andava no mundo procurando o genuíno amor. A moça assentiu com a cabeça, pôs-se de pé e abriu a capa. Xadeco estremeceu, mas em seguida experimentou uma sensação de paz que o comoveu. Então, num travão de arrependimento, falou que não era um peregrino; que havia ficado louco por ela quando a conheceu no ônibus. A moça escutou-o atentamente e falou que também gostara muito dele, um homem alinhado e sedutor. Mas que ela não era aquela de quem ele falava. O motorista quis adivinhar quem ela era, mas não teve tempo. Sacando uma pistola a mulher obrigou-o a deitar-se no chão com as mãos para trás. Apareceu o colega do ônibus que lhe amarrou os pulsos com uma língua-de-sogra. "Um seqüestro" — pensou, e dormiu nas profundas do abismo para acordar sem os rins.

A esposa soube dos detalhes pela exposição da crônica policial e largou tudo para cuidar das sessões de hemodiálise do infiel. Adão Xadeco aguardava sem esperança um doador compatível quando os médicos descobriram nela a salvação dele. Conilda deixou que brotasse a rosa na vala podre. Deu-lhe um rim, negou-lhe o perdão suplicado e mandou-se.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Projeto Cidade Contada



O HOMEM E SUA SOLIDÃO
Jacqueline Iensen


Raul Caldas Filho (foto) apresenta hoje o conto A Passageira no Cidade Contada.
No dia em que completou 70 anos, Turíbio Sousa não abandonou a rotina. Avesso a comemorações pegou o barco e rumou para o trapiche para a pescaria do dia. Em meio aos pensamentos turvos acumulados ao longo de sete décadas de vida, teve um que, especialmente, iluminou o dia - e talvez a vida - do homem do mar que gostava da solidão.

Este é tema de A Passageira conto do livro O Vendedor de Diabos que o escritor Raul Caldas Filho apresenta hoje no Projeto Cidade Contada, na Casa da Memória, em Florianópolis. O fato que despertou o brilho no olhar de Turíbio havia se passado há exatos 40 anos, em 13 de maio de 1929, dia da inauguração da Ponte Hercílio Luz.

Era uma noite fria, com mar agitado pelo vento Sul. Aos 30 anos Turíbio estava num bar quando foi chamado para ir até um navio que recém-atracara nas proximidades da Ilha de Anhatomirim, onde permaneceria por 24 horas. Como de costume, Turíbio embarcou no navio para conferir os documentos quando viu uma bela e misteriosa passageira. Ao saber da inauguração da ponte a mulher quis conhecer tamanha e ousada obra de engenharia. E foi durante estas 24 horas que a vida de Turíbio mudou para sempre.

Cidade Contada é uma proposta de leitura pública de contos que tenham a cidade de Florianópolis como tema e que são ilustradas com imagens históricas. Uma forma de recuperar a memória urbana e paisagem natural da Ilha. O escritor Raul Caldas nasceu em São Francisco do Sul em 1940. Além da literatura, também se dedicou ao jornalismo, com atividade na imprensa cultural em SC e trabalhos para a revista Manchete. Publicou livros de crônicas, entre eles Delirante Desterro (1980), Oh! Que Delícia de Ilha (1995) e Oh! Casos e Delícias Raras (1998). Como contista, escreveu O Jogo Infinito (1984) e D de um desempregado (2000). Sua obra mais recente, de 2003, é o livro ABC do Manezinho. O projeto mensal é uma promoção da Casa da Memória da Fundação Cultura Florianópolis Franklin Cascaes (FCFFC). (jacqueline.iensen@diario.com.br)

Quando: hoje
Onde: Auditório da Casa da Memória (Rua Padre Miguelinho, 58)
Horário: 19h
Ingresso: gratuito

Fonte: Diário Catarinense Ed. Nº 8218.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O GUARDA DO TEMPLO

Humberto Ilha

O bom coração das pessoas parece ter limites para agir. É um embuste dos grandes, alguém decidir ser bom de um dia para outro. Mas ninguém se torna bom se não começar a imitar os guias da compaixão. Um dia o bom coração rebenta sem que o talo se dê conta. Mas até isso acontecer muita cena de remorso há de rolar. O aprendizado começa em casa, depois é a escola, a igreja e o trabalho, para se consolidar nos cafundós do mundo, que é onde as coisas acontecem.

Pois um templo é sempre local de refrigério para a alma. Local onde as pessoas procuram para aliviar a pesada carga da ossada. Conheci um na parte continental da cidade; na rua que dá para o mar. Desde criança tive conhecimento que ali era local de oração e caridade. Mas era também local de peregrinação de vivos e mortos. Diziam que desencarnados eram atendidos ali sem que lhes pedissem carteira de identidade. Para receber atendimento o visitante do além não precisava estar cadastrado; todos tinham assegurado o acolhimento independente do quilate devocional. Mas eu somente via a peregrinação dos vivos que para lá se dirigiam em busca de remédio, comida e dinheiro. Vizinhos eram constantemente incomodados pelos que pediam. Um deles havia colocado um aviso: “Aqui não é o Centro Estrela Guia”. Quem preparasse a mão para bater naquela porta dava de cara com esse aviso. Vi alguns recolherem a mão à meia viagem. Ficava engraçado quando vinham em dois conversando e se preparavam para golpear a porta daquela casa. Depois de ler o aviso faziam que nem avião quando recolhe o trem de pouso. Onde então o templo? Bem ao lado, e com um enorme letreiro indicando os dias e horários das sessões. Então como não ver? Exu, o orixá guardião dos templos e encruzilhadas certamente saberia dizer. Por certo, tinha-se que aquele era um local conhecido pela bondade dos seus membros, que diziam ser a fome física algo concreto para o mortal.

Naquela noite o grupo estava reunido para tratar de assunto da economia da casa; o tempo previsto era de hora e meia. A reunião estava começando quando bateram de um jeito profano. Obreiro dedicado como sentinela, Neném Bordoada levantou-se para ver quem assim batia. Deu de cara com um freguês de cesta básica. Do alto de seus quase dois metros de altura ruminou má vontade: “Que diabo, esse cara está sempre aqui pedindo”. Entretanto, fez-se afável, recurvou a espinha, desculpou-se e pediu que o coitado viesse no dia próprio, isto é, dali a uma semana. "Boa-noite; boa-noite", fechou a porta e acomodou-se com aquele seu ar de mando para continuar a sessão. Sujeito lúcido, há muito passado dos branqueados oitenta, além de comandar sabia se desenhar como um gato que se põe alerta. Não conseguiu reprimir um recorrente pensamento doutrinal que lhe aflorou à mente: "A dor desse infeliz não lhe poderia ser útil para depurar-lhe o espírito?"

Dali a cinco minutos o mendigo voltou a chamar os de dentro. Neném Bordoada controlou-se para atender o pedinte, que novamente pedia o rancho; a mesma desculpa, mas antes de despedir o homem, pediu-lhe que fosse para casa dormir e então viesse no dia seguinte para ver o que poderia fazer. Ambos tinham biografias curtidas, um pela cachaça e outro pela água salgada da vida, sabiam que a necessidade exige ação. Assim mesmo o guardião fechou a porta e sentou-se mais uma vez para dar seqüência à reunião, que não queria andar. Um exu não dorme, pensava, sequer relaxa; quando muito apenas descansa. Mesma coisa acontecia com o seu Neném; não estava ali para descansar. Quase imediatamente, o inimigo voltou a bater. Sim, porque somente um inimigo arrumaria uma provocação daquelas. O sangue subiu e deu uma raiva tal em Neném Bordoada que esmurrou a mesa para encarar o homem. Nem deixou o diabo abrir o bico para repetir a ladainha. Desferiu-lhe um direto no queixo para pô-lo nocaute. Assustado, não esperava que a bomba saísse com tamanha potência. Todos se levantaram para atender o mendigo, menos seu Neném, que chorava de remorso. Reconhecia faltar muito para ser bom. "Que raiva, — ganiu — dá vontade de desistir de tudo".