quarta-feira, 24 de março de 2010

Um amor complicado

Por certo a decisão que tomara fora amadurecida pelo tempo. Provável que pesasse as conseqüências: exonerar-se da vida e arder no inferno, porque salvar-se não ia não. Mas um suicida de verdade surpreende a todos. Nunca ameaça; vai lá e se mata. Simples assim.

Quando o marido soube, a primeira coisa que cismou foi na coragem dela ao jogar-se da ponte com um frio daqueles no meio da noite escura. Ele julgava saber a extensão do desgosto que dava a ela. Mas jogar-se da ponte com aquele frio? E se pegasse uma gripe? Jamais Eduardo soube a essência do que residia no coração dela.

A maternidade alterou-lhe os fios do coração; amadureceu-lhe o espírito de jeito terminante. Ao deixar-se ficar mãe, aquela mulher foi de carona com o vento para o fundo do abismo. E gostava de ficar lá. Ele, parece, ficava na beirada querendo entender o quadro. Para se indultar, dizia que ela adorava voar e que gostava de emoções fortes. Que nada! Se ela bobeasse ele a empurrava de um rochedo sem remorso. Quem gosta de emoções desse tipo é ele. Quem gosta de veneno na veia é ele. Quem alberga o apetite voraz pela desgraceira é somente ele. Deveria ir lá também para ver onde mora o peso nas costas.

Nunca se viu um marido se jogar com a esposa no vazio do céu, onde está a consumição das noites mal dormidas, o tremor da febre, o sonho falido, o silêncio diante da sombra. Muito menos o Edu faria isso. Ela não enxergava recurso para aquele tormento. Parecia um cachorro ao lado daquele homem. Eduardo dizia que ela o obedecia porque ele era o deus dela. Dela e de mais umas três. Ao ver o que via, minha ternura por ela aumentava. Era uma mulher de alma guerreira com as cicatrizes das batalhas, que eram mais luminosas que suas tatuagens de sensualidade.

Durante uma hora, pedi que não se atirasse. Mas não teve jeito, lançou-se no vazio quando descuidei um pouco. Então me joguei atrás. Senti que o mar ia ser de concreto duro e que tudo ia se acabar num já. Mas durante o vôo, desejei que a água bem pudesse abrir-se em boca para acolher o desatino. A água cada vez mais perto, até sentir as costas como que se partindo em dois pedaços. Ela afundou e voltou à superfície com o vestido comprido cheio de ar em balonê. Encontrei-a flutuando, mas sabia que era por pouco tempo. Segurei-a por trás e nadei uns trinta metros até a praia. Eu bufava de cansaço e pedia para ela ajudar com as pernas, num quase grito dentro do ouvido. Tal foi o desespero na minha voz, que ela começou a bater os pés com vigor. Puxei-a para o raso com o resto das minhas forças. Deitamos em nossa praia, em nossa areia.

— Era a madrinha, mãe — noticiei.

Depois, somente as duas:

— Caí da ponte, comadre.
— O Toninho viu tudo, a comadre se jogou.
— Ainda bem que o Toninho me salvou. Como foi aparecer naquela hora?
— A comadre sabe muito bem como ele apareceu ali.

Por muito pouco, meus filhos não perderam a mãe.