terça-feira, 11 de agosto de 2009

OS NEGROS E AS QUOTAS MALDITAS

Humberto Ilha (2003)
Levei uma vida inteira, aqui no sul do Brasil, trabalhando, vendo, lendo e escutando uma bagaceira de conceitos sobre o negro brasileiro. Agora vem o governador do Estado do Rio de Janeiro, Antony Garotinho, através de um Decreto garantir 40% das vagas aos negros nas duas Universidades daquele Estado. Está feita a encrenca. Isso ainda vai acabar prejudicando os negros. Sabe aquele amigo que olha prá você de cima em baixo e diz: vou orar por você? Pois é. Tem gente que com isso arruma muita complicação no céu. Quem é esse tal que se julga com poder para rezar por alguém? Ele que vá orar por ele, bolas. Estou dizendo: os negros ainda vão se complicar.
Intelectuais de lambança estão polemizando a medida. Invocam a força da Carta Magna. Invocam a aplicação da justiça meritória, como sempre se fez nas universidades públicas brasileiras. Invocam a necessidade de uma completa reformulação no ensino brasileiro. Ora, não falemos aqui de justiça senão temos que deixar de dormir o resto de nossas vidas até que haja o resgate social das pessoas seqüestradas de suas aldeias e enfiadas mato adentro por esse Brasil a trabalhar de sol a sol sem direito sequer à vida, quanto mais à dignidade. Se é para falar em justiça, então vamos invocar o discurso do Padre Antônio Vieira: “A justiça nem ao diabo se há de negar”. Não falemos na utopia da reforma do ensino porque vai levar cem anos para ser concluída. O caso aqui é de pronto-socorro mesmo. O doente vai morrer se não receber atendimento de emergência. Falar em discriminação racial agora é cretinice.
Sabemos que a inclusão social é uma necessidade em âmbito nacional. Quem não sabe disso? E por que não se a faz de uma vez? Porque não interessa à minoria dominante. Os negros na América só levaram ferro a vida inteira. Hoje o que vemos na maior democracia do mundo é um movimento racista com sinal trocado. Aqui no Brasil já está acontecendo isso também. Outro dia fui defender essa bandeira e uma amiga negra, professora universitária, respondeu: “Não precisamos mais da sua boa vontade, pois vocês agora vão ter que dar na marra”.
Contemplar o afro-descendente com o melhor do melhor é digno e necessário. Dizer que uma atitude dessas é exercício de mero paternalismo ou maniqueísmo superficial é uma vergonha nacional. Quem não vê o que aí está? O discurso de longo prazo, estratégico, é sempre aceitável. Mas onde estão as ações concretas? O negro está há séculos esperando a compaixão do senhor. E ela não vem nunca. Quem não tem cão caça com gato, diz a trova de latrina. Enquanto os iluminados não põem a andar os seus projetos socialmente corretos, convém que incluamos o excluído da maneira como podemos e sabemos.
Darcy, o Educador, dizia preferir não estar no lugar daqueles que o venceram quando tentava implantar um sistema educacional decente para todos. O negro está freqüentando as escolas superiores à troca de dinheiro pesado. Os poupadores estão dentro das Universidades públicas mantidas por toda sociedade.
Durante todo o meu tempo vivido no Brasil nunca soube o que é respeito, democracia, liberdade, segurança. Ai de mim se não me defender dos Irmãos Metralha por conta própria. O sistema nunca garantiu nada ao povão. Até fico em desconforto quando reflito sobre isso. Nunca esperei respeito de ninguém. Aprendi, com a vida, a me impor para ser preservado minimamente. Antony Garotinho deflagrou algo que há muito já deveria estar acontecendo em nosso país (não gosto da expressão neste país tão ao gosto da esquerda mordente). Por tradição, na maioria das nações, a justiça não socorre aos que dela mais precisam. Digo isso, mas tenho que dizê-lo à boca pequena. Porque sempre vai haver alguém de plantão para me puxar a orelha e ensinar que o poder judiciário não é pirulito para andar rolando na boca de desocupado. É essa ou não é essa a dura realidade? Justiça meritória é mera retórica. Lembram quando a justiça era a sentença do monarca absolutista? Pois então, aquilo era também justiça. Rui ensinava: “quem está com o direito não teme a justiça”. Bonita adaga de duplo corte, pois há direitos inegociáveis no transcurso da vida de todos nós, pretos, brancos, doentes, fetos, velhos, amarelos, homossexuais, mulheres, transplantados e empregados. Estou falando de igualdade, dignidade, educação, vida, terra, moradia, trabalho, comida, privacidade, respeito, saúde, religiosidade e liberdade. Um maluco tinha que o fazer, e o fez para ficar na história. Ademais, o que fez foi com base no já vitorioso sistema de avaliação do ENEN, que é da autoria de toda a sociedade.
Aqueles que desaprovam a medida do governador fluminense puxam a brasa para a sua sardinha, dizendo ser um decreto injusto porque desrespeita o mérito intelectual. Há que se concordar com isso, mas não se pode esquecer o mérito braçal desses irmãos e seus ancestrais que foram jogados na vala da estrada vivendo sabe-se lá como. Eram crianças e idosos no meio da boiada fedorenta e indesejável. Ora que absurdo, esse de levarmos para o esquecimento o que passaram essas pessoas. As cicatrizes do chicote, das algemas, do ferro em brasa e do tronco eles ainda as ostentam com paciência, mansidão e piedade religiosa. Mas quanto disso já está gravado nas espirais de aminoácidos dos atuais negros da nossa geração? Não pretendo aqui incensar o negro e tampouco fazer apologia do mea culpa. Como também não desejo abordar a situação de outras minorias. Não sejamos hipócritas. As outras minorias não viveram o horror da escravidão. Onde andam os negros do Brasil? No oficialato das forças armadas? Não. No clero? Não. Ensinando nas Universidades? Não. Comandando corporações produtivas? Não. No comando de aeronaves charmosas? Não. Essas são carreiras da elite bmv (branco, macho e vip). Se nem nossas mulheres brancas estão lá, imaginem as negras? O negro ou ainda está nos campos escravizado sutilmente ou está nas cidades cheirando, fumando, bebendo e fazendo o que sobrou prá ele fazer. Atualmente o branco não fuma, não bebe, não cheira, não come gordura e faz plástica estética. No meio desse luxo todo, claro, vai faltar a grana mínima para alguém. Mudemos nossa postura sim, dividamos o saber com eles sim, devolvamos a eles o mínimo de dignidade sim. Eles somos nós e nós somos eles. Ou não? Claro que somos. De branca e ibérica descendência sou também um moreno, no dizer de FHC. Se não na pele, mas certamente na alma.
Fui criado no meio de negros e disso me orgulho, pois, como nós brancos, aquele era o meu povo. Melhor ainda, quando me dei conta me vi ilhado no meio dos brancos. Negro não é macaco. Negro não é bicho. Nunca consegui entender o racismo por inteiro. A não ser como um absurdo. O negro não é algo que signifique algo. Não é um símbolo. O negro é e pronto. O racismo é que é um símbolo que significa ódio e medo. E o ódio e o medo emprestam seus nomes a muitos fracassos do espírito.