sábado, 26 de julho de 2008

O exercício do texto ficcional



MEIA VOLTA... VOLVER! [1]
Humberto Ilha


Brasileiros lutando contra brasileiros? Sim, senhor... Após o partido nacionalista ganhar as eleições na Alemanha, e antevendo um período de progresso nunca visto, teuto-brasileiros começaram a fazer o caminho de volta em busca de melhores condições de vida. Alguns saíram do Brasil em razão de hostilidades sofridas de cunho ideológico. Caso do pai de Alberto Roedter, deportado com a família sob a acusação de espionagem. Todos lanhados pelo preconceito estúpido. Com o advento da declaração de guerra, ninguém mais pode sair da Alemanha. Alberto e os irmãos foram convocados. Havia um novo desenho que permeava a cidadania, os direitos e os deveres de tantos quanto fossem alemães. Era um furdunço: “Quem está fora não entra e quem está dentro não sai”. Era de chorar, cantando “Piston de Gafieira”, de Billy Blanco e interpretado por Moreira da Silva nos idos de 1965. Lembrou, não é? Pois é, quando a Alemanha rangeu os dentes ficou desse jeito. Todo mundo vestiu farda em respeito ao Führer. Primeiro, foi por respeito, por ufanismo. Depois, foi na marra mesmo. A brincadeira estava se prolongando além da conta quando caiu a ficha dos mais puros. A Alemanha estava em guerra e valia tudo. Matar não era nada, o pior era morrer. “Eu quero ir para o recreio, gente...” Tarde demais, “ou dá ou desce”. Alguns saídos do Paraná e Santa Catarina foram mandados para a frente da Itália. O inimigo era tido como tropa de sanguinários. Uns tropicais embrutecidos que sangravam a golpes de peixeira. “Alto lá, mein Führer, são brasileiros... Faz isso não... É tudo gente fina... Deixa que a gente resolve essa parada na conversa”. Não adiantou, foram lutar. Mas houve um médico italiano que não pensava assim e livrou a cara dos brasileiros que lutavam pelo lado de lá. Atestou diagnóstico estranho para um Grupo de Combate: Endometriose.
[2] Foi o jeito para não deixá-los marcar gol contra. Direcionados para outra frente de batalha, acabaram ficando doentes de verdade. Depressão das brabas.

[1] Texto ficcional baseado na coluna de Ligia Martoni, publicada na edição de 09/11/2007 do Diário do Paraná, on-line.
[2] Doença caracterizada pela presença de tecido endometrial fora da cavidade uterina.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Batman - The Dark Knight


Assisti Batman, O Cavaleiro "Trevoso" - dublado - na sala 2 do Shopping Itaguaçu e fiquei frustrado, embora a dublagem não estivesse ruim. Christian Bale, quando recebe o "caboclo morcego" muda de voz. Não se sabe quem o dubla naquela voz de lata. Ficou meio inverossímil, mas não sei se foi esse o propósito no idioma original. Que desempenho do Coringa Heath Ledger, hein? Roubou a cena, mas não ficou entre nós para conferir que era mais do bem que o zangado herói, eis que, noticiam, baixou o porrete na mãe (61) e na irmã no dia da estréia em Londres (21/07). Uuuuhh, danado!
Há um tempo até precisava assistir filmes dublados; hoje não. Lembro do Salvito, de quem sinto saudades, que um dia tentou me ajudar. Mas foi pior, porque chorei de tanto rir. Vai, Salvito, de onde quer que você esteja Irmão.

SALVITO
Humberto Ilha
O cartaz do cine Glória dizia alguma coisa interessante pelas fotografias do anúncio. Não entendia nada do que estava ali escrito. Ainda não sabia juntar as letras para formar palavras. Nem em português e muito menos em inglês. Mas Salvito já sabia ler um pouquinho e silabou: "a-pon-te-que-vai". Que era filme de guerra ambos sabíamos, mas quem guerreava?
Muito depois soube tratar-se de "The Bridge on the River Kwai", com Alec Guinness e William Holden. Uma produção anglo-americana ganhadora de sete Oscars. O cenário era a Segunda Guerra Mundial onde um militar inglês e sua tropa fora aprisionada pelo inimigo. Forçados a construir uma ponte sobre o rio, o líder decide fazê-la bem feita, a fim de humilhar os japoneses e deixar clara a superioridade britânica. Uma batalha psicológica onde não se batiam japoneses e ingleses, mas os indivíduos. Um filme de guerra, mas que dela não fazia propaganda. Pelo contrário, quase pregava a paz.
Pedi em casa para assistir o filme na sessão das cinco, minha mamãe disse que não era sessão livre. Portanto eu não podia entrar desacompanhado de um responsável. Salvito foi sozinho, o peste. Não sei de que maneira sempre conseguia entrar nos filmes impróprios para dez anos. Acho que era por causa do olhar quase frio de tanta tristeza que deixava transparecer mais idade. Ou talvez fosse porque já era bem crescido para a idade tão pouca. Como barrar a entrada de um menino que tinha um cacoete de gente grande? A cada minuto fazia um movimento com o nariz. Eu desejava ter um vício igual para ganhar mais aparência de adulto. Só não queria o apelido que o pai lhe dera: "relampo", que era como via a careta do filho; rápida como um relâmpago. Dia seguinte eu quis saber do filme. Disse-me que entendera o filme mais ou menos, mas que iria me contar só as partes principais.
— Tiroteio e romance eu não vi. Se houve eu estava cochilando porque o filme era muito chato. Havia gritos e muitas ordens para os soldados brancos. Os japoneses tinham armas, os outros não. Uma guerrinha bem desigual. Numa hora o chefe dos brancos falou alguma coisa para o chefe dos japoneses: "não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, não-sei-que-lá". Prá quê? Recebeu uma bofetada que lhe virou o pescoço para o lado sul. O brancão ainda replicou: "não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, não-sei-que-lá". Outra bofetada e o pescoço virado para o norte. Então o japonês o olhou bem de pertinho e disse: "não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, não-sei-que-lá". O de bigodinho nada respondeu e chamou todos para dormir. Decerto ficou com receio de perder o pescoço. Ele e os companheiros eram muito relaxados. Andavam com as roupas sujas e até rasgadas. Eu gostava quando a tropa rasgada assobiava uma canção parecida com a do sargento Parmasso da clarineta. O certo é que passaram o filme todo construindo uma ponte de madeira debaixo de muito sacrifício. E sabe o que fizeram com ela? Destruíram ela inteirinha. No final, o galã que dinamitou tudo acabou morrendo. Antes de morrer ainda disse para o chefe dos brancos: "não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, não-sei-que-lá". Decerto estava pedindo desculpa pela bobagem que fez. E o chefe dos brancos respondeu com lágrima nos olhos: "não-sei-que-lá, não-sei-que-lá, não-sei-que-lá". Aí foi triste, credo.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Notícias de encantamentos



Antologia "13 Cascaes"
O editor, ilustrador e os 13 cronistas do livro "13 CASCAES": Dennis Radünz (editor), Silveira de Souza, Salim Miguel, Eglê Malheiros, Jair Hamms, Fábio Brüggemann, Júlio Queiroz, Adolfo Boos Jr., Amílcar Neves, Flávio José Cardozo, Raul Caldas, Tércio da Gama (ilustrador), Maria de Lourdes Krieger, Olsen Jr. e Péricles Prade, por ocasião do lançamento do livro no mês de junho na Casa da Memória em Florianópolis. Publicação foi uma homenagem aos 100 anos de nascimento do bruxo da Ilha Franklin Cascaes. Peninha (Gelci José Coelho) não está na foto, mas foi dele o "Depoimento - alguma memória" enriquecendo a obra.

A poesia de Lindolf Bell e o zelo de Dennis Radünz


O desvelo que o poeta blumenauense Dennis Radünz tem pela obra de Lindolf Bell (foto ao lado) me impressiona e faz que eu seja ainda mais seu admirador. Dele e de Lygia Helena Roussenq Neves, professora e crítica de arte. "Dennis Radünz, hoje, é um dos cinco melhores poetas brasileiros nascidos de 1960 pra cá" (Paulo de Toledo, poeta e ensaísta). E também é o atual coordenador de Patrimônio da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes. Fui lá no encarte especial da TeleListas 2007/2008 e vesti a carapuça da denúncia veemente de Lindolf num dos seus poemas destacados pelo Dennis.

POEMA PARA O ÍNDIO XOKLENG
(Lindolf Bell)

Se um índio xokleng
Subjaz
No teu crime branco
Limpo depois de lavar as mãos

Se a terra
De um índio xokleng
Alimenta teu gado
Que alimenta teu grito
De obediência ou morte

Se um índio xokleng
Dorme sob a terra
Que arrancaste debaixo de seus pés,
Sob a mira de tua espingarda
Dentro de teus belos olhos azuis

Se um índio xokleng
Emudeceu entre castanhas, bagas e conchas
De seus colares de festa
Graças a tua força, armadilha, raça:
Cala tua boca de vaidades
E lembra-te de tua raiva, ambição, crueldade

Veste a carapuça
E ensina teu filho
Mais que a verdade camuflada
Nos livros de história.

Crônica de guarita



QUEBRADA
Humberto Ilha
Dia desses conversava com meu irmão. Veio de Porto Alegre me visitar e conferir se eu ainda estava vivo. Ele conhecia deus e todo mundo. De repente passou por nós um major do exército, antigo cliente dele no banco Nacional e que na intimidade atendia pelo apelido de Pinduca, por ser careca. Vinha andando com o barrete na mão e absorto em pensamentos graves. Era um conhecido ornitólogo bancário criador de aves de bico forte, grosso e recurvo, mas a ele meu irmão dispensava tratamento VIP. Se não por ser uma autoridade, então por ser uma figura de notável simpatia. Lauro não se conteve e começou a esboçar sorriso velhaco antevendo o susto que ia dar no amigo. Aprontar uma quebrada, coisa que fazia com raro talento. Tratava-se de chamar alguém pelo nome e dele se esconder, causando-lhe embaraço, dúvida e até susto. Principalmente se não o visse há algum tempo. Mesmo que não soubesse o nome, ainda assim praticava a quebrada como só o Vampiro de Curitiba [1] soubera eternizar em prosa.

Meu irmão perdeu o interesse no que eu falava e fixou o olho na cara do amigo do peito. Sim, era ele e não haveria de ser outro. Cabelos grisalhos havia-lhe sobrevindo do estresse na tesouraria da caserna. Ingressara na Academia para ser um combatente e virara um gênio das finanças nos quartéis por onde era mandado servir, coisa que abominava. E disso até o general sabia. Mas não atendia seus apelos, bem o sei, sinceros, de tirá-lo daquela situação. Ameaçava pedir demissão da tropa. Mas o que lhe retornava eram sugestões de se tratar, de descansar, de não se matar no serviço, de fazer exercícios físicos, de manter a calma, pois era tido como indispensável no trato com as finanças. Tanto tempo aprendendo cálculo diferencial, derivadas e equações complexas, para acabar como um contabilista de luxo. Correndo na calha, seguia em frente com a vida. Fazer o quê? Onde a felicidade? Na família que tanto prezava e nos amigos. Amizade como a que conferia a meu irmão. Aliás, disso sempre tive orgulho do Lauro. Sabia fazer amigos, embora não tanto guardá-los. Explicava-se, por ser um existencialista nascido. Procurava se colocar no presente sartriano para estar feliz.
Enquanto o militar passava bem pertinho sem nos perceber, e Lauro me pedia silêncio com o dedo indicador sobre o biquinho que fazia com os lábios, eu pensei: "que vai ser agora?" O que vi foi coisa de remordimento até hoje. Meu irmão gritou com aquela voz grave, que dizia ser parecida com a de Nelson Gonçalves, muito embora eu o achasse melhor na pele de Vicente Celestino:

— PINDUCA!

Pra quê foi fazer isso? Assustou o major; assustou e o coitado tombou nocaute ali mesmo com as mãos nas costas. Ainda o vi na maca sendo colocado na ambulância, os olhos esgazeados, enxergando, parece, o que ninguém conseguia, e balbuciando para o soldado bombeiro algo como: “o senhor é o general Sampaio?” [2]. Enfarto, susto? Menos... Virou-se tão rapidamente que rendeu as costas. “É nervo torto”, disse-lhe a mãe; e mãe é mãe. Depois soube que era hérnia de disco. Uma semana de repouso da tesouraria, do banco e dos amigos que inventaram essa tal de quebrada.

[1] Dalton Jérson Trevisan.
[2] O Brigadeiro Antônio de Sampaio foi consagrado, em Dec. 51429 de 13 de março 1962, patrono da Arma de Infantaria, em cujo seio se forjou e se destacou sobremodo como bravo e modelar líder de combate, instrutor e disciplinador da Infantaria, a frente da qual, representada pela sua 3ª Divisão de Infantaria - a Divisão Encouraçada, teve seu glorioso encontro com a glória militar em 24 de maio 1866, na Batalha de Tuiutí, a maior batalha campal travada na América do Sul. (Cláudio Moreira Bento, in www.regiaodasagulhasnegras.com.br).

segunda-feira, 21 de julho de 2008

DE CARA COM O SONHO E DE FRENTE PARA A VIDA


Humberto Ilha

Ao tempo em que sonhava ser amado por uma mulher já feita, eu tinha quatorze anos. Um dia contei para uma amiga mais velha que estava amando alguém que sequer conhecia. Que amava alguém como num sonho. Tempos depois Antônia veio com a notícia de que sabia quem era a mulher que ocupava minha cabeça. Era Laura, que também sonhava com um menino imaginário bem do meu jeito. Uma explosão de alegria aconteceu no meu coração. A amiga estabeleceu que Laura e eu primeiramente nos corresponderíamos através de cartas. Houve um período de um ano com cartas indo e vindo toda semana. Ao cabo desse tempo havia verdadeiro amor entre nós. Antônia confirmara que eu era loiro, magro, olhos azuis, sorriso fácil, bonito e ainda por cima ajudava nas tarefas de casa. Laura era morena, olhos negros, mãos cuidadas, doze anos, sabia governar a casa e tinha o enxoval de casamento pronto. Eu tão menino, ela tão mulher. Essa magia era o encanto da minha paixão pela moça. Os pais da menina ansiavam conhecer-me. Os meus pais achavam aquilo uma brincadeira. Mamãe mandava-me pegar os livros e estudar. Meu pai olhava-me atravessado e não dizia nada. É que na cidade eu era uma criança. Na roça Laura já nascera pronta para a vida. Conhecia os segredos das rendas, bordava o crivo de bastidor, ensinava as primeiras letras e dava catequese às crianças, escrevia cartas com caneta tinteiro para os adultos e atendia o balcão do armazém do pai. Tudo isso era garantia de algum dinheiro para comprar suas coisas.
Um dia, já passado ano e meio, a amiga apareceu-me com uma foto de Laura. Era tudo o que eu queria. Mas a mulher somente entregaria a fotografia se eu também entregasse uma para a moça. “É prá já”, pensei. Arranquei aquela da identidade escolar e a entreguei para Antônia que me passou a de Laura. Segurando a foto com as duas mãos não acreditei no que vira. Era o retrato sorridente de uma menina negra. Senti vontade de chorar, de berrar, de me esganar todo. Não me considerava preconceituoso, mas agora estava diante de mim, um indigente racista. Sobrou-me covardia para não prosseguir amando Laura. Amontoei-me como um couro num canto do quarto e só queria sentir dó de mim mesmo. Mamãe achou melhor assim e papai ficou muito triste com o meu drama. Ambos disseram-me que a cor de uma pessoa não deveria ser impedimento para amá-la. Mas achavam-me jovem demais para me envolver com gente da roça.
Três meses depois Antônia procurou-me e propôs um encontro entre Laura e eu. Sábia mulher, porque se fora naquela semana da revelação a resposta teria sido um rancoroso “não”. Eu estava amedrontado com aquele episódio e pedi um tempo. Conversei abertamente com meus pais. Ambos acharam que eu deveria conhecer a menina e encarar a situação.
O encontro aconteceu em cinco semanas. Fui direto para a casa dos pais de Antônia, tomei um banho demorado e vesti minha mais nova roupa. Dali fomos para a casa da moça. À medida que íamos passando na estrada os moradores se aproximavam para conhecer-me e acompanhar-me. Então percebi que eu era quase uma lenda naquele lugar. Diziam de mim coisas interessantes. Que não era bom ninguém se meter comigo porque eu sabia muitos truques de boxe e luta livre. “Quanta vergonha”, pensava eu. Mandado entrar, fiquei aguardando sozinho na sala ampla e vazia enquanto minha amiga fora lá para dentro cochichar com as pessoas. Em seguida entraram os pais de Laura e trocamos cumprimentos. Olhei para fora e vi a multidão de vizinhos testemunhando o “encontro do ano”.
Na platéia ninguém falava. O pai da moça vociferava alto e grave, como a falar também para os de fora. A mãe ficava o tempo todo de cabeça baixa. Percebi que estava sendo tratado como um homem e não como um garoto. Gostei disso e ajeitei a gola da camisa, como era meu costume. Seu Aníbal chamou Laura e eis que aparece ela num vestido azul rendado. Estava deslumbrante num sorriso que transbordava felicidade. Fiquei surpreso com a beleza de Laura e comecei a fazer o caminho de volta daquele romance que não merecia ser interrompido. Nos demos as mãos e depois nos atiramos nos braços um do outro. Então um longo beijo de amor, preparado nas cartas, aconteceu. Todos sabiam o que era um beijo apaixonado, mas ninguém tinha ainda presenciado um ao vivo. Laura me olhou nos olhos e lágrimas começaram a rolar em nossos rostos. Antônia desabou ali mesmo e não parava mais de chorar. Retirei do meu dedo um anel de ouro com minhas iniciais e coloquei no dedo médio da mão direita de Laura proclamando que estávamos noivos. Houve uma algazarra geral. A filha do Aníbal iria casar com o moço da capital. E casamos, parece ontem; amanhã Antônia será
nossa madrinha em bodas de ouro.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Olimpíadas de Pequim 2008





Este aí é o catarinense BRUNO FONTES, substituto de Robert Scheidt na classe Laser, que está em Pequim lutando por medalha. Treinou muito na raia de Jurerê (olha só essa cambada, gente) e vai competir, parece, numa raia tão suja que vai ter que levar uma varinha para limpar leme e quilha travados. Preocupa porque, no futebol, campo ruim favorece a quem não tem toque de bola. Debulha, garoto. Bons ventos.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Poesia

SONETO DO AMOR IMPRÓPRIO
(Humberto Ilha)

Quando um dia me fiz tão sem juízo
Ao querer-te de modo livre e aberto
Descobri o que estava descoberto.
Decidi que perdera o paraíso.

Confinados ficamos no amor,
Nossa vida virou um mar de prazer.
Se de nós só se ouvia algum rumor,
Nós, por nós, um eterno enlouquecer.

Mas nem sempre se perde com a verdade.
Ela mesma se expõe e em si revela
A grandeza do amor. Quando há humildade

Fica o par tão unido e então desvela
Um amor tão maior que acotovela
A quem queira se haver na improbidade.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Poesia de chorar




CÂMARA ARDENTE
(Humberto Ilha)

Véu da morte a cobrir inerte a face
Da mulher que deixou-se mãe ficar
De três grandes que vêem no desenlace
Tão serena mulher se desfolhar.

Desde a hora que deu final alento,
No princípio do dia em plena aurora,
Foi seu corpo escondendo o abatimento
E mostrando a beleza de hora em hora.

Mãos que amparam e juras nos abraços,
Mas no fim os três grandes estarão sós,
Condolências formais são como passos

Que somente perguntam pela dor
Que ainda lá está escura e atroz
Esperando tornar liberto o amor.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

O SUBMARINO

Capitão Gruggenberger (27), comandante do U-513.

Humberto Ilha

O maquinista do barco fora chamado às pressas pelo mestre do pesqueiro. Às oito horas e véspera do Natal de 1943 o sol surgia por detrás de uma embarcação estranha. Havia movimentos precisos de homens no convés do submarino identificado como U-513. O Suez já estava na alça de mira do canhão de proa. Da torre de comando um megafone ordenava "Achtung! Stoppen Sie den Maschinen" repetidas vezes. O humilde barco ficou passivo e pronto para ser invadido. "Alemães" — rosnou o mestre. Em seguida dirigiu-se ao maquinista:
— Não sei o que eles querem. Mas não deve ser nada demais. Atenda-os que eu vou à casinha. Não se assuste que vieram em paz.
— Em paz? O Mestre do barco é você, Nino. Como vai à privada numa hora dessas? Repara só no tamanho daquele canhão.
— Assuma até que eu volte.

A voz metálica do megafone era curta e todos entendiam. Era de tremer de medo, sim. Os pescadores estavam diante de uma embarcação de guerra alemã, a julgar pela identificação do galhardete içado à torre. Duarte acenou para os de bordo querendo dizer que obedeciam sem resistência. O cozinheiro agarrou-se ao braço do maquinista e balbuciou algo como “chegou a nossa hora”. Num instante os alemães já estavam a bordo do Suez. Duarte calçou o par de luvas de couro e recebeu do contramestre do submarino a ordem de colocar todos em forma no convés.
— Sete são os tripulantes?
— Nós estamos em oito, o mestre está na privada.
— Traga ele para cá e mande seus homens abrirem os porões. Queremos o pescado e o combustível.
— Dies ist eine verschleierte U-Boot?[1] — experimentou Duarte num alemão colonial. O oficial fez cara de que entendeu.
— Ja, Ja. U-Boot 513.
E então o golpe fatal no alemão:
— Sie sind eine Menge der Feiglinge[2], Ladrrons und Filhedeputi.
Respondeu que sim, estampando um sorriso amistoso no rosto ainda jovem. Em seguida ordenou que Duarte falasse português. Os porões e os tanques foram abertos e inspecionados. Depois mandou que fizessem a transferência do pescado em balaios enquanto a bomba de sucção transferia o combustível. Terminada a operação o oficial alertou ao maquinista que nas próximas duas horas sua embarcação estava proibida de se comunicar por qualquer meio. Avisou ainda que o pesqueiro tinha suficiente combustível até o porto mais próximo: Cananéia.

Nesse instante o mestre do barco saiu da patente arrumando as alças do suspensório. Sequer olhou para o mandão. Piscou para o maquinista e maneou a cabeça em desaprovação ao deparar-se com uma poça de urina embaixo dos pés do taifeiro. Sorriu levemente e já ensaiava dizer algo, mas foi interrompido pelo inimigo.
— Quem é este homem?
— É o mestre, senhor — respondeu Duarte.
— Você é o mestre?
— Sim, por quê?
— Ponha-se também você na fila com os outros.
A ordem veio acompanhada de um tiro de pistola para o alto. Mas foi tão de perto que Nino achou ter sido atingido na cabeça. Mais uma poça de urina no convés do pesqueiro. O coitado desmontou-se ali, mas conseguiu balbuciar:
— Posso falar?
— Fale com o seu maquinista.
— Duarte, posso voltar para a privada, amigo?
— Ele quer voltar para a privada, senhor.
— Não, ele tem que permanecer no convés para que eu possa vigiá-lo.
— Nino, você tem que ficar aí mesmo. Não complica a situação.
— Vou-me sujar todo. Vai ser um vexame diante dos meus homens.
— Sim, mas você sobreviverá.
— O que vocês estão conversando? — perguntou o oficial a Duarte.
— Que suas ordens serão obedecidas.
— Nós vamos partir. O recado a Vargas é: "volte à neutralidade".

Durante duas horas ninguém falou com ninguém. Nino viajou até Cananéia dentro da privada. Mandou que Duarte fizesse o relatório ao sindicato dos marítimos enquanto ia encomendar uma missa em ação de graças. Dia seguinte ambos foram procurados pelo Capitão de Fragata H. Reis que pediu o parecer conclusivo do Mestre.
— Era um submarino alemão, Comandante.
— E você, Duarte, o que diz?
— Era um submarino americano.
— E com que propósito?
— O de forçar Getúlio a intensificar o esforço de guerra contra a Alemanha.
— Duarte, vem aqui fora.
Saíram e novamente o oficial se dirigiu ao maquinista:
— O Nino não está pensando a mesma coisa que você.
— É que ele tem um terreno baldio no lugar do cérebro.
— E de onde você tirou uma conclusão dessas? Não me venha com teoria da conspiração.
— O U-513 está no fundo do mar há cinco meses e aqui mesmo nesta área. Friedrich Guggenberger era o seu comandante e não aquele americano safado de ontem. A foto do alemão saiu em todos os jornais. Teve muita sorte, pois foi resgatado com mais seis e é prisioneiro de guerra em Salvador. Admira o senhor não saber disso. Olhe esta cápsula deflagrada pelo oficial no convés do Suez. E onde já se viu um alemão que não entende o próprio idioma?
Duarte então contou o diálogo que tivera com o outro. Voltaram para a sala do sindicato e o capitão, que estava aturdido, falou:
— O que vou dizer a vocês dois agora não é conselho, é uma ordem: daqui para frente bico muito calado, entenderam? E você Duarte, vai comigo para Santos agora.

Nunca mais se ouviu falar do maquinista.

[1] "Este é um submarino disfarçado?"
[2] “ Vocês são um bando de covardes”.

HOMEM AO MAR


Humberto Ilha

A aquisição de uma lancha, qualquer lancha, era meu sonho de infância jamais adormecido. Havia uns três meses que eu a comprara, mas não conseguia navegar porque sempre faltava alguma coisa para arrumar. O antigo dono deixou tudo por fazer até que ficou inviável lançá-la na água. Então preferiu vendê-la para estancar a despesa e também para não mais discutir com a esposa, que dizia ser a embarcação uma outra família que o marido tinha. De fato era mais que isso. Era um saco sem fundo de tanto dinheiro que consumia em detrimento da casa. Todo mês tinha uma coisa quebrada ou um reparo a fazer nela. Agora na minha mão, uma hora era o equipamento de salvatagem que não era reconhecido pela Marinha. Outra eram os documentos que precisavam de atualização. Outra ainda era a necessidade de revisar o motor de duzentos e vinte cavalos, sem contar com o pagamento da apólice de seguro vencido há três anos. O pessoal dizia que aquilo era excesso de preciosismo. Mas sempre gostei de andar dentro dos ditames da lei. Comprei até um aparelho de posicionamento global por satélite. Além disso, adquiri um rádio para operar com freqüência de VHF, pistolas de sinalização, coletes salva-vidas e rádio com CD player. Pois foi assim que minha lancha e eu passamos o verão: no hangar do clube trabalhando. No início do outono meu irmão decretou uma data fatal da lancha ir para água de qualquer jeito. Convidamos mais um amigo, um advogado que chamávamos de doutor, e demos o dia como certo e nas condições em que o tempo se encontrasse. Fazer o quê, se eu não estava sendo capaz de decidir a data esperada, então alguém haveria de fazer isso. Hoje eu vejo que, se dependesse de mim, ainda estaria consertando aqui e ali.
Finalmente chegou o grande dia. Era um sábado de cartão postal. Chegamos os três no Iate Clube para a nossa planejada aventura pelas águas mansas das duas baías que encantavam a cidade de Florianópolis. Não conseguia esconder o nervosismo e a alegria diante do passeio náutico. Levamos de tudo, porque a jornada prometia. Suco de laranja, maçãs, peras, biscoitos, sanduíches, bananas, refrigerantes e uma enorme caixa de isopor cheia de latinhas de cerveja.
Os marinheiros do clube colocaram a embarcação na água e os três pulamos a bordo. Num momento de intensa felicidade abrimos três latinhas para o brinde, como era o nosso costume. Depois disso arvorei a bandeira do Brasil no mastro de popa para sairmos na direção norte, direto para desfilar ao longo da Avenida Beira Mar. Eram quatro quilômetros de glória diante de parentes e amigos que moravam ali. A exibição também queria alcançar os que nos conheciam e que estavam fazendo a caminhada diária ao longo da charmosa via.
Olhávamos um para o outro e sorríamos de satisfação. Nessa época eu usava um bigode tradicionalista, bem ao gosto dos que viviam no alto da serra de onde nós três tínhamos vindo. Os três usávamos óculos de sol. O meu era um modelo Fitipaldi, que me deixava com cara de mafioso italiano. Eu nem ligava, depois de três latinhas eu era mais eu e me garantia. Meu boné de capitão ajudava a acentuar a autoridade que me vinha por estar pilotando uma embarcação reconhecida pela Marinha. Enquanto eu pilotava a lancha, o doutor e o Chico tomavam sol e cerveja na poltrona de vante. Na preguiça apreciavam cada movimento em terra. Se meu pai visse o quadro daria três seqüências de assovio e abanava os braços em saudação. Ah, meu velho pai e amigo. Deputado por duas legislaturas testemunhou dois automóveis serem destruídos por mim em momento de grande inspiração na minha adolescência. E ele que resmungasse alguma coisa. Eu o entregaria para a mamãe e o casamento dos dois já era.
Eu era um capitão amador habilitado pela Capitania dos Portos. A rigor pouco sabia na prática. Havia feito uma prova teórica e lograra êxito teórico. Era assim no Brasil, fazia-se uma prova escrita e recebia-se uma licença também escrita, para o bem e para o mal. Na época em que fizera o mestrado em Análises Clínicas na Inglaterra me contaram não existir lá a tal licença. Qualquer um podia navegar a embarcação que desejasse. Mas ai do infeliz que cometesse um só ato de imperícia náutica. Um processo de responsabilidade civil era imediatamente aberto pelo Tribunal Marítimo de Sua Majestade. A habilitação lá era prática e não teórica. No Brasil minha licença era um prato cheio para qualquer advogado transformar em primeira defesa, se envolvido estivesse eu num sinistro marítimo. Mas isso não me tirava o sono, eu queria era navegar.
Sentia meus cabelos ao vento como jamais sentira desde adolescente nas corridas de cancha reta no lombo do alazão de propriedade do papai. Ficamos dando voltas na Beira Mar durante uma hora quando Chico sugeriu tomarmos o rumo norte-sul na direção do Praia Clube lá para o lado de Coqueiros, perto da casa do governador. Fiz uma manobra de largo alcance e tomei a proa norte-sul. O mar calmo permitia uma velocidade de trinta nós para o nosso conforto. Como era bom apreciar a orla marítima do continente, com vista do mar para a terra. Tudo era muito novo para nós três.
Ao cabo de poucos minutos encostamos a lancha na praia. Tínhamos um estoque grande de cerveja na geladeira. Mas decidimos fazer bonito e ir beber no deck do Clube. Certamente pagamos o dobro. Mas o Chico disse: “isso não tem preço”. Então, que venham mais latinhas. Ali ficamos bebendo e apreciando a lancha, que estava sendo admirada pelos que passavam. As moças ficavam encantadas e nos convidavam para passear. Mas nossa convicção a esse respeito era celibatária. Não abríamos mão desse preceito nem com dez latinhas na caveira. Os três éramos casados. As pessoas chegavam a parar para bem admirarem aquele tipo de embarcação de raras paragens por ali. Tudo nela era glamuroso. Tinha escotilhas douradas, cortinas e até tapete desejando boas vindas a quem subisse a bordo. Eu quase chorava de emoção. Enfim meu dia sonhado chegara. Eu era um capitão de respeito. Bem, pelo menos era assim que eu me sentia. O doutor dizia que não entendia nada de navegação e que estava em minhas mãos. O Chico dizia o mesmo ao confessar que nem nadar sabia. Como era bom ouvir pessoas dizerem isso para mim. Mesmo que fossem aqueles dois velhacos. De fato eu era um piloto responsável. Contudo até a terceira latinha. Daí em diante os amigos diziam que eu apagava, para virar um louco-manso. Eu não podia passar daquelas três malditas latas, pois o álcool interagia com minha medicação anti-pressórica. Certa vez, na Lagoa da Conceição, com a turma, fui levantar da mesa e tropecei em mim mesmo. Nem eu sei como consegui tal proeza. Girei, cai e bati com a cabeça numa porta de vidro para ficar desacordado durante quatro horas. Eu era um perigo para mim mesmo, depois da terceira lata. E àquela altura eu já passava da oitava. Daí para frente nossa conversa se resumia muito mais a risadas do que a palavras. Ríamos de tudo e por nada ríamos. Sabe aquele jeito engraçado de rir apontando para a cara do outro? Estávamos os três desse jeito.
— Chico, disse eu, paga a conta aí que vamos navegar.
— Por que eu?
— Porque você é o melhor Chico que temos por perto, respondi com ar de deboche.
— Cachorro, nem adianta vir com palavras bonitas que eu não vou te beijar.
— Rápido no gatilho, hein? Então é na ironia?
— É, sim, respondeu meu irmão.
— Bem, se é assim eu vou acertar com o garçom. Mas você me paga, cão infiel, disse-lhe já puxando o dinheiro do bolso da bermuda. Fingindo-se de morto, o doutor cantarolava um xote conhecido. Declarava-se em desconforto quando a encrenca era em família. Já administrava conflitos familiares além da conta no escritório de segunda à sexta. Mas todos sabíamos que assumia aquele comportamento tangentóide somente para não se envolver com a despesa.
E lá fomos nós de volta à baía norte. O bom era andar de lá para cá e de cá pra lá, acompanhando o contorno da via mais badalada da capital. Em marcha lenta então, era demais. Percebi que o doutor e o Chico se haviam passado da conta porquanto não paravam mais de rir. Minhas suspeitas se confirmaram quando, como se num gesto ensaiado, ambos atiraram duas latas de cerveja vazias ao mar. Cruz credo, ali diante de todo o mundo vip era um ato criminoso. Alertei os dois sobre a agressão ambiental, mas eles só riam e riam. Um desastre ambiental estava acontecendo no mar da Praia de Fora. Pior é que era bem diante do obelisco em honra ao mártir Francisco Dias Velho, o fundador da freguesia de Nossa Senhora do Desterro, cujo nome não resistiu ao desejo de alguém bajular um líder de coturno alto feito Presidente da República e que atendia pelo nome de Floriano.
Preservação da natureza havia sido um tema bem enfocado pelo Oficial da Marinha quando dele recebi minha carta de capitão. Esse fato me causou bastante surpresa porque não imaginava que a Armada Brasileira fazia esse trabalho de conscientização. E já estava surtindo seus efeitos porque fiquei ansioso para que ninguém houvesse notado a transgressão dos dois. Contudo, aquele foi um ato muito ostensivo. Os dois mamavam direto e pediam mais velocidade. Alguém ali tinha que manter o controle da situação. No caso seria eu, o capitão, já completamente embriagado. Subitamente veio-me a vontade recorrente de dar cavalos-de-pau com a lancha. O espetáculo juntou muita gente na borda da avenida. Chico e o doutor já nem bebiam mais, eis que mal conseguiam manterem-se na poltrona para não serem lançados para fora da lancha. Eu só escutava os dois gritarem: toca o pau, marujo!
O barulho era medonho quando esgarçava toda a potência do motor em manobras radicais. Então aconteceu o que a torcida mais queria. A lancha subiu num banco de areia e parou instantaneamente. Meu irmão e o velho doutor foram jogados na água e eu fui parar na proa com a cabeça dentro da geladeira de isopor toda destruída. Quase desmaiando escutei meu irmão gritar por socorro. Era a voz desesperada do sangue a me chamar. Lancei uma âncora ao mar, disparei um foguete de sinalização e, num esforço somente visto no espírito de um lobo do mar, atirei-me na água para salvá-lo. Entretanto, não sem antes bradar o regulamentar: homem ao mar! E olha que caprichei na voz grave e pausada, conforme determina o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar. A água fria despertou-me e com poucas braçadas o alcancei. Fiz a abordagem padrão dos salva-vidas, isto é, por trás da vítima. E comecei a puxá-lo para perto da lancha. Então vi o povo dando gargalhadas e apontando para nós três, novéis náufragos nos mares da Praia de Fora. Somente fui entender o motivo da gozação geral quando vi que o doutor estava de pé diante de nós e nos mandava parar de nadar que a água estava pelo umbigo. Foi a maior desonra naval de um capitão de brinquedo.

A CERTEZA PERMITIDA


Humberto Ilha

De tudo ele já havia tentado. Começava as coisas com entusiasmo e lá pelas tantas, desatinava e ficava deprimido. As primeiras dificuldades faziam desabar o projeto sonhado. Isso desde que era criança. Mas a mãe não iria deixá-lo coroar-se um perdedor nascido. Fez que se preparasse para o vestibular mais charmoso: medicina. Foram dois anos com jornada puxada de seis horas por dia. Passou no vestibular e concluiu o curso nos seis anos na Escola Nacional de Medicina. Fez dois anos de especialização em cardiologia clínica e parou tudo para descansar um pouco. E nisso estava há quatro anos. Gostava era de curtir a noite e as mulheres, que não eram poucas.
Durante o curso fez amizade com um colega cuja mãe já se dava com a dele. Freqüentando com regularidade a casa, passava as tardes estudando com o amigo. Às vezes dormia por lá mesmo. A copeira da casa era uma potranca já feita e se desmanchava toda por ele. Começaram a ter um caso descompromissado. Ele só queria deitar com ela, mas Clara o amava de verdade.
Era ela a garantia derradeira dele sair da fossa quando estava lá. Mas não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe, diz a trova bem feita. Por um inconfessável motivo, a empregada foi demitida. Mas o bagual deu um jeito de freqüentar o novo emprego dela. A nova família era conhecida em São Cristóvão pela simplicidade e dinheiro que ganhava trabalhando com linhas de ônibus urbanos. A paixão ali era o Clube de Regatas Vasco da Gama do qual eram sócios mantenedores. Estava tudo certo porque ele também era um vascaíno doente.
Ficou sem freqüentar a casa durante os seis meses que passara no interior de São Paulo. Um dia, a casa dos Bredes estava festejando os Santos Cosme e Damião e já passava da uma da manhã. Ele procurava a empregada e não a encontrava. Criou coragem e perguntou por ela à governanta. Ficou sabendo que Clara estava nos últimos dias para dar à luz uma criança. Ele então se desmontou ali mesmo. Perguntou como seria possível aquilo, mas ela calou-se e saiu. Achava que o romance com a empregada era segredo. O tom de voz da mulher desfez essa certeza.
Foi para o salão de festa imaginando uma maneira de ver a empregada. Estava ensaiando uma nova abordagem à cozinha quando a senhora Bredes pediu silêncio a todos e perguntou se havia na festa alguém que pudesse fazer um atendimento de emergência. Amigos rodearam-no e quase o empurraram para que atendesse a dona da casa.
— De jeito nenhum. Faz quatro anos que não exerço.
— Vai ficar aí em cima do muro para sempre? Escolha um lado e desse daí. Não sei se lhe sobra covardia ou lhe falta coragem para viver sua vida. Vai lá. Você é o melhor que temos aqui.
— Sou?
Foi levado às pressas ao quarto da mulher. Espantado, viu Clara dando à luz um menino robusto. Só deu tempo de aparar a criança nas mãos. Instintivamente abraçou o bebê e exclamou sua primeira e definitiva certeza:
— Meu filho!