quarta-feira, 9 de setembro de 2009

MAL AGRADECIDO

Rochinha era dono da farmácia ao lado do Teatro. Um dia apareceu lá um fiscal do Estado que não queria comprar nada. Queria multar o estabelecimento porque havia indícios de irregularidade na escrita fiscal. O funcionário havia dedicado boa parte do mês para proceder e finalizar os passos protocolares para a conclusão da autuação fiscal. O salário até hoje ainda é na base das multas emitidas. Significa dizer: sem multar o servidor não recebe a remuneração mensal. O auditor explicou a metodologia do ato fiscal, na esperança que Valdemar Rocha assinasse a notificação porque já era o último dia do mês. Mais de dois terços do salário do fiscal estavam nas multas daquela farmácia. Tudo o que ele mais queria era o ciente do comerciante para sentir-se um pouco menos angustiado. Foi aí que o empresário engrossou o mingau.
— Você me explicou tudo direitinho, mas não vou assinar esse documento.
— Tem dó, Rocha? Você é um homem esclarecido. Sua esposa é professora universitária. Não complica mais as coisas. Assina isso antes que a gente se aborreça.
— Está me ameaçando? Só assino depois que meu Contador ler a notificação.
— Rocha, só quero o ciente no documento. Você não precisa concordar. Se quiser pode recorrer ao Conselho Estadual de Contribuintes. Tem trinta dias de prazo para tanto.
— Não vou assinar, desculpe.
— Você é um mal agradecido que está de má fé, bem podia ter trazido o contador.
O fiscal estava sentindo que o salário daquele mês ia ser baixo pela primeira vez em sua vida. De nada valiam os argumentos para o outro que maliciosamente queria ganhar tempo e judiar do fiscal. Então concordaram em ir ao escritório do contador, que era no centro da cidade. O empresário entrou e deixou o servidor público tomando um chá de cadeira de quase duas horas entremeados de cafezinhos e recadinhos de que o doutor Fulano não demoraria em atendê-lo. Esse doutor era amigo, vizinho do fiscal na praia e irmão de loja maçônica. O jeito era fazer-se humilde, desde que arrancasse naquele dia o ciente do proprietário e ainda cadastrasse a notificação no Centro de Informática do Estado. Caso contrário não ganharia o que estava acostumado para fazer frente às despesas mensais, que não eram poucas. Finalmente foi mandado entrar no gabinete luxuoso do Contador. Não viu a amizade costumeira de outros dias, não. Só a dureza da face grave como se estivesse diante de um acordo nuclear. O comerciante começou a crescer para cima do fiscal.
— O Estado só quer tributar, ajudar que é bom? De jeito nenhum.
— Rocha, não sou eu quem cria a Lei. Também sou mandado, amigo. Se você analisar vai perceber que fui leve.
— Você está levando o automóvel que acabei de comprar para o meu filho.
Então deu no fiscal a vontade de dizer que ia refazer o ato com piores conseqüências para o comerciante. Mas isso era o mesmo que admitir haver trabalhado errado. Num derradeiro fiapo de recurso dirigiu-se ao microempresário quase em súplica:
— Rochinha, assina isso de uma vez. Vai ser bom para você...
O homem parece que vislumbrou algo estranho contido naquelas palavras. Sabia que estava colocando o dedo na tomada, mas assinou direitinho. (Vai ser bom prá você...).