sexta-feira, 30 de abril de 2010

Luva de Prata

Nunca entrei naquele açougue, minha mãe proibiu. Mas escutei meu vizinho relatando a história daquele abatedouro encantado. A mãe dele mandava-o para acompanhar o pai. Era mentira do Felipe? Não era, não podia ser. Um adolescente já percebe esse tipo de falcatrua. Ele via a verdade estampada nas caras dos homens, que dali saiam abraçados aos pacotes a lhes mancharem as camisas.
Estava estampado acima da porta o nome do estabelecimento, "Açougue e Matadouro Rei Artur", nome que a esposa do proprietário detestava. Não pelo "matadouro", que lhe trazia antigas e estimulantes lembranças, mas "Rei Artur, tenha a santa paciência”! O homem explicava que era o nome do avô, Artur, um cara namorador, rei da noite.
Cedo ele abria as portas mágicas do estabelecimento, mas ela só aparecia depois, toda maquiada e dentro de um macacão branco colado à pele. Branco, por exigência da Vigilância Sanitária. Colado ao corpo, pela ditadura do apelo sensual.
Havia certa semelhança com a preparação de uma peça de teatro. Os funcionários de palco, o bilheteiro, o porteiro, o diretor, a orquestra, todos chegam mais cedo, mas a atriz principal chega por último com o prestígio do talento.
Os fregueses adoravam o cenário montado pelas peças de carnes penduradas nos ganchos de aço. Dispostos cuidadosamente sobre a mesa, as facas de carnear e desossar. A serra pendurada na parede perdia a gravidade da função porque todos sabiam que somente seria tocada por ela, a artista cobiçada.
Na hora certa ela chegava e quase ignorava o marido, mesmo quando recebia dele um cumprimento afetuoso. Voluptuosa, calçava a mão direita com uma luva de aço. Era hora de entrar em cena e faturar. Nela, a luva ficava como se fosse de prata, tal o jeito que tinha de calçá-la, tal o movimento das pequenas mãos. A platéia já se espremendo para ser atendida. Eu dizia para a minha mãe que eles queriam era ver o desempenho dela. “Vagabunda”, respondia ela.
O proprietário bem sabia por que seus fregueses eram homens. E todos gentis, pois cediam sempre a vez uns aos outros. Sabia que os açougues eram estabelecimentos em extinção, a não ser que agregassem serviço. Mas nada de jogo do bicho ou televisão. Tinha a visão para algo mais terminante, nevrálgico, infalível. Por isso ele a colocou a trabalhar ali. Mulher dentro de açougue era coisa que não se via. Depois, a vocação dela não poderia se perder sem render algum. Ainda mais que renegava a casa; principalmente o fogão. Não se reconhecia nessa situação. Dizia que não se tratava de uma qualquer.
— Por que continua fazendo isso comigo, querida? Ensinei tudo a você...
— Já lhe respondi: homem nenhum me abafa e me basta.
— Mas precisa três, além de mim?
— Você eu nem conto. Um dia eu lhe disse que só tinha compromisso com a minha vontade. Sou autêntica, você me quis assim quando me tirou do Vip Drink.