terça-feira, 24 de março de 2009

AULA DE CATEQUESE

Humberto Ilha


— Quem responde?
Todos levantaram o dedinho, pois era pergunta fácil. O Bispo de Roma tinha acabado de assumir. A primeira tendência de cada criança era de levantar o dedo para responder. Ainda mais depois de lerem no semblante do sacerdote a resposta, eis que não desgrudava os olhos de uma branquíssima fotografia papal. O menino de bonezinho assustou-se como se levasse uma chicotada.
— Você, que está com esse boné ridículo dentro da igreja.
O garoto examinou bem a foto, decifrou dois sopros baixos e:
— Bento Dezesseis, padre Osvaldo.
— Bento Dezesseis...

O velho padre sentiu ruminar por dentro um alvoroço raivento, porque a resposta estava correta. Queria abalroar os petulantes, isto é, aqueles que ousavam ensaiar uma resposta correta. Não havia chance das crianças sobreviverem, pois o religioso era do tempo de Pio Doze.
— E antes do Santo Padre Bento Dezesseis, quem era o Papa?

Agora poucos dedinhos no ar. O encolerizado ministro mirou na menina que às vezes falava um pouco alto.
— Você, menininha assanhada que matraqueia o tempo todo.
A garota sabia responder, mas não tirava o olho dele em busca de uma dica que lhe reforçasse a convicção. Olhou em redor e somente vislumbrou a imagem do Senhor, que muito bem sabia não ter sido um papa e sim o Deus-Todo-Poderoso quando andou entre nós. Terminadas as observações, virou-se para o sacerdote e disse com segurança de gente grande:
—João Paulo Segundo.

“Calma Osvaldo, esses fedelhos não vão agüentar por muito tempo. Credo-em-cruz, mais parece a voz do pé-cascudo no meu ouvido. Vá com calma, Osvaldão. Calma? Se pudessem eles me papavam. Vivem contando piadinhas de padres por trás de mim. Agora é a minha vez; se fosse de minha escolha eu não dava a primeira eucaristia para nenhum desses capetinhas que agora posam de anjinhos”.
— E antes dele? Quem foi o Papa antes de João Paulo Segundo?

Nesse momento o homem deixou escapar um sorriso perigoso somente notado pela catequista que o acompanhava há anos. “Este homem tem um espírito voraz que vive a se propor enigmas e sobre eles acampa para folhear-lhes a natureza mais escondida”. A mulher temeu pela próxima criança a ser alvejada pelo rancor do religioso e escreveu algo num pedaço de papel e entregou para a menina que estava ao lado. Imediatamente o papelzinho circulou entre as mãozinhas ansiosas. O padre demorou demais e apontou para uma aluna que já havia lido o recado:
— João Paulo Primeiro.

“Já vai acabar o oxigênio. Degusta a falsa vitória deles, vai”.
— E antes dele? Quem foi o Papa antes de João Paulo Primeiro?
Sua voz troou mais lentamente que das vezes anteriores. Antegozando o triunfo, o pároco começou a rir da carinha das crianças. É que parecia ter visto subir enorme sinal de interrogação no meio da igreja. Mas o papelzinho já circulava veloz entre a garotada, saído que fora das mãos da dissidente professora. E com o dedo gordinho de unhas bem cuidadas a revolutear no ar:

— Você... Você não... Deixa ver se adivinho quem sabe.
Ele queria era adivinhar quem não sabia, porque a descompostura já estava preparada. Somente um levantou o dedinho, o irmão do coroinha:
— Padre Osvaldo...
— Errou. Eu nunca fui Papa na minha vida.
— Desculpe, mas eu quero ir ao banheiro.
O padre mediu o garoto do pé-a-ponta e condicionou:
— Só se acertar a resposta.
— Paulo Sexto; fui — respondeu o arrojado pirralho já na porta.

“Vai fundo agora, Osvaldão. Deus que me perdoe, mas agora me deu até vontade de fazer xixi”. Era a excitação, o jorro de adrenalina diante do abalroamento final. Depois da resposta do pirralho um grande alívio descansou o espírito da catequista, que tudo fazia para não ver estilhaçados os sonhos de primeira comunhão daquelas crianças. Mas o homem queria mais encrenca com os pequenos.
— E o arcebispo de Florianópolis, quem é?

O papelzinho já circulava antes mesmo de haver largado a pergunta. Um estranhamento atingiu a espinha de cada criança. A professora agarrou-se na cruz de Nosso Senhor e esperou os cravos.
— Ivinho, responda.
— Padre Osvaldo, o papelzinho aqui está errado, porque o nome do arcebispo é Dom Murilo.

domingo, 8 de março de 2009

O FOSSO

Humberto Ilha

Não gosto, mas sou obrigado a abrir o miolo para ver o que tem lá dentro desse pesadelo desde a infância. Estou dentro da cabeça do aldeão na paisagem gelada do norte. No sonho vejo tudo pelos olhos do espadilha de adultos, crianças, doentes e idosos em lugar ainda guardado de roubo, abuso e miséria. Ali o cansaço e o sono desdormido que há para dormir. Nele, no maldito sonho, a ausência de somente um dia de paz no lugar do remorso que grita no oco da cabeça. Nele o medo da surpresa da barbárie que sempre espreita os mansos. Mas um dia, ó morte que te fiz? Muito, por certo. Chega o dia do despojo de vida e fim. A rinha desconforme pela vida! O ajuste pelas gentes concorde o costume. De um lado a arena que sangra de outro a rendição para o resguardo da aldeia. Lutar e perder trará a sobrevivência escrava. Render fará a aldeia aliada do algoz. Se assim, não sobrevivo ao acordo.

No sonho a beira do fosso de seis metros de fundo com doze cães treinados para lacerar. Doze delitos cometidos pelo espadilha contra o seu próprio povo: traição, roubo, mentira, preguiça, covardia, vício, inveja, orgulho, ódio, ciúme, homicídio e vingança.

Um sabre curto e morrer como valente, mesmo sem merecer. Os meus não choram, porque os escravizei. O inimigo não sorri, quer a justiça para a aldeia. Diante do fim estou entrando em choque. O remorso chega tarde, e à má hora, pedindo a clemência covarde. Agora é pular no fosso e morrer. Encaro o medo com um grito de pavor. Alguém me sacuda. Porque se alguém me acordar, juro, vou trilhar o caminho estreito da compaixão. Vou viver meus valores de berço.