quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ALCIDES

Humberto Ilha
Um à-toa que nem o Alcides não se encontra por aí assim. Não que fosse mau, não era. Mas que era um safado aprontador, isso ele era. Durão, feito carapaça, mas tímido e introvertido que nem um tatu, quase sempre aproveitava as ocasiões para caprichar um desempenho fraudulento; mesmo que em cima do pai. O prazer de rir dos outros não lhe sobrepunha limites. Dizia que o mais difícil era fazer-se de insuspeito para ninguém dele desconfiar. Esse era o seu talento: manter-se oculto diante de todos; não se deixar revelar o próprio miolo.

Nos dias de hoje pode-se dizer que a caçada ao tatu seja algo abominável, pois já tipificado como crime inafiançável. Mas nem sempre foi assim. Alcides foi convidado para uma caçada no sítio do próprio pai, lá para os lados da Vargem do Bom Jesus. Homem da roça, seu Manoel Liporda sustentava o dito repetitivo de que nunca o veriam com os dois pés no chão, de tanto que trabalhava. Uma vez no ano ele reunia os amigos em noite de lua cheia para caçar o tatu. Parecia ter intimidade com o cascudo; que o criara no fundo do quintal até que o bicho topasse com a derradeira hora se ver caçado. Dava a impressão que fazia um bem danado ao bicho, que só comia insetos de tão inofensivo que era. Como os poderosos, xingava o tatu de ingrato quando o pobre esperneava para se safar do facão.

Alcides iria participar daquilo que valia como um rito de passagem para a condição de quase adulto; um moço. Mas o jovem fora criado na cidade, cheia que era de escaninhos zombeteiros. Era muito à-toa, o rapaz. Definitivamente não era ainda um homem, mas o pai apostava nele; perdia sempre, mas arriscava. "Por enquanto esse à-toa não vale um ovo, por Deus do céu. Não presta para serviço nenhum. Mas um dia ele endireita".

Chegou ao sítio uma semana antes da lua cheia marcada para o inocente folguedo. Os petrechos o velho já havia preparado: lanterna de querosene, bocó, vergas de bambu, cortadeiras, facão, cavadeiras, jabuticaba curtida e o cachorro Sabido. Chegada a noite, havia muita animação e uma tensão ancestral diante do ato de caçar. Tocaram mato adentro; Alcides na rabeira cantando Portãozinho e Porteirinha: "O tatu é bicho manso e nunca mordeu a ninguém. Só deu uma dentadinha na perninha do meu bem. Anda a roda tatu é teu; voltinha no meio tatu é meu." O pai do rapaz queria mais silêncio na veação.
— Isca, Sabido! Vai procurar, vai!
O bicho se mandou pela encosta de vegetação emaranhada. Morro acima e todos em silêncio a espera do cão, que não vinha; que nem latia. De repente o ganido conhecido do animal rasgou o silêncio e a correria na direção dos latidos através da capoeira grossa. Difícil, porque no escuro não se viam as pedras, os paus, os galhos, a lama e os formigueiros. "Perdeu-se o bicho" decretou o chefe da caçada. De repente Sabido saiu acoando seguido como a dizer: "ali está, por aqui, gente". Não fosse tão escuro, era de se dizer que o cachorro apontava a toca com a patinha abanando o rabo feliz.

Enquanto isso Alcides fuçava sozinho para outros lados. Foi aí que encheu o peito e gritou bem alto: "Peguei um". E baixinho com orgulho: "O pessoal não vai acreditar que achei um baita logo na primeira vez". Não era fácil conseguir um; quantas vezes o grupo voltava sem nada? E olha que era gente de sorte. A diminuir o desencanto, naquelas vezes em que nada trazia, Liporda desdenhava o insucesso dizendo que fora caçar só por farra. Mas Alcides bem sabia que o velho ficava desconsolado. Isso ele via quando lá um belo dia o grupo trazia um bicho. Então o velho fazia uma festa daquelas. Diante do buraco, Alcides preparou a verga de bambu para cutucar a toca; devia esperar o pai, mas não quis dividir a glória. O vasilha não conhecia nada de mato; fora criado na cidade, lugar onde só se via tatu nos livros. Cutucão daqui, cutucão dali, o bicho fugiu. Nisso ele viu a turma chegando para ajudar a desentocar o desdentado. Alcides agarrou uma cabeça de pedra e fez que rolasse morro abaixo fazendo grande estrondo. "Fugiu, fugiu", gritava fingindo desencanto. O pessoal saiu correndo atrás do barulho medonho; inclusive o cão, que se meteu na frente da pedra para barrar-lhe a fuga e dela tomou um solavanco resultando um vergão no lombo. O velho achou que o bicho fazia estrago demais na coivara; devia ser mais que um porco-do-mato ou mesmo um terneiro assustado. Vieram descendo na pilha do barulho, mas já viam também o rastro deixado para trás na roça de cana. "É coisa grande, minha gente", alertava Liporda já temeroso: "Deus que me perdoe, mas parece um boi-tatá". Quanto mais descia a pedra ganhava mais velocidade. Estavam chegando de volta à casa de morada quando se ouviu um estrondo medonho na parede de estuque da cozinha. O velho dono do sítio arfava de cansaço quando lhe abriram um claro para que visse o tamanho do estrago que fizera aquela pedra: abriu um buraco na parede entrando cozinha adentro indo parar no meio dos destroços do fogão. Desanimado, seu Manoel pegou uma pomboca de querosene, olhou bem para a obra do filho e gritou: "Alcides, seu urubu, o que mais eu não sei de ti?"

E mais dele nada sabia. Sequer lhe suspeitava a vocação despertada durante aquela caçada. O rapaz foi para a Austrália, fundou a Alcides Excavation & Demolitions, ficou rico e de lá não sai tão cedo.

domingo, 21 de setembro de 2008

O SARGENTO DESMAIOU

Humberto Ilha

A carteira do Banco de Sangue conferia-lhe a condição de doador universal. Não ia deixar de atender ao pedido do comandante: levar cinco com sangue "O positivo" ao Hospital para socorrer um baleado grave. "Deixa comigo que dou um jeito, major". A fala do sargento soou convincente e responsável num quase brado militar. E dali foi atrás de mais quatro porque ele já era um.
Diante de tão inoportuna missão ocorreu-lhe procurar entre os domesticados da cozinha. Estava com sorte, arrumou quatro e se foram num velho jipe de puxar esterco. No trajeto percebeu que nenhum deles havia doado sangue. Então o homem disse que na Capital isso era corriqueiro mostrando-lhes orgulhoso a carteira de doador; que era procedimento indolor para homens de fibra; explicou-lhes o valor da solidariedade humana sem esquecer que depois de tudo vinha um lanche reforçado para cada um. Pareceu-lhe que a gororoba fora o melhor argumento até ali, porque eles riram um pouco.

Ao desembarcar da viatura percebeu que os quatro estavam com as mangas já arregaçadas e com uma das mãos sobre o local do braço onde iam receber a agulhada. "Estão encagaçados; acho que vou ter trabalho com os cozinheiros. Parecem tão fortes e tão cheios de maricagem". O médico do Esquadrão já os esperava; o baleado queria morrer, parece. Levou todos para uma sala de procedimentos e perguntou quem era o primeiro. Os quatro olharam para o sargento, que designou um já branqueando diante da incerteza daquela sala cheirando a éter. O jovem sentou confortável numa espreguiçadeira e a freira nem deixou que sentisse dor alguma. Quando o rapaz se deu conta já estava se esvaindo para dentro de uma bolsa estéril; meio litro. Veio o segundo com mais arrojo, mas sério e branco como um defunto. Deu meio litro do precioso e ganhou o sorriso de aprovação do sargento. Com o terceiro foi mais fácil a adesão, mas a agulhada fechou a cara do mísero numa careta ostensória. A enfermeira acabou perdendo a veia do rapaz para dar mais uma espetada. Outro meio litro já levado lá para dentro, mas o doador ficou meio desencantado num canto da sala segurando o algodão no braço. O quarto voluntário foi o cabo cozinheiro, um avô que acreditava em papai-noel. Antes de oferecer seu inestimável braço olhou para o chefe como a perguntar: "posso me entregar"? Um gesto do sargento deixou-o suave e à mercê da freira que só queria saber de furar. O homem levantou-se e decretou: "Agora é a vez de o sargento dar". Arisco na ironia o militar corrigiu: "Não vou dar coisa nenhuma; vou doar". Era a vez do líder que já se arregaçava todo para deixar que lhe espetassem o braço quantas vezes fossem necessárias para o efetivo desempenho da missão que lhe fora confiada (clichê albergado ainda na Escola Militar). Quase buzinou nos ouvidos dos cozinheiros o patrono Marquês do Herval: “É fácil a missão de comandar homens livres: basta mostrar-lhes o caminho do dever”. Mas achou melhor fechar a matraca e ensinar:
— Não disse a vocês que era tudo muito simples?
Dizia isso com aquela voz de mandar nos outros, daquela que vinha sempre de cima. Enquanto doutrinava, abria e fechava a mão sem que ninguém pedisse. Como se fosse ele quem tivesse inventado a doação de sangue; melhor, como se tivesse inventado o sangue (quem se lembrar de Machado de Assis aqui, não pense tratar-se de mera coincidência). Os quatro soldados, testemunhando tamanha segurança advinda daquele jovem líder já estavam de olhos meio arregalados. Nunca se viu alguém tão cheio de bossa como aquele.

A coleta no sargento havia terminado e já se preparavam todos para abocanhar a prometida merenda, quando o maioral perdeu a audição. Depois perdeu a visão e o equilíbrio para se agarrar no que estivesse por perto. Atracou-se com a freira alarmada: "Alguém segura este homem que sozinha não consigo". Foram os dois para o chão. "Desmaiou... Ventila, ventila... Abaixa a cabeça dele... Água, água..." Até que melhorou. Foi uma vergonheira, credo.

Quando o jipinho do esterco chegou ao quartel parecia que todos esperavam um funeral. Queriam saber do sargento. Sentado no primeiro banco, verde, cabeça pendendo para o lado de fora, lábios descorados, olhos fechados, seguia vagarosamente como se fora Charlton Heston em El Cid Campeador, morto sobre o cavalo a desfilar diante da tropa contristada. Mas só por agora, porque depois o calvário do doador universal ia começar. Então o major perguntou o que houvera. O velho cabo assumiu o comando dos quatro e respondeu sufocando o deboche:
— Homem de Deus, o sargento desmaiou.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

ESTAVA INDO TÃO BEM...

Humberto Ilha

Engana-se quem pensa que o céu é perto. José Galo era um Contador capaz e exercia o ofício de Auditor do Estado. Num domingo à noite, voltando ao interior, trajava blusa de lã muito fina e inadequada para o clima da serra. Acomodou-se em duas poltronas do Reunidas Noturno. Necessário descansar para encarar o dia penoso na manhã seguinte. Acostumado a dormir no primeiro balanço, o veículo nem andou dez minutos e Zé Galo já era. Só acordou três horas depois tiritando de frio, com o ônibus parado fazendo escala no pé da serra. Três graus de temperatura dentro do veículo; lá fora, horrível. Entraram quatro moças e um rapaz. Uma foi na direção dele sorrindo e caminhando vagarosamente procurando o lugar que lhe cabia. A cada busca do número ela olhava e esboçava-lhe sorriso iluminado. O Auditor arriscou pensar que ela ansiava sentar-se ao lado dele. "Está no papo", pensou. José Galo se considerava um assaltante, em matéria de conquistar mulheres; tinha faro de predador e escassa compaixão pela presa. A moça colocou a bolsa de mão no bagagito e se preparava para sentar ao seu lado, quando alguém reivindicou a poltrona. Conferiram os bilhetes e ela foi sentar-se num banco imediatamente à frente. Quando Zé Galo olhou de cima a baixo o vizinho quase não acreditou. Era um rapaz de tez acobreada, puxando a bugre. Trajava uma camisa fina de manga curta, calça jeans e tênis todo detonado. Era um ferrado, um caboclo. Trescalou, no sentar, cheiro de álcool e morrinha de quem não se lava. O fedor vinha também dos poros do homem. O chulé que subia do porão das calças espalhou-se no salão de passageiros. O ônibus não tinha calefação para dar conforto aos usuários, mas catinga quente ele tinha. José Galo, que ia ficar tão bem albergado ao lado da moça bonita, de repente se viu obrigado a viajar mais seis horas ao lado daquele caminhão do lixo: "deus-que-me-perdoe". A moça olhou para trás, sorriu e fez com os ombros que sentia muito. Os passageiros começaram a pedir que o motorista fechasse a porta e tocasse o ônibus. O frio parecia entrar pelo corredor como lança de gelo para lacerar em dor o peito de Zé Galo.

Em menos de dez minutos aquela fossa errante já havia adormecido com direito a ronco. E o pior: dormiu encostado no ombro de José Galo, que o empurrou delicadamente de volta ao seu lugar. Novamente o imundo foi repousar no ombro do já irritado Auditor. Contudo, além da cabeça, o homem encostou-lhe os braços e as pernas. Antes de obrigá-lo a se arranjar em seu lugar, José Galo, que estava gelado, experimentou o calor do corpo daquele homem ao seu lado. Resolveu deixar que ficasse ali, quentinho e quieto. Sentia tanto frio que não fez caso da repulsa de estar quase abraçado ao ensebado. Dizia sempre que detestava macho; que, mesmo perfumado, homem tinha catinga. Mas aquela era uma circunstância que o desobrigava da regra. O frio era desumano para se ater às comichões machistas. Queria mais era se esquentar, nem que para isso tivesse que pagar mico. As luzes estavam apagadas, todos dormindo; por que não? Aconchegou-se, ele também, ao corpo daquele que há pouco desprezara. Tão quentinho estava que dormiu direto. Só se apercebeu do final da viagem porque sentiu falta do balanço do ônibus. Olhou em volta e não viu os passageiros. Levantou-se sobressaltado e foi resgatar a bagagem de mão. Não encontrou nada. Pensou no diabo que estivera ao seu lado. Foi no bagageiro recuperar a mala grande, nada. "Foi ele", pensou. Já estava se dirigindo para reclamar no guichê da empresa quando avistou o bugre patife. Agarrou-o pelo colarinho e derrubou-o no chão aplicando-lhe poderosa chave de braço ao som dos palavrões mais absurdos para àquela hora da manhã.
— Onde está minha bagagem?
Sem poder emitir som, o rude apontou para os sanitários da rodoviária. Descorado de tanta cólera e desejo de vingança Zé Galo foi entrando porta adentro sem nada encontrar. Olhando na direção do bugre, como a indagar num amplo gesto com os braços, perguntou pela bagagem. Novamente o índio apontou para os sanitários, mas desta vez para o feminino. Entrou lá e encontrou seus pertences com a piranha da poltrona da frente.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O PALHAÇO QUE ENXERGAVA NO ESCURO

“Os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão” (Choro Bandido, de Chico Buarque e Edu Lobo).

Humberto Ilha

No dia seguinte ele já estava trabalhando no Parque de Diversões. É que um dia antes fez algo por baixo dos panos. Dormiu pouco, mesmo assim não se via sinal de trinca na estrutura da fachada do homem. Antes de tudo escutou aquela história dramática que ia ribombar em sua cabeça até que conseguisse aquietar o deus da morte, de quem era vizinho.

Soube que um homem adotara um menino criando-o junto com a própria filha. Ao tornar-se um rapaz, tornou-se também um mandrião que não queria saber de trabalho. Isso dava imenso desgosto ao pai, que trabalhava duro na roça de cana junto com a menina. O vadio já havia se metido em várias encrencas e ganhara um golpe de facão em cima do olho esquerdo que lhe deixou cicatriz e o olho cego. Então ficou sendo conhecido como Caolho.

A adolescente queixou-se ao pai de que o irmão estava se aproveitando da bondade dele. Um dia, em conversa com o marmanjo, o velho chamou-o à atenção sobre o que a filha havia dito. O rapaz prometeu arrumar emprego. Mas, ardiloso, ele concebeu uma vingança: matou a irmã dentro de uma patente no fundo do quintal e fugiu do lugar. O caso ganhou contornos pesarosos e se espalhou na região. Por se tratar de crime violento, gerou revolta nas pessoas germinando ali um perigoso clamor de vingança. Mas o assassino já estava longe; veio morar no Sul.

Passados dois anos um viajante, que se declarava revoltado com a falta de justiça, comentou o caso com um dos atores do elenco do filme "O Preço da Ilusão" (argumentado por Eglê Malheiros e Salim Miguel) que estava sendo rodado na cidade aonde Caolho viera se esconder. Outro não era senão o palhaço Coruja, que decretou:

— Conheço o assassino e sei onde ele está. Diga ao pai da menina para descansar que o malvado já era.

Naquela noite, como nas outras, ostentava aquela gravata horizontal: poá com as abas grandes. As largas riscas brancas do traje impecável deixavam-no mais longilíneo. Mulato de olhos azuis, alto quase arcado, gostava de sapatos pretos de tacões sempre novos para garantir o andar aprumado e leve. "Um artista, dizia, nunca terá dignidade com os saltos dos sapatos desgastados". Camisas sempre brancas — tinha umas quinze para trocar três por noite — levemente borrifadas pelo fuxiquento Lancaster. Unhas grandes nas mãos suaves confrontavam a rude torquês de arrancar as setas disparadas nos alvos pelas espingardas de pressão. Dentão de ouro maciço, visível até quando pensava. Vasta cabeleira crespa já prateando, Coruja dava ares de ser alguém especial e que já se despedia de fazer coisas arriscadas pela vida. A voz toda de César Ladeira ele a gastava anunciando os pontos enquanto manipulava com rara habilidade o alicate para extrair as setinhas de plumas coloridas.

No ir e vir até o balcão divertia-se fazendo malabarismos perigosos com aquele alicate nas mãos quase enfeitiçadas. Possuía duas tenazes daquelas, mas da maior era melhor ficar longe. Aquela torquês parecia ter parte com o diabo. Para arrancar aquelas tachinhas da madeira não precisava tanto. Mesmo assim nunca despertou sentimento de medo em quem lhe prestasse atenção. Pelo contrário, não fosse tão conhecido bem poderia ser confundido com um cervo de linhas efeminadas. E olha que ontem nem parecia ser quem era, pois trajava roupa furtiva; um preto sobre preto. Quase invisível a olho nu, aplicava-se ainda venda preta no olho direito; e isso lhe era bem visível. Aquele tampão apagava as suspeitas sobre seus rastros, se por ventura alguém os descobrisse. Imóvel dentro da sombra do "Margarete" somente respirava; quer dizer, respirava e pensava. Estava prestes a dar conta de um carreto prometido.

O lenço preto na cabeça escondia o pixaim prateado. Às vezes escapava-lhe uma tosse abafada, para dentro; quase um rosnar de bicho. Naquele instante Coruja era um bicho. Esperava alguém que viria do "Bar Glória". Sem perceber, o tal veio se abrigar da garoa ao lado do próprio carrasco. Primeiro recebeu uma fita plástica na boca e depois duas algemas nas mãos para trás. Com o único olho arregalado, protestava maneando a cabeça fazendo que não. Estava imobilizado e diante de um algoz conhecido de outras bandas. Coruja sorriu um sorriso perverso dando-se a conhecer por aquela ameaçadora presa de ouro na boca. Então Caolho ficou aterrorizado dando ares de tudo entender, enquanto era dissecado pelo olhar gelado de atravessar tudo do carrasco; enquanto ouvia a voz do predador.

— Um dia te deixei viver para veres o mundo com o olho direito; para compreenderes o que é positivo na vida: a felicidade, o amor e a compaixão. Agora me enxergas com esse tampão no olho. É que desejei te enxergar com o meu olho esquerdo, que é por onde enxergo a podridão.

Em seguida Coruja sufocou o sobrinho pinçando-lhe as narinas com aquela torquês do inferno, já escondida por dentro.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

CHUVA REVELA OURO SOB A CARCAÇA

Humberto Ilha

Muitas vezes quem bebeu todas quer mesmo é ficar encostado à cangalha da bebedeira, no velho exercício da autocomiseração. Quem chega de fora, mesmo na primeira fila, pouco vê o que possa existir lá dentro daquela carcaça.

O infortúnio jamais encontrou abrigo tão adequado como na pessoa de Aristides, que logo cedo começava com uma dose a comemoração pelo fato de haver parado de beber na noite anterior. Estalava a língua quando mandava dois marteletes de cachaça para dentro. Mas não agüentava a inocente mistura de vinho, conhaque e aniseta. Era de revirar-lhe o bucho e o dia estava perdido. De estatura baixa, magro, quase um índio, mas com a alma azul, que desafiava a justiça divina quando comparada com as coisas da terra. Não havia criatura de melhor coração e de pior sorte. Padecia de beleza, mas trazia escondido dentro de si as melhores digitais da moralidade. Estivador, amava jogar no bicho. Tinha estilo e coerência para fazer a fezinha. Perseguidor incansável da centena 188, jamais soubera pronunciar direito o nome do felino correspondente. Não é que entendesse alguma coisa de numerologia. É que confiava na sabedoria do acaso. Havia juntado do chão uma placa esmaltada com o tal número estampado. Uma dessas que se coloca nas casas para os carteiros encontrarem o endereço das pessoas. Teve a idéia de pregá-la na fachada da privada, no fundo do quintal, como se fora um troféu. Lá uma vez perdida ganhava uma bolada. O bicheiro era homem honesto. Ironia à parte, era honesto dentro do ilícito. Em acordo com a lei da rua. Enquanto isso ia ficando riquinho com a contravenção tolerada.

Quase analfabeto Aristides só lia papel de letras grandes. A exceção que fazia era para as letrinhas no caderno da venda. Depois das seis da tarde entrava lá e começava a implicar com o proprietário. “O café está caro; sei onde tem mais barato”. Ao Nestor cabia-lhe apenas represar a irritação. Aristides divertia-se à larga. Mas também a encrenca dos dois não passava disso. Dizem que Aristides bebia por desgosto. A mulher se consumia em tuberculose; coitada, internada no Nereu Ramos o tempo todo. Tratado como um sem vontade para largar o vício, merecia o respeito dos que o conheciam e ao seu drama. De qualquer jeito parecia desumano tratá-lo dessa forma. A vizinhança lhe conferia apoio, menos Duarte, um marujo que dava duro para viver. De justiça diga-se que muito fez para ampará-lo quando enchia a cara.

O estivador chegava em casa e começava a jogar porta a fora a louça, as panelas e os talheres. Em seguida pegava os dois potes cheios de água e os estourava na rua com grande alarde e aos gritos de “O negócio é o seguinte... seguinte... seguinte”. Não dizia nada com nada. As duas crianças corriam para a casa dos vizinhos. A mulher de Duarte pedia e o marido ia lá, dava um banho nele, colocava-o na cama e punha-o para dormir; fizera-o muitas vezes, mas agora não estava mais disposto a ajudá-lo. Então passou a não mais atender aos pedidos de socorro que a própria esposa lhe fazia. Começou a endurecer no tratamento com o vizinho, que tinha parentes bem nascidos. Entretanto, somente o primo Osni Motter, o feio, o recebia na Assembléia Legislativa para atender-lhe as necessidades.

Duarte sofria de hipertensão severa, segundo o médico do Instituto. Além do mais era epilético e fazia tratamento com um barbitúrico: Gardenal. Muitas vezes ficava descompensado e não havia quem conseguisse o remédio na cidade. A não ser o Aristides. Quando sabia que o vizinho estava assim ele ia à casa do primo e conseguia o medicamento. Mas agora o irritado marinheiro havia proibido a esposa de pedi-lo para trazer o remédio. Não queria mais favor dele. Mas também não o ajudaria mais quando chegasse chumbado em casa.

Naquela noite chovia de fazer barulho, Aristides chegou encharcado em casa. Por dentro e por fora. Começou a quebrar as coisas e as crianças fugiram. Depois foi para a rua e começou a desafiar: “Seu Lucas, está com medo ou está com nojo?”. Duarte estava de cama, com a pressão altíssima e sem medicação; quase tendo um derrame. A provocação durou um tempo até que o embarcadiço cedeu aos pedidos da esposa para ir lá e colocar o homem a dormir. Resmungou que tinha era vontade de dar-lhe uma surra.
— Melhor é compreendê-lo; — disse ela — creditar-lhe virtudes que você não tem.
— O Aristides é um indigente de caráter.
— Nem tanto. Você tem pressa de envelhecer quando não consegue disfarçar sua voracidade pelas notícias do vermelho Novos Rumos; ele nem sabe ler. Você ama polemizar usando argumentos bem nutridos, fluentes, diretos, contundentes e realistas. Ele é um homem bom, romântico como os bêbados, que vão para lá e depois para cá; que param, andam, resmungam, ameaçam os fantasmas que só eles vêem, ironizam, falam sozinhos, pois se bastam a si; que choram, escorregam e caem para se levantar e seguir na vida. Ele vai viver mais que você. Quando ela começava assim, Duarte tinha que sair de fininho para não escutar o que ela consignava nas notas de rodapé. Foi lá e encontrou o outro estirado no chão com a chuva do telhado caindo-lhe sobre o rosto vincado pela dor na alma, pelo trabalho duro da estiva, pela solidão sem luz, pela falta de futuro. “O corno está morto e não sabe” — sorriu, —“a carcaça já larga catinga...” Discutiram um pouco e Duarte levou-o para dentro, tirou-lhe a roupa, deu-lhe um banho, pô-lo para dormir e ia iniciar uma prece quando Aristides sentou na cama, coçou a cabeleira preta e zombou:
— Está com medo ou está com nojo?
Duarte virou-lhe as costas e o outro caiu já roncando.

Ao passar pela cozinha Duarte deparou-se com três caixas de Gardenal.

domingo, 7 de setembro de 2008

O INESQUECÍVEL ANTÔNIO PÉ DE PATO

Humberto Ilha

Alberto Capa Preta veio contar que Antônio Pé de Pato estava trabalhando de operário na ponte batendo ferrugem. Mesmo que a gente dissesse que era um bom trabalho, ele não gostava porque lhe soava que o estivéssemos mandando ir trabalhar. "Fico desempregado, mas não vou me pendurar lá como um macaco amarrado pela cintura no sol e na chuva". Achava isso desonroso. Pelo menos Antoninho estava defendendo o jabá de cada dia porque a vida era pedreira. Mas Betinho era metido a ser especial só porque tinha cara de roqueiro; só porque andava para cima e para baixo com o Roberto Carneiro cantando o repertório do Elvis; ficava imitando o astro como se acometido de epilepsia. Na época ninguém sabia, mas aquela panca de artista só fazia sucesso na zona, onde era conhecido como Capa Preta. Amargou esse apelido o resto da vida junto com as doenças que pegou por lá. Teve juízo, porque jamais casou para evitar o alastramento da praga encalacrada na carcaça. Cancro Duro, Crista de Galo, Esquentamento, Hepatite B e Chato, só para não deixar grande a lista de moléstias que arranjou com aquela veneta de virar roqueiro num lugar pequeno. Quando ele apontava longe as mulheres já o bradavam por causa daquela capa de lã até as orelhas. Entrava e já ia desabotoando tudo para parecer melhor de se ver. Para deixar evaporar o Topaze legítimo que conseguia com os muchachos argentinos nos trapiches da Rua 14 de Julho.

Dia seguinte o vadio levantava somente quando Pé de Pato chegava para almoçar, pois a casa era ao lado.
— Vai lá rapaz; a vaga ainda é sua.
— O salário é mesmo aquele?
— Vai lá; vai lá.

Foi mesmo, mas queria primeiro ver Antônio trabalhando; conferir se ele próprio agüentava o tranco. "Que seja, mas não gosto de trabalhar amarrado como um mico". O outro veio e explicou as graves responsabilidades de segurança no serviço. Alberto resolveu encarar. Para debochar do canteiro de obras perguntou:
— Posso urinar lá para baixo?
— Só não molha as ferramentas.
Era tanta urina acumulada que iniciou fazendo um arco, depois umas rodilhas e o resto foi em cima de uns cabos de alta tensão. Nem se lembra disso, mas foi jogado no mar desacordado lá de cima. Do guascaço que recebeu somente lhe ficou na cabeça a sensação de que estava encolhendo até ficar do tamanho de um palito de fósforo junto com a visão nítida de um caixão de defunto de guarnições roxas. Pelo que se soube depois, fora eletrocutado por uma corrente elétrica de quase mil volts que se conectou na urina.

Trinta metros de queda livre os dois; sim, porque Antônio desafivelou rapidamente o cinto de segurança e se jogou logo atrás no vazio para socorrer o vizinho preguiçoso, mas não o avistou na superfície; o jeito foi mergulhar. Não era à toa que tinha o apelido de Pé de Pato. Com aqueles pés defeituosos que ganhara não se sabe de quem, seu nadar era ligeiro. E foi ligeiro que encontrou o amigo cada vez mais afundando inconsciente. O engenheiro que lhe exigia o cinto amarrado na cintura era o mesmo que lhe ensinara os primeiros socorros. Foi o que salvou o moço bonito da zona nos primeiros minutos após o acidente. Ambos foram direto para o Hospital Senhor dos Passos. Não era seu gosto, mas Antônio até falou nas rádios da cidade. Diminuindo o feito acabou famoso pela coragem e pela bondade.

De prêmio, o Distrito Naval convidou o herói para fazer cobiçado curso de prático na Baía da Babitonga, garantindo-lhe a velhice. Foi promovido comandante por merecimento. Capa Preta preferiu garantir a velhice das bruacas e foi promovido a coronel.

Pelo que se sabe, até hoje ocupa o posto.
Foto: Ponte Hercílio Luz, acervo do Intituto Carl Hoepcke.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

A SUSPEITA

Humberto Ilha

A foto mostrava a alegria do rapaz com o produto do roubo. Só que o delegado queria enjaular mais um.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA



Humberto Ilha

Quando ele voltou a si, repetia: "Chega, desliga tudo".

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

GUARDA-BANDEIRA

Humberto Ilha

Menos de vinte e quatro horas depois o tenente já estava ansioso para compor a guarda-bandeira. Queria degustar aquela honra. Glória somente menor que "morrer num campo de batalha todo roto por balas" (era-lhe ainda recorrente o casto verso da canção da arma). O comando da guarda era dado ao mais novo oficial. Não era questão de merecimento, mas de tradição. Quando se tratava de um novato com formação na Academia Militar o protocolo se revestia de graça e beleza. Aí residia o encanto, pois não é sempre que se vê um jovem galante envergando garboso uniforme no desempenho de algo tão digno. Tradição determinada pelos comandantes de cabelos já esbranquiçados, o rito ajudava-lhes a entender a própria alma batida pelos ventos da dura vida nas guaritas. Olhando a juventude no desempenho de tão elevada missão, esses veteranos se viam nela. Melhor, passavam a residir nela.

Experimentei o regozijo de fazer parte disso durante algum tempo. O porta-bandeira era um oficial recém-formado. O que ele tinha de capricho no cerimonial, tinha o equivalente a dívidas nos carnês. Um dia antes tinha tomado uns solavancos do velho coronel por causa de um telefonema recebido do banco. Não fosse esse podre era um deus para nós. Nas vésperas dos desfiles o caudilhinho nos treinava exaustivamente até que todos os movimentos saíssem perfeitos. Éramos dois cabos e três soldados. Todos da mesma altura para harmonizar a formação. Ele, armado de pistola e espada, conduzia o pavilhão nacional; cada um de nós, um fuzil com baioneta armada. Como aquilo pesava; nossa! Nos ensaios deixava-nos amargar durante muito tempo em ombro-arma, que era "a posição primordial de uma guarda-bandeira que se preze". As praças de uma guarda de honra jamais faziam o movimento de apresentar-arma. Era a tropa quem o fazia em homenagem ao intocado pavilhão nacional. O homem também não aceitava que fizéssemos qualquer outro movimento para aliviarmos a postura incômoda do ombro-arma. Ficávamos ali, debaixo de sol ou chuva durante o tempo que ele decretasse. Muitas vezes nossos braços adormeciam enrijecidos. Ainda assim, estar sob as ordens de um militar de carreira era adequado porque ele sabia o que estava fazendo. Éramos voluntários, pois se assim não fosse ele não nos queria ali. Para ele iam os elogios, para nós o breve privar do seu convívio pessoal; pois que no recreio ele se tornava nosso companheiro de cigarro. Chegou a nos contar sobre aquela chacoalhada do dia anterior.

Havíamos entrado num concurso para a escolha da melhor guarda-bandeira da Quinta Região. Vencemos, mas naquele dia aconteceu uma que jamais esquecerei. As guardas tinham que desfilar diante da tropa perfilada, executar alguns comandos marciais de marchas e contramarchas e se postar diante do palanque onde estavam os comandantes e a comissão julgadora. Essa parte da cerimônia era chamada de "introdução da bandeira". Nossa guarda foi chamada, fizemos uma apresentação impecável e nos colocamos diante do palanque em posição de ombro-arma durante quase uma hora; tudo de acordo com o nosso treinamento. As outras guardas desfilavam e após ficavam em posição de sentido, com os fuzis e a bandeira nacional em posição de descanso. Desnecessário dizer que nossa posição inflexível agradou e fomos escolhidos a guarda-bandeira da Região Militar.

Então veio desfilando a guarda-bandeira do Centro de Preparação de Oficias da Reserva comandada por um tenente novinho, quase ainda um civil. Vinha progredindo sem muito brilho diante do palanque quando um repentino vento de rebordo fez que a bandeira nacional arrancasse o capacete da cabeça do oficial. Primeiro o vento caprichoso drapejou o pátrio pendão ao som de um dobrado comovente. O tenente arrepiou-se do pé à ponta igual a um tamanduá-bandeira ouriçado: "agora eu ganho a disputa". Depois, talvez com raiva dos que tão mal o tutelavam, ele próprio, o símbolo augusto da paz, arrebatou a cobertura mal assentada na cabeça do jovem para atirá-la no chão feito uma pipoca descontrolada: ploc-ploc-ploc pelo meio da espaçosa Brigadeiro Franco. Que saia justa! Deixasse o diabo do capacete no chão e seguisse em frente. Mas não; ficou tentando resgatar o equipamento com a haste da bandeira feito lança, já arrastando suas respeitáveis pontas pelo chão. Cada tentativa malograda produzia faíscas na pedra do pavimento. Quando deu por si o tenente estava longe, já dobrando a esquina da Praça Osvaldo Cruz. E dali se escafedeu. Uma cena dessas nem era para ser engraçada; mas foi.
Foto: FC Aldo do Comando Militar do Nordeste, onde é comandante o Gen. Ex. Jarbas Bueno da Costa; meu amigo na juventude.