Humberto Ilha
Um à-toa que nem o Alcides não se encontra por aí assim. Não que fosse mau, não era. Mas que era um safado aprontador, isso ele era. Durão, feito carapaça, mas tímido e introvertido que nem um tatu, quase sempre aproveitava as ocasiões para caprichar um desempenho fraudulento; mesmo que em cima do pai. O prazer de rir dos outros não lhe sobrepunha limites. Dizia que o mais difícil era fazer-se de insuspeito para ninguém dele desconfiar. Esse era o seu talento: manter-se oculto diante de todos; não se deixar revelar o próprio miolo.
Nos dias de hoje pode-se dizer que a caçada ao tatu seja algo abominável, pois já tipificado como crime inafiançável. Mas nem sempre foi assim. Alcides foi convidado para uma caçada no sítio do próprio pai, lá para os lados da Vargem do Bom Jesus. Homem da roça, seu Manoel Liporda sustentava o dito repetitivo de que nunca o veriam com os dois pés no chão, de tanto que trabalhava. Uma vez no ano ele reunia os amigos em noite de lua cheia para caçar o tatu. Parecia ter intimidade com o cascudo; que o criara no fundo do quintal até que o bicho topasse com a derradeira hora se ver caçado. Dava a impressão que fazia um bem danado ao bicho, que só comia insetos de tão inofensivo que era. Como os poderosos, xingava o tatu de ingrato quando o pobre esperneava para se safar do facão.
Alcides iria participar daquilo que valia como um rito de passagem para a condição de quase adulto; um moço. Mas o jovem fora criado na cidade, cheia que era de escaninhos zombeteiros. Era muito à-toa, o rapaz. Definitivamente não era ainda um homem, mas o pai apostava nele; perdia sempre, mas arriscava. "Por enquanto esse à-toa não vale um ovo, por Deus do céu. Não presta para serviço nenhum. Mas um dia ele endireita".
Chegou ao sítio uma semana antes da lua cheia marcada para o inocente folguedo. Os petrechos o velho já havia preparado: lanterna de querosene, bocó, vergas de bambu, cortadeiras, facão, cavadeiras, jabuticaba curtida e o cachorro Sabido. Chegada a noite, havia muita animação e uma tensão ancestral diante do ato de caçar. Tocaram mato adentro; Alcides na rabeira cantando Portãozinho e Porteirinha: "O tatu é bicho manso e nunca mordeu a ninguém. Só deu uma dentadinha na perninha do meu bem. Anda a roda tatu é teu; voltinha no meio tatu é meu." O pai do rapaz queria mais silêncio na veação.
— Isca, Sabido! Vai procurar, vai!
O bicho se mandou pela encosta de vegetação emaranhada. Morro acima e todos em silêncio a espera do cão, que não vinha; que nem latia. De repente o ganido conhecido do animal rasgou o silêncio e a correria na direção dos latidos através da capoeira grossa. Difícil, porque no escuro não se viam as pedras, os paus, os galhos, a lama e os formigueiros. "Perdeu-se o bicho" decretou o chefe da caçada. De repente Sabido saiu acoando seguido como a dizer: "ali está, por aqui, gente". Não fosse tão escuro, era de se dizer que o cachorro apontava a toca com a patinha abanando o rabo feliz.
Enquanto isso Alcides fuçava sozinho para outros lados. Foi aí que encheu o peito e gritou bem alto: "Peguei um". E baixinho com orgulho: "O pessoal não vai acreditar que achei um baita logo na primeira vez". Não era fácil conseguir um; quantas vezes o grupo voltava sem nada? E olha que era gente de sorte. A diminuir o desencanto, naquelas vezes em que nada trazia, Liporda desdenhava o insucesso dizendo que fora caçar só por farra. Mas Alcides bem sabia que o velho ficava desconsolado. Isso ele via quando lá um belo dia o grupo trazia um bicho. Então o velho fazia uma festa daquelas. Diante do buraco, Alcides preparou a verga de bambu para cutucar a toca; devia esperar o pai, mas não quis dividir a glória. O vasilha não conhecia nada de mato; fora criado na cidade, lugar onde só se via tatu nos livros. Cutucão daqui, cutucão dali, o bicho fugiu. Nisso ele viu a turma chegando para ajudar a desentocar o desdentado. Alcides agarrou uma cabeça de pedra e fez que rolasse morro abaixo fazendo grande estrondo. "Fugiu, fugiu", gritava fingindo desencanto. O pessoal saiu correndo atrás do barulho medonho; inclusive o cão, que se meteu na frente da pedra para barrar-lhe a fuga e dela tomou um solavanco resultando um vergão no lombo. O velho achou que o bicho fazia estrago demais na coivara; devia ser mais que um porco-do-mato ou mesmo um terneiro assustado. Vieram descendo na pilha do barulho, mas já viam também o rastro deixado para trás na roça de cana. "É coisa grande, minha gente", alertava Liporda já temeroso: "Deus que me perdoe, mas parece um boi-tatá". Quanto mais descia a pedra ganhava mais velocidade. Estavam chegando de volta à casa de morada quando se ouviu um estrondo medonho na parede de estuque da cozinha. O velho dono do sítio arfava de cansaço quando lhe abriram um claro para que visse o tamanho do estrago que fizera aquela pedra: abriu um buraco na parede entrando cozinha adentro indo parar no meio dos destroços do fogão. Desanimado, seu Manoel pegou uma pomboca de querosene, olhou bem para a obra do filho e gritou: "Alcides, seu urubu, o que mais eu não sei de ti?"
E mais dele nada sabia. Sequer lhe suspeitava a vocação despertada durante aquela caçada. O rapaz foi para a Austrália, fundou a Alcides Excavation & Demolitions, ficou rico e de lá não sai tão cedo.
Um à-toa que nem o Alcides não se encontra por aí assim. Não que fosse mau, não era. Mas que era um safado aprontador, isso ele era. Durão, feito carapaça, mas tímido e introvertido que nem um tatu, quase sempre aproveitava as ocasiões para caprichar um desempenho fraudulento; mesmo que em cima do pai. O prazer de rir dos outros não lhe sobrepunha limites. Dizia que o mais difícil era fazer-se de insuspeito para ninguém dele desconfiar. Esse era o seu talento: manter-se oculto diante de todos; não se deixar revelar o próprio miolo.
Nos dias de hoje pode-se dizer que a caçada ao tatu seja algo abominável, pois já tipificado como crime inafiançável. Mas nem sempre foi assim. Alcides foi convidado para uma caçada no sítio do próprio pai, lá para os lados da Vargem do Bom Jesus. Homem da roça, seu Manoel Liporda sustentava o dito repetitivo de que nunca o veriam com os dois pés no chão, de tanto que trabalhava. Uma vez no ano ele reunia os amigos em noite de lua cheia para caçar o tatu. Parecia ter intimidade com o cascudo; que o criara no fundo do quintal até que o bicho topasse com a derradeira hora se ver caçado. Dava a impressão que fazia um bem danado ao bicho, que só comia insetos de tão inofensivo que era. Como os poderosos, xingava o tatu de ingrato quando o pobre esperneava para se safar do facão.
Alcides iria participar daquilo que valia como um rito de passagem para a condição de quase adulto; um moço. Mas o jovem fora criado na cidade, cheia que era de escaninhos zombeteiros. Era muito à-toa, o rapaz. Definitivamente não era ainda um homem, mas o pai apostava nele; perdia sempre, mas arriscava. "Por enquanto esse à-toa não vale um ovo, por Deus do céu. Não presta para serviço nenhum. Mas um dia ele endireita".
Chegou ao sítio uma semana antes da lua cheia marcada para o inocente folguedo. Os petrechos o velho já havia preparado: lanterna de querosene, bocó, vergas de bambu, cortadeiras, facão, cavadeiras, jabuticaba curtida e o cachorro Sabido. Chegada a noite, havia muita animação e uma tensão ancestral diante do ato de caçar. Tocaram mato adentro; Alcides na rabeira cantando Portãozinho e Porteirinha: "O tatu é bicho manso e nunca mordeu a ninguém. Só deu uma dentadinha na perninha do meu bem. Anda a roda tatu é teu; voltinha no meio tatu é meu." O pai do rapaz queria mais silêncio na veação.
— Isca, Sabido! Vai procurar, vai!
O bicho se mandou pela encosta de vegetação emaranhada. Morro acima e todos em silêncio a espera do cão, que não vinha; que nem latia. De repente o ganido conhecido do animal rasgou o silêncio e a correria na direção dos latidos através da capoeira grossa. Difícil, porque no escuro não se viam as pedras, os paus, os galhos, a lama e os formigueiros. "Perdeu-se o bicho" decretou o chefe da caçada. De repente Sabido saiu acoando seguido como a dizer: "ali está, por aqui, gente". Não fosse tão escuro, era de se dizer que o cachorro apontava a toca com a patinha abanando o rabo feliz.
Enquanto isso Alcides fuçava sozinho para outros lados. Foi aí que encheu o peito e gritou bem alto: "Peguei um". E baixinho com orgulho: "O pessoal não vai acreditar que achei um baita logo na primeira vez". Não era fácil conseguir um; quantas vezes o grupo voltava sem nada? E olha que era gente de sorte. A diminuir o desencanto, naquelas vezes em que nada trazia, Liporda desdenhava o insucesso dizendo que fora caçar só por farra. Mas Alcides bem sabia que o velho ficava desconsolado. Isso ele via quando lá um belo dia o grupo trazia um bicho. Então o velho fazia uma festa daquelas. Diante do buraco, Alcides preparou a verga de bambu para cutucar a toca; devia esperar o pai, mas não quis dividir a glória. O vasilha não conhecia nada de mato; fora criado na cidade, lugar onde só se via tatu nos livros. Cutucão daqui, cutucão dali, o bicho fugiu. Nisso ele viu a turma chegando para ajudar a desentocar o desdentado. Alcides agarrou uma cabeça de pedra e fez que rolasse morro abaixo fazendo grande estrondo. "Fugiu, fugiu", gritava fingindo desencanto. O pessoal saiu correndo atrás do barulho medonho; inclusive o cão, que se meteu na frente da pedra para barrar-lhe a fuga e dela tomou um solavanco resultando um vergão no lombo. O velho achou que o bicho fazia estrago demais na coivara; devia ser mais que um porco-do-mato ou mesmo um terneiro assustado. Vieram descendo na pilha do barulho, mas já viam também o rastro deixado para trás na roça de cana. "É coisa grande, minha gente", alertava Liporda já temeroso: "Deus que me perdoe, mas parece um boi-tatá". Quanto mais descia a pedra ganhava mais velocidade. Estavam chegando de volta à casa de morada quando se ouviu um estrondo medonho na parede de estuque da cozinha. O velho dono do sítio arfava de cansaço quando lhe abriram um claro para que visse o tamanho do estrago que fizera aquela pedra: abriu um buraco na parede entrando cozinha adentro indo parar no meio dos destroços do fogão. Desanimado, seu Manoel pegou uma pomboca de querosene, olhou bem para a obra do filho e gritou: "Alcides, seu urubu, o que mais eu não sei de ti?"
E mais dele nada sabia. Sequer lhe suspeitava a vocação despertada durante aquela caçada. O rapaz foi para a Austrália, fundou a Alcides Excavation & Demolitions, ficou rico e de lá não sai tão cedo.