terça-feira, 26 de agosto de 2008

ADIANTA SE ESCONDER?

Humberto Ilha

Quem há de saber rezar para evitar a morte; para se proteger? A palavra morte causa espanto nas pessoas. Ao se pronunciar a dita cuja já se escuta: ”cruz credo!” ou “deus me livre!”. Para descarrego do medo, nada como desafiar a safada; falar da atrevida sem temor. Era assim, o Juci. Um mulato cheio de catequese que pouco acreditava nas velas que fazia arder enquanto rezava jaculatórias decoradas. Acendia o lumaréu por ordinária tradição. Dizia não temer a morte, mas de ninguém escondia sentir enorme tristeza quando nela pensava.
— A saudade, ensinava, mora na morte. Morrer é nada, em relação a viver, que é tão bom.
Era bíblico, para ele, haver tempo de viver e de morrer. Vida e morte eram companheiras na jornada de cada pessoa. Mas também, melhor morrer a viver cheio de tubos, cadeiras especiais, cama alta para facilitar o acesso, dores, ziguezague nos vídeos dos aparelhos, mangueiras, agulhadas, cânulas, escalpes, lancetas, lâminas, cubas, remédios, sedação e outros recursos para prolongar o que devia se acabar com dignidade.


Bom marido, dedicado pai e fiel tesoureiro do apostolado, sabia do risco a que estava sujeito ao empreender a temível travessia por essa vida diante das forças do bem e do mal. Fazia parte de um grupo que estava amargando mês insólito, dois membros já haviam esticado o pernil. A média era de um por ano. Juci estava triste ao mesmo tempo em que ironizava a perda dos colegas. Recomendava requinte nas orações, estava morrendo gente demais. Usava o termo morrer, tão sinistro, mas reprimia a vontade de fazer gracejo. Se fosse de sua escolha usaria termos como “deletar”, “queimar a bateria” ou “sentar no colo do capeta”. Não era chegado em desenhar a morte como horror natural na vida de cada um. Mas também não usava remedinhos para adocicar as desesperanças alheias. De verdade, Juci temia morrer. Sabia que, mais dia menos dia, isso iria acontecer. Mas ansiava bater a caçoleta sorrindo, rodeado de prantos sinceros dos que, por derradeiro, lhe fechassem a tampa da caixa.


Definitivamente havia algo de mau agouro no ar. A irmandade havia comprado duas coroas fúnebres que fez a conta bancária ficar no vermelho. Mesmo assim, todos se divertiam diante do melancólico atrevimento contido nas palavras daquele mulato de boca grande e olhos revirados enquanto falava. Ou melhor, interpretava. Cada opinião, conceito ou juízo que se metesse a fazer diante dos amigos era uma encenação teatral irretocável. Em casa era diferente. A esposa não gostava nada e os filhos odiavam a aptidão natural do pai. Ivonete, amiga e presidenta da congregação, não deixava escapulir oportunidade de espetá-lo:
— Juci, cuida de ficar vivo. O próximo a bater a alcatra não vai ganhar coroa. Não há mais gaita.
Gargalhada geral. Quem há de apostar numa intuição sutil como a de Ivonete? Quem há de suspeitar que a própria mortalha já esteja pronta? Quem há de rogar com proveito para evitar morrer? Ivonete dizia que suas orações eram infalíveis. Mas confessava não saber rezar para si própria.


Naquele domingo o grupo participava de retiro espiritual. O momento era de oração e preceito religioso, mas Juci não agüentava a vontade, quase fisiológica, de fazer gracejo. Ao final da palestra do Padre Aloísio, Juci estava no meio de um grupo conversando quando Ivonete apareceu no corredor tocando uma sineta, anunciando que era hora de oração. Ele reagiu:
— Pessoal, da próxima vez não mais convidamos essa mulher. Vive badalando aquela sineta da reza o tempo todo. Que que há? Ninguém merece... Ela só quer rezar... Rezar... Não pensa em se divertir... Nunca anuncia o recreio... Deus não quer isso para nós... Ivonete não vem mais conosco, gente...
A mulher entrou na caçoada e prometeu rezar por Juci. Aí ele se superou na troça. Ajoelhou-se em súplica pedindo que não o fizesse, pois mais iria atrapalhá-lo que socorrê-lo. Ela ainda resmungou:
— Cretino de uma figa, vou nomear você ministro do mau agouro na diocese.
O grupo todo começava a rir quando ela passava com o sininho na mão como se fora um inspetor de alunos. Ainda fazia uns contrapassos solenes para depois se perder nos corredores do convento rebolando as avantajadas cadeiras.


Acabado o retiro, Juci foi para casa do irmão. Ia levá-lo ao aeroporto. Mas sentiu-se mal e foi levado às pressas ao pronto-socorro. No trajeto, olhos arregalados de surpresa, Juci parecia ver o rosto pesaroso de Ivonete, empenhada numa sincera oração para o amigo não arribar em definitivo desta vida. Mas não era a amiga não. Era o médico lutando para se agarrar no fiapo de vida restante do homem que não queria morrer. Não naquele momento. Nunca houvera passado por uma situação de quase morte. Sentiu o perigo e desejou que aquela circunstância fosse-lhe a penúltima. Mas percebeu que estava indo embora. Veio-lhe a reminiscência da imagem da Virgem de Michelangelo, com Jesus morto em seus braços. No aconchego daquela mãe, morrer era nada. Então, sentindo estranho conforto, decidiu entregar os pontos. Chegou morto no hospital, sem tempo para as despedidas protocolares.


Tristeza geral no velório. A irmandade compareceu para sepultar o fiel tesoureiro. De repente chegou um carro preto com vistosa coroa de flores. Por certo a mais cara que havia na loja. Espetado num cavalete envernizado, o adorno fúnebre estava repleto de brilhos e fitas de plástico com mensagens de condolências. Quem trazia a homenagem póstuma era Ivonete, de luto fechado e soluçando de remorso. Inconformada, deixava à mostra o profundo pesar de não haver caprichado o suficiente nas orações em favor de Juci. Olhando para o corpo do amigo esticado no caixão compreendeu que em vida ele esperou a sorrateira de pé e não de joelhos não. Tão ousado fora que Ivonete esboçou um sorriso. Juci, sem sinal de pânico e quase sorrindo, fez que a própria morte se pusesse de luto.

Um comentário:

Anônimo disse...

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