quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CLIENTE LEVA BRONZE

Humberto Ilha

Toda semana ele enfrentava aquela aporrinhação dos caixas eletrônicos. A tecnologia da informação viera para atrapalhar os que foram pegos de surpresa; como os da terceira idade. Claudionor era dos que não se davam com a parafernália de cartões magnéticos, senhas alfanuméricas, portas giratórias de segurança, casamatas blindadas, guardas armados, câmaras de vídeo, alarmes. Recente no bloco dos idosos, desejava usufruir regalia dos de sua categoria: usar um caixa preferencial. Não estava disposto a abrir mão desse direito há pouco reconhecido. Queria ser atendido com requinte nem que fosse uma só vez. Foi ao banco e não gostou do que viu lá dentro. Imaginava receber um pouco mais de consideração. Aquele aviso indicando o caixa destinado a atender idosos era perverso. Primeira vez que se permitira a ele recorrer achava aquilo uma carta de exclusão. Mesma coisa que tocar uma sirene obsequiosa para todo mundo ficar sabendo que ali estava um velho. Remascava que o atendimento merecia mais recato. Diabos, se um idoso, uma gestante ou um deficiente físico precisasse de atenção especial era só pedir que o banco saberia atender. Reinava em todo lugar, de uma hora para outra, uma mesura nervosa em favor do senil, mas parece que não sabiam atendê-lo. Havia supermercado que oferecia café da manhã. Prefeituras que garantiam gratuidade no transporte. Até as primas faziam promoção no cachê para os mais travessos. Outro dia a televisão mostrou uma dona Rosinha de setenta e três anos fazendo ponto numa esquina de São Paulo dando atendimento preferencial de geriatria.

Aproximando-se do caixa a ele destinado, Claudionor ia esboçar um sorriso de boa-tarde quando uma jovem senhora lhe tomou a frente. Ignorando-o, ela furou-lhe a vez toda sorridente e com a bolsa aberta cheia de maços de dinheiro para depositar. Era tanto dinheiro que fora levado para a máquina eletrônica de contar. Flip-flip-flip; nunca tinha visto tanta grana junta, nem mulher tão linda. Ele era um bugre criado mato-a-dentro lá pelas barrancas do Uruguai. Um xokleng simbólico: baixo, moreno, quase um bronze, sem um fio de grisalho na cabeça; braços e pernas fortes. Havia de relatar em casa o que estava presenciando. Mesmo sentindo-se transparente tragava prazer enorme e não perdia um movimento da gorducha mulher. Que visão do céu. Por ele não saía mais dali; e não saiu mesmo. Disse para si que ninguém o tiraria dali por nada. Se necessário esperaria o resto do dia. A senhora passava maços e maços de dinheiro ao caixa. A sacola parecia não ter fundo, de tanto dinheiro que havia ali dentro. Entretanto, dava a impressão de querer desvencilhar-se logo da grana como que a transferir de uma vez ao banco a responsabilidade pela guarda daquele pequeno tesouro. Queria logo o recibo, a prova do depósito. E Claudionor: "Ao invés de abraçar e beijar aquele dinheiro todo, ela quer se ver livre dele". Ali, de pé atrás da mulher, podia sentir o perfume cítrico que ela usava. "Uma delícia! Devia custar mais que o rancho mensal". Ainda ali, de pé atrás da mulher, se encantou com o longo sobretudo vermelho que lhe cobria o corpo. O aroma vinha daquele casaco que se mexeu com a mulher dentro para chamar o marido.
— Nego, chega aqui.
Claudionor pode então ver como era linda. Era muita merenda para o recreio do Nego, que era um dragão de feio. Depois de cochichar algo no ouvido dele, o homem encostou-se nela colocando-lhe as mãos na cintura. Isso fez de modo acintoso e olhando nos olhos de Claudionor, dando-lhe ainda vigorosa cotovelada nas costelas. O índio achou haver sido sem querer. Então, o amargoso se mexeu novamente e deu-lhe outro cotovelão para o coitado resmungar algo como “putz”. Agora estava passando da conta. O prosa virou-se para trás e perguntou se o outro não estava desconfiando de nada.
— ???
— Afaste-se de minha esposa. Você está invadindo a privacidade dela. Seu lugar é para além da faixa amarela; e não colado na patroa.
Claudionor percebeu o vacilo; tinha razão, o infame. Desacostumado com a novidade nos bancos, nem percebera que estava invadindo o ninho daquela cobra. Mesmo assim deixou claro ao homem que não gostara do tom da voz dele, para em seguida ouvir:
— Será que eu vou ter que me incomodar com você?
Claudionor já estava tomando o caminho do seu modesto lugar, atrás daquela faixa amarela colada no piso da sala. Faixa Amarela... Algo ameaçador estrondeou dentro da cabeça dele. Lembrou que era ele um faixa-preta. Fora admoestado pelo salgado diante de pessoas e não gostara. O comportamento impróprio do homem deixou-o furioso, mas conseguiu abafar-se. Entretanto, dissera ao outro para se cuidar porque na próxima ele o faria engolir os insultos. Claudionor bem sabia que acabara de proferir uma ofensa maior do que a que havia escutado. O trouxa mordeu a isca e falou esbravejando desgovernadamente:
— Vai querer me encarar?
O bugre conteve-se mais um pouco. Era necessário provocar mais raiva no outro até sobrevir o ponto ideal de enfrentá-lo. Até que ficasse totalmente sem controle emocional. Antegozando um ódio desmedido e represado retrucou na debocheira:
— Posso encarar você, mas não vale me chifrar.

Xingar alguém de corno era uma de suas melhores provocações. De sua boca não saiam palavras afetuosas quando o sangue lhe subia. O valentão arremeteu com tudo para cima de Claudionor, mas girou como só um bailarino gira, terminando aterrissado junto ao bebedouro. Que lambança; a bombona explodiu no chão como um torpedo, encharcando tudo. O segurança tentou imobilizá-lo, mas o bugre fê-lo soltar um grito horrível. De não acreditar, mas Claudionor neutralizou-o fazendo forte pressão num dos dedos dobrados da mão do guarda. Como fazia muita choradeira, o bugre desvencilhou-se dele com grande estrondo; também ele beijou a lona. E no chão dormiu de ladinho perto de uma dentadura quebrada que não se sabe de onde veio. Agora ia juntar o confiado para completar o trabalho. Mas a cúmplice mulher subitamente avançou contra ele, como se tivesse sido atingida por uma espetada no popô. Nem deu tempo para desconsiderar a ameaça. A água espalhada fez que patinasse como se patina pela primeira vez: numa coreografia desengonçada com os braços abertos e os olhos arregalados de pânico. Todo o corpo atraente dela deslizou até amontoar-se sobre um vaso ornamental. Funcionários juntaram-na e ao marido e levaram os dois lá para dentro. Claudionor estava branco e alerta. Eram mesmo de bronze seus braços e pernas de tanto estrago que faziam. Sabia que o pior estava a caminho. Como a se defender, falou aos que viram o bafafá que fora um erro o homem tê-lo desafiado daquele jeito. “Meter-se comigo é caixão. Afinal, eu pratico artes marciais”, falou bancando o campeão de si mesmo. E era verdade, mas seu maior talento era a rapidez de raciocínio aliada à grande mobilidade diante de situações desse tipo. Sobrevinha-lhe ainda saber combinar rapidez com potência de golpes certeiros. Era um ninja, desses que a gente vê na televisão. Durante todo o entrevero não emitia palavra, mas nada lhe escapava à atenção. Nem o guardinha dormindo no chão, nem as câmaras de vídeo que tudo registravam.

Como parte da rotina de segurança os funcionários chamaram a polícia, que cercou a agência com grande aparato de resposta tática, preparada que veio para enfrentar assaltantes, seqüestradores, terroristas ou sabe-se lá o que mais. O oficial que tudo aquilo comandava não imaginara que fora acionado para acabar com um bate-boca. Sirenas, faróis acesos, pisca-pisca, bombeiros, coletes de segurança, escudos blindados, armamento pesado e muita tropa entrincheirada por detrás dos carros tipo caveirões. Aquele monumento de bronze feito homem olhou para fora e balanceou a situação: “tô ferrado”. Fitou as pessoas no interior do banco, quase que a pedir ajuda. Mas ninguém parecia lhe dispensar benevolência. Sequer chegavam perto dele. Decidiu então encarar sozinho o caso, como sempre fizera na vida.
Um megafone saiu por trás de uma viatura camuflada, e dele vinha a ordem para que todos se atirassem ao chão. Foi pra já! Todos se deitaram, inclusive Claudionor, que se deitou ao lado do segurança que dormia de ladinho. Os policiais entraram e não encontraram a oposição que esperavam. Sequer sabiam a quem prender. Mas um comandante de polícia tem lá suas manhas. Com pausada voz de comando determinou que somente os funcionários do banco se levantassem. Ainda assim, verificou que havia muita gente pelo chão. A seguir autorizou que o segurança também se erguesse. No chão, só os clientes. E entre eles, por certo, os autores de toda aquela encrenca. Separando o joio do trigo ficaria mais fácil prender os bandidos.

Mas, e Claudionor? Fez-se oculto ali mesmo. A polícia não sabia onde ele estava, muito embora parecesse que havia sido indultado pelos que tinham visto o seu desempenho em defesa da honra ultrajada; atuação que todos viram mas não entenderam, tamanha a rapidez e precisão de movimentos daquele herói solitário. Nosso Senhor depois de ressuscitar no terceiro dia foi mais demorado para se esconder nas nuvens, de acordo com o que nos contaram na catequese. Com tudo que O qualificava demorou muito mais tempo que o bugre para fazer-se oculto. E agora nem bem deitou ao lado do guardinha esse velhaco desaparece diante dos olhos de todo mundo para ressurgir fardado ninguém sabe como. Sobrou à polícia apenas prender o casal de lambanceiros. Queria o depoimento deles para o competente inquérito. Por muito pouco não levou uma vaia.
Enquanto tudo isso se passava, o segurança falava ao rádio em voz alta com alguém a respeito da briga que havia presenciado no interior da agência bancária. Ao tempo em que parecia relatar tudo com detalhes ganhava a rua movimentada. E assim caminhou até o ponto de ônibus para sumir da vista da polícia. Entrando em casa, de uniforme, a mulher estranhou e perguntou se ele havia arranjado emprego de guarda. Fez que não com a cabeça.

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