sexta-feira, 1 de maio de 2009

PARA SER ALGO QUE PRESTE

Humberto Ilha
Antônio ficava surpreso quando percebia o entusiasmo na voz do senhor Arno ao se referir à própria esposa. Olhava-o com respeito e, mesmo sem conhecê-la, era capaz de jurar que a alma da senhora Hertha alimentava-se de algo invisível, mas intuído como sublime e superior. Quase adivinhava as atitudes nobres que lhe norteavam a convivência com as pessoas. O marido afirmava ser ela uma pessoa metódica, de tocar violino diariamente. Entretanto, há um bom tempo vinha sentindo que o instrumento estava diferente. Tratava-se de um Guarnieri del Gesù que lho doara o pai há mais de oitenta e dois anos.
— Senhor Antônio, minha esposa achou por bem trocar as cordas deste violino porque estão produzindo leve desafinação. Pede ainda que as troque por cordas de titânio, que são mais próprias.

O luthier examinou o instrumento e percebeu que as cordas estavam em bom estado, pedindo que o homem viesse buscá-lo depois de amanhã. Deduziu que a senhora estava ficando sem força nos dedos já cansados para pressionar as cordas. Ao invés de trocá-las apenas desbastou um pouco a base do ponticello, onde a cordoalha se apoiava. Fez uma marca secreta para identificação futura, experimentou e colocou-o de volta na caixa; som perfeito.

No depois de amanhã marcado o homem foi buscar o violino. Conversando, o artesão ficou sabendo que o freguês lutara na Divisão Blindada de Rommel e que disso se orgulhava. Antônio mencionou um cliente que também lutara na mesma unidade: um tal Zé Kist; Zehb Kist, corrigiu o ancião. “Mora aqui, mas faz anos que não o vejo”. Como era perto do meio dia pediu licença para ir embora.
— Quanto lhe devo pelo serviço, senhor Antônio?
— Não vou fazer preço, pois nem troquei as cordas. Somente abaixei um pouquinho o cavalete para que sua esposa toque com menos esforço.
Então o homem gratificou-o com uma nota de cinqüenta.
— Muito obrigado, Senhor Antônio; o senhor é um homem honesto.
— Honestidade é obrigação, seu Krueger.

Passado um tempo, o alemão voltou com outro incomum Guarnieri para dar jeito na afinação.
— Senhor Antônio, minha esposa desconfia que este também tenha o mesmo problema daquele outro. O senhor pode verificar isso?

Pedindo-lhe que voltasse depois de amanhã, o artesão procedeu da mesma forma e nada quis cobrar, quando solicitado a fazer preço no trabalho realizado. O que recebera da primeira vez estava bem pago. Mas o homem gratificou-o com outra nota de cinqüenta.

Depois de quase um ano o alemão voltou com um dos violinos da esposa. Toninho percebeu ser o da marca feita no cavalete. Mas com um travo de desconfiança notou o homem esmaecido, triste, barbado, magro e com o colarinho puído e sujo por dentro.
— Bom dia seu Krueger, o que houve com o senhor? Nunca mais apareceu...
— Senhor Antônio, minha amada esposa faleceu.
— Oh, meu amigo... Que coisa triste...
— Ela fez a viagem e me deixou — disse com um fio de voz —. Este era o violino dela, que também pertenceu ao pai e ao avô. É um instrumento especial, pois somente uma vez no mês ela o usava para executar uma peça em louvor a Deus Todo Poderoso. É um costume ancestral que me fez prometer continuar. Contudo, não conheço quem mereça possuí-lo. Como o senhor conhece muitos violinistas e demonstrou ser um homem honesto, venho lhe pedir o favor de doá-lo a alguém que assuma o compromisso de minha amada esposa.
— Ora senhor Krueger, como farei para ajudá-lo? Não tenho idéia de quem possa ser digno de possuir um instrumento tão raro e valioso como este e ainda cumprir a tradição de sua família — disse, querendo se livrar do encargo.
— Vou deixá-lo com o senhor, pois tenho pouco tempo de vida.
— Por que diz isso? Está doente?
— Com noventa e dois anos tenho alguma saúde, mas estou deprimido e não quero mais viver sem minha amada companheira. Estou deixando de me alimentar e somente tomando água. Dessa forma aos poucos irei morrendo.

O artesão pensou ligeiro e telefonou para alguém que certamente iria encaminhar o instrumento para boas mãos: o amigo Zehb Kist, que não poderia ir naquele momento porque estava sem alguém para levá-lo. Antônio insistiu, explicando a gravidade da situação do outro. Isso fez que viesse imediatamente num táxi. Quando o outro alemão entrou viu o desanimado viúvo sentado numa cadeira de vime com a cabeça enterrada nos ombros. Antes de se falarem ambos assumiram algo parecido como uma posição militar. O que chegara saudou primeiro.
— Heil! Zehb Kist, Divisão Panzer, Tobruk.
— Heil! Arno Krueger, Divisão Panzer, Argel.
Como se houvessem combinado, Zehb Kist começou a declamar:
— Einigkeit und Recht und Freiheit Für das deutsche Vaterland!
[1]
Sorrindo, o desamparado responde:
— Danach lasst uns alle streben. Brüderlich mit Herz und Hand!
[2]
Zehb Kist insiste declamando:
— Einigkeit und Recht und Freiheit / Sind des Glückes Unterpfand.
[3]
E finalizando, os dois:
—Blüh’im Glanze dieses Glückes, Blühe, deutsches Vaterland / Blüh'im Glanze dieses Glückes, Blühe, deutsches Vaterland.
[4]

Ambos se abraçaram emocionados e iniciaram longo diálogo em alemão. O viúvo foi se acalmando e ganhando brilho na alma. Zeb comprometeu-se a encaminhar o violino para uma pessoa conhecida que daria conta da promessa. Depois chamou um táxi para o irmão de armas.

Antônio quis então saber a respeito do outro; como ficaria, já que decidira não mais viver.
— Fique descansado, homem. Ele garantiu não mais seguir em seu intento. Prometi visitá-lo toda semana.
— Fico feliz com isso, mas o que vocês conversaram logo depois que se apresentaram?
— Na guerra era costume um elevar o moral do outro recitando mutuamente os versos do hino nacional. Com isso ficávamos cheios de esperança e vida para prosseguir na luta. Assim é também na vida, somente seremos algo que preste se vivermos como irmãos.

[1] Unidade e justiça e liberdade para a pátria alemã!
[2] Por tudo isso lutemos irmanados de corações e mãos!
[3] Unidade e justiça e liberdade são a garantia de felicidade.
[4] Floresça esta bênção de felicidade, floresça, ó pátria alemã. / Floresça esta bênção de felicidade, floresça, ó pátria alemã.

3 comentários:

Anônimo disse...

oi

Humberto Ilha disse...

Oi, Anônimo, que é vocÊ? Seja bem vindo. Abraço do Humberto Ilha.

Regina Carvalho disse...

Linda história, Humberto!
gostei demais.
bj