sexta-feira, 11 de julho de 2008

HOMEM AO MAR


Humberto Ilha

A aquisição de uma lancha, qualquer lancha, era meu sonho de infância jamais adormecido. Havia uns três meses que eu a comprara, mas não conseguia navegar porque sempre faltava alguma coisa para arrumar. O antigo dono deixou tudo por fazer até que ficou inviável lançá-la na água. Então preferiu vendê-la para estancar a despesa e também para não mais discutir com a esposa, que dizia ser a embarcação uma outra família que o marido tinha. De fato era mais que isso. Era um saco sem fundo de tanto dinheiro que consumia em detrimento da casa. Todo mês tinha uma coisa quebrada ou um reparo a fazer nela. Agora na minha mão, uma hora era o equipamento de salvatagem que não era reconhecido pela Marinha. Outra eram os documentos que precisavam de atualização. Outra ainda era a necessidade de revisar o motor de duzentos e vinte cavalos, sem contar com o pagamento da apólice de seguro vencido há três anos. O pessoal dizia que aquilo era excesso de preciosismo. Mas sempre gostei de andar dentro dos ditames da lei. Comprei até um aparelho de posicionamento global por satélite. Além disso, adquiri um rádio para operar com freqüência de VHF, pistolas de sinalização, coletes salva-vidas e rádio com CD player. Pois foi assim que minha lancha e eu passamos o verão: no hangar do clube trabalhando. No início do outono meu irmão decretou uma data fatal da lancha ir para água de qualquer jeito. Convidamos mais um amigo, um advogado que chamávamos de doutor, e demos o dia como certo e nas condições em que o tempo se encontrasse. Fazer o quê, se eu não estava sendo capaz de decidir a data esperada, então alguém haveria de fazer isso. Hoje eu vejo que, se dependesse de mim, ainda estaria consertando aqui e ali.
Finalmente chegou o grande dia. Era um sábado de cartão postal. Chegamos os três no Iate Clube para a nossa planejada aventura pelas águas mansas das duas baías que encantavam a cidade de Florianópolis. Não conseguia esconder o nervosismo e a alegria diante do passeio náutico. Levamos de tudo, porque a jornada prometia. Suco de laranja, maçãs, peras, biscoitos, sanduíches, bananas, refrigerantes e uma enorme caixa de isopor cheia de latinhas de cerveja.
Os marinheiros do clube colocaram a embarcação na água e os três pulamos a bordo. Num momento de intensa felicidade abrimos três latinhas para o brinde, como era o nosso costume. Depois disso arvorei a bandeira do Brasil no mastro de popa para sairmos na direção norte, direto para desfilar ao longo da Avenida Beira Mar. Eram quatro quilômetros de glória diante de parentes e amigos que moravam ali. A exibição também queria alcançar os que nos conheciam e que estavam fazendo a caminhada diária ao longo da charmosa via.
Olhávamos um para o outro e sorríamos de satisfação. Nessa época eu usava um bigode tradicionalista, bem ao gosto dos que viviam no alto da serra de onde nós três tínhamos vindo. Os três usávamos óculos de sol. O meu era um modelo Fitipaldi, que me deixava com cara de mafioso italiano. Eu nem ligava, depois de três latinhas eu era mais eu e me garantia. Meu boné de capitão ajudava a acentuar a autoridade que me vinha por estar pilotando uma embarcação reconhecida pela Marinha. Enquanto eu pilotava a lancha, o doutor e o Chico tomavam sol e cerveja na poltrona de vante. Na preguiça apreciavam cada movimento em terra. Se meu pai visse o quadro daria três seqüências de assovio e abanava os braços em saudação. Ah, meu velho pai e amigo. Deputado por duas legislaturas testemunhou dois automóveis serem destruídos por mim em momento de grande inspiração na minha adolescência. E ele que resmungasse alguma coisa. Eu o entregaria para a mamãe e o casamento dos dois já era.
Eu era um capitão amador habilitado pela Capitania dos Portos. A rigor pouco sabia na prática. Havia feito uma prova teórica e lograra êxito teórico. Era assim no Brasil, fazia-se uma prova escrita e recebia-se uma licença também escrita, para o bem e para o mal. Na época em que fizera o mestrado em Análises Clínicas na Inglaterra me contaram não existir lá a tal licença. Qualquer um podia navegar a embarcação que desejasse. Mas ai do infeliz que cometesse um só ato de imperícia náutica. Um processo de responsabilidade civil era imediatamente aberto pelo Tribunal Marítimo de Sua Majestade. A habilitação lá era prática e não teórica. No Brasil minha licença era um prato cheio para qualquer advogado transformar em primeira defesa, se envolvido estivesse eu num sinistro marítimo. Mas isso não me tirava o sono, eu queria era navegar.
Sentia meus cabelos ao vento como jamais sentira desde adolescente nas corridas de cancha reta no lombo do alazão de propriedade do papai. Ficamos dando voltas na Beira Mar durante uma hora quando Chico sugeriu tomarmos o rumo norte-sul na direção do Praia Clube lá para o lado de Coqueiros, perto da casa do governador. Fiz uma manobra de largo alcance e tomei a proa norte-sul. O mar calmo permitia uma velocidade de trinta nós para o nosso conforto. Como era bom apreciar a orla marítima do continente, com vista do mar para a terra. Tudo era muito novo para nós três.
Ao cabo de poucos minutos encostamos a lancha na praia. Tínhamos um estoque grande de cerveja na geladeira. Mas decidimos fazer bonito e ir beber no deck do Clube. Certamente pagamos o dobro. Mas o Chico disse: “isso não tem preço”. Então, que venham mais latinhas. Ali ficamos bebendo e apreciando a lancha, que estava sendo admirada pelos que passavam. As moças ficavam encantadas e nos convidavam para passear. Mas nossa convicção a esse respeito era celibatária. Não abríamos mão desse preceito nem com dez latinhas na caveira. Os três éramos casados. As pessoas chegavam a parar para bem admirarem aquele tipo de embarcação de raras paragens por ali. Tudo nela era glamuroso. Tinha escotilhas douradas, cortinas e até tapete desejando boas vindas a quem subisse a bordo. Eu quase chorava de emoção. Enfim meu dia sonhado chegara. Eu era um capitão de respeito. Bem, pelo menos era assim que eu me sentia. O doutor dizia que não entendia nada de navegação e que estava em minhas mãos. O Chico dizia o mesmo ao confessar que nem nadar sabia. Como era bom ouvir pessoas dizerem isso para mim. Mesmo que fossem aqueles dois velhacos. De fato eu era um piloto responsável. Contudo até a terceira latinha. Daí em diante os amigos diziam que eu apagava, para virar um louco-manso. Eu não podia passar daquelas três malditas latas, pois o álcool interagia com minha medicação anti-pressórica. Certa vez, na Lagoa da Conceição, com a turma, fui levantar da mesa e tropecei em mim mesmo. Nem eu sei como consegui tal proeza. Girei, cai e bati com a cabeça numa porta de vidro para ficar desacordado durante quatro horas. Eu era um perigo para mim mesmo, depois da terceira lata. E àquela altura eu já passava da oitava. Daí para frente nossa conversa se resumia muito mais a risadas do que a palavras. Ríamos de tudo e por nada ríamos. Sabe aquele jeito engraçado de rir apontando para a cara do outro? Estávamos os três desse jeito.
— Chico, disse eu, paga a conta aí que vamos navegar.
— Por que eu?
— Porque você é o melhor Chico que temos por perto, respondi com ar de deboche.
— Cachorro, nem adianta vir com palavras bonitas que eu não vou te beijar.
— Rápido no gatilho, hein? Então é na ironia?
— É, sim, respondeu meu irmão.
— Bem, se é assim eu vou acertar com o garçom. Mas você me paga, cão infiel, disse-lhe já puxando o dinheiro do bolso da bermuda. Fingindo-se de morto, o doutor cantarolava um xote conhecido. Declarava-se em desconforto quando a encrenca era em família. Já administrava conflitos familiares além da conta no escritório de segunda à sexta. Mas todos sabíamos que assumia aquele comportamento tangentóide somente para não se envolver com a despesa.
E lá fomos nós de volta à baía norte. O bom era andar de lá para cá e de cá pra lá, acompanhando o contorno da via mais badalada da capital. Em marcha lenta então, era demais. Percebi que o doutor e o Chico se haviam passado da conta porquanto não paravam mais de rir. Minhas suspeitas se confirmaram quando, como se num gesto ensaiado, ambos atiraram duas latas de cerveja vazias ao mar. Cruz credo, ali diante de todo o mundo vip era um ato criminoso. Alertei os dois sobre a agressão ambiental, mas eles só riam e riam. Um desastre ambiental estava acontecendo no mar da Praia de Fora. Pior é que era bem diante do obelisco em honra ao mártir Francisco Dias Velho, o fundador da freguesia de Nossa Senhora do Desterro, cujo nome não resistiu ao desejo de alguém bajular um líder de coturno alto feito Presidente da República e que atendia pelo nome de Floriano.
Preservação da natureza havia sido um tema bem enfocado pelo Oficial da Marinha quando dele recebi minha carta de capitão. Esse fato me causou bastante surpresa porque não imaginava que a Armada Brasileira fazia esse trabalho de conscientização. E já estava surtindo seus efeitos porque fiquei ansioso para que ninguém houvesse notado a transgressão dos dois. Contudo, aquele foi um ato muito ostensivo. Os dois mamavam direto e pediam mais velocidade. Alguém ali tinha que manter o controle da situação. No caso seria eu, o capitão, já completamente embriagado. Subitamente veio-me a vontade recorrente de dar cavalos-de-pau com a lancha. O espetáculo juntou muita gente na borda da avenida. Chico e o doutor já nem bebiam mais, eis que mal conseguiam manterem-se na poltrona para não serem lançados para fora da lancha. Eu só escutava os dois gritarem: toca o pau, marujo!
O barulho era medonho quando esgarçava toda a potência do motor em manobras radicais. Então aconteceu o que a torcida mais queria. A lancha subiu num banco de areia e parou instantaneamente. Meu irmão e o velho doutor foram jogados na água e eu fui parar na proa com a cabeça dentro da geladeira de isopor toda destruída. Quase desmaiando escutei meu irmão gritar por socorro. Era a voz desesperada do sangue a me chamar. Lancei uma âncora ao mar, disparei um foguete de sinalização e, num esforço somente visto no espírito de um lobo do mar, atirei-me na água para salvá-lo. Entretanto, não sem antes bradar o regulamentar: homem ao mar! E olha que caprichei na voz grave e pausada, conforme determina o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar. A água fria despertou-me e com poucas braçadas o alcancei. Fiz a abordagem padrão dos salva-vidas, isto é, por trás da vítima. E comecei a puxá-lo para perto da lancha. Então vi o povo dando gargalhadas e apontando para nós três, novéis náufragos nos mares da Praia de Fora. Somente fui entender o motivo da gozação geral quando vi que o doutor estava de pé diante de nós e nos mandava parar de nadar que a água estava pelo umbigo. Foi a maior desonra naval de um capitão de brinquedo.

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