segunda-feira, 21 de julho de 2008

DE CARA COM O SONHO E DE FRENTE PARA A VIDA


Humberto Ilha

Ao tempo em que sonhava ser amado por uma mulher já feita, eu tinha quatorze anos. Um dia contei para uma amiga mais velha que estava amando alguém que sequer conhecia. Que amava alguém como num sonho. Tempos depois Antônia veio com a notícia de que sabia quem era a mulher que ocupava minha cabeça. Era Laura, que também sonhava com um menino imaginário bem do meu jeito. Uma explosão de alegria aconteceu no meu coração. A amiga estabeleceu que Laura e eu primeiramente nos corresponderíamos através de cartas. Houve um período de um ano com cartas indo e vindo toda semana. Ao cabo desse tempo havia verdadeiro amor entre nós. Antônia confirmara que eu era loiro, magro, olhos azuis, sorriso fácil, bonito e ainda por cima ajudava nas tarefas de casa. Laura era morena, olhos negros, mãos cuidadas, doze anos, sabia governar a casa e tinha o enxoval de casamento pronto. Eu tão menino, ela tão mulher. Essa magia era o encanto da minha paixão pela moça. Os pais da menina ansiavam conhecer-me. Os meus pais achavam aquilo uma brincadeira. Mamãe mandava-me pegar os livros e estudar. Meu pai olhava-me atravessado e não dizia nada. É que na cidade eu era uma criança. Na roça Laura já nascera pronta para a vida. Conhecia os segredos das rendas, bordava o crivo de bastidor, ensinava as primeiras letras e dava catequese às crianças, escrevia cartas com caneta tinteiro para os adultos e atendia o balcão do armazém do pai. Tudo isso era garantia de algum dinheiro para comprar suas coisas.
Um dia, já passado ano e meio, a amiga apareceu-me com uma foto de Laura. Era tudo o que eu queria. Mas a mulher somente entregaria a fotografia se eu também entregasse uma para a moça. “É prá já”, pensei. Arranquei aquela da identidade escolar e a entreguei para Antônia que me passou a de Laura. Segurando a foto com as duas mãos não acreditei no que vira. Era o retrato sorridente de uma menina negra. Senti vontade de chorar, de berrar, de me esganar todo. Não me considerava preconceituoso, mas agora estava diante de mim, um indigente racista. Sobrou-me covardia para não prosseguir amando Laura. Amontoei-me como um couro num canto do quarto e só queria sentir dó de mim mesmo. Mamãe achou melhor assim e papai ficou muito triste com o meu drama. Ambos disseram-me que a cor de uma pessoa não deveria ser impedimento para amá-la. Mas achavam-me jovem demais para me envolver com gente da roça.
Três meses depois Antônia procurou-me e propôs um encontro entre Laura e eu. Sábia mulher, porque se fora naquela semana da revelação a resposta teria sido um rancoroso “não”. Eu estava amedrontado com aquele episódio e pedi um tempo. Conversei abertamente com meus pais. Ambos acharam que eu deveria conhecer a menina e encarar a situação.
O encontro aconteceu em cinco semanas. Fui direto para a casa dos pais de Antônia, tomei um banho demorado e vesti minha mais nova roupa. Dali fomos para a casa da moça. À medida que íamos passando na estrada os moradores se aproximavam para conhecer-me e acompanhar-me. Então percebi que eu era quase uma lenda naquele lugar. Diziam de mim coisas interessantes. Que não era bom ninguém se meter comigo porque eu sabia muitos truques de boxe e luta livre. “Quanta vergonha”, pensava eu. Mandado entrar, fiquei aguardando sozinho na sala ampla e vazia enquanto minha amiga fora lá para dentro cochichar com as pessoas. Em seguida entraram os pais de Laura e trocamos cumprimentos. Olhei para fora e vi a multidão de vizinhos testemunhando o “encontro do ano”.
Na platéia ninguém falava. O pai da moça vociferava alto e grave, como a falar também para os de fora. A mãe ficava o tempo todo de cabeça baixa. Percebi que estava sendo tratado como um homem e não como um garoto. Gostei disso e ajeitei a gola da camisa, como era meu costume. Seu Aníbal chamou Laura e eis que aparece ela num vestido azul rendado. Estava deslumbrante num sorriso que transbordava felicidade. Fiquei surpreso com a beleza de Laura e comecei a fazer o caminho de volta daquele romance que não merecia ser interrompido. Nos demos as mãos e depois nos atiramos nos braços um do outro. Então um longo beijo de amor, preparado nas cartas, aconteceu. Todos sabiam o que era um beijo apaixonado, mas ninguém tinha ainda presenciado um ao vivo. Laura me olhou nos olhos e lágrimas começaram a rolar em nossos rostos. Antônia desabou ali mesmo e não parava mais de chorar. Retirei do meu dedo um anel de ouro com minhas iniciais e coloquei no dedo médio da mão direita de Laura proclamando que estávamos noivos. Houve uma algazarra geral. A filha do Aníbal iria casar com o moço da capital. E casamos, parece ontem; amanhã Antônia será
nossa madrinha em bodas de ouro.

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