terça-feira, 22 de julho de 2008

Crônica de guarita



QUEBRADA
Humberto Ilha
Dia desses conversava com meu irmão. Veio de Porto Alegre me visitar e conferir se eu ainda estava vivo. Ele conhecia deus e todo mundo. De repente passou por nós um major do exército, antigo cliente dele no banco Nacional e que na intimidade atendia pelo apelido de Pinduca, por ser careca. Vinha andando com o barrete na mão e absorto em pensamentos graves. Era um conhecido ornitólogo bancário criador de aves de bico forte, grosso e recurvo, mas a ele meu irmão dispensava tratamento VIP. Se não por ser uma autoridade, então por ser uma figura de notável simpatia. Lauro não se conteve e começou a esboçar sorriso velhaco antevendo o susto que ia dar no amigo. Aprontar uma quebrada, coisa que fazia com raro talento. Tratava-se de chamar alguém pelo nome e dele se esconder, causando-lhe embaraço, dúvida e até susto. Principalmente se não o visse há algum tempo. Mesmo que não soubesse o nome, ainda assim praticava a quebrada como só o Vampiro de Curitiba [1] soubera eternizar em prosa.

Meu irmão perdeu o interesse no que eu falava e fixou o olho na cara do amigo do peito. Sim, era ele e não haveria de ser outro. Cabelos grisalhos havia-lhe sobrevindo do estresse na tesouraria da caserna. Ingressara na Academia para ser um combatente e virara um gênio das finanças nos quartéis por onde era mandado servir, coisa que abominava. E disso até o general sabia. Mas não atendia seus apelos, bem o sei, sinceros, de tirá-lo daquela situação. Ameaçava pedir demissão da tropa. Mas o que lhe retornava eram sugestões de se tratar, de descansar, de não se matar no serviço, de fazer exercícios físicos, de manter a calma, pois era tido como indispensável no trato com as finanças. Tanto tempo aprendendo cálculo diferencial, derivadas e equações complexas, para acabar como um contabilista de luxo. Correndo na calha, seguia em frente com a vida. Fazer o quê? Onde a felicidade? Na família que tanto prezava e nos amigos. Amizade como a que conferia a meu irmão. Aliás, disso sempre tive orgulho do Lauro. Sabia fazer amigos, embora não tanto guardá-los. Explicava-se, por ser um existencialista nascido. Procurava se colocar no presente sartriano para estar feliz.
Enquanto o militar passava bem pertinho sem nos perceber, e Lauro me pedia silêncio com o dedo indicador sobre o biquinho que fazia com os lábios, eu pensei: "que vai ser agora?" O que vi foi coisa de remordimento até hoje. Meu irmão gritou com aquela voz grave, que dizia ser parecida com a de Nelson Gonçalves, muito embora eu o achasse melhor na pele de Vicente Celestino:

— PINDUCA!

Pra quê foi fazer isso? Assustou o major; assustou e o coitado tombou nocaute ali mesmo com as mãos nas costas. Ainda o vi na maca sendo colocado na ambulância, os olhos esgazeados, enxergando, parece, o que ninguém conseguia, e balbuciando para o soldado bombeiro algo como: “o senhor é o general Sampaio?” [2]. Enfarto, susto? Menos... Virou-se tão rapidamente que rendeu as costas. “É nervo torto”, disse-lhe a mãe; e mãe é mãe. Depois soube que era hérnia de disco. Uma semana de repouso da tesouraria, do banco e dos amigos que inventaram essa tal de quebrada.

[1] Dalton Jérson Trevisan.
[2] O Brigadeiro Antônio de Sampaio foi consagrado, em Dec. 51429 de 13 de março 1962, patrono da Arma de Infantaria, em cujo seio se forjou e se destacou sobremodo como bravo e modelar líder de combate, instrutor e disciplinador da Infantaria, a frente da qual, representada pela sua 3ª Divisão de Infantaria - a Divisão Encouraçada, teve seu glorioso encontro com a glória militar em 24 de maio 1866, na Batalha de Tuiutí, a maior batalha campal travada na América do Sul. (Cláudio Moreira Bento, in www.regiaodasagulhasnegras.com.br).

Um comentário:

Anônimo disse...

Qual é; o meu, e os direitos autorais de usar meu santo nome em vão(parafraseando o príncipe FHC).
Revivi aqueles dias, que saudade, sem querer ser saudosista, já sendo, que época maravilhosa.
Seu BLOG ficou ótimo, torço por você.
Um grande abraço