sábado, 30 de agosto de 2008

DOIS VELEIROS



Humberto Ilha

Após vender seu antigo veleiro a um amigo, Oilte Nunes adquiriu outro novinho. Bom velejador, o homem tinha fama de não perder regatas sem luta. Não raro gabava-se de ter esse "defeito" em seu currículo médico. Mais ainda, dizia-se uma Ferrari andando por estradas cheias de buracos. Metáfora óbvia para proclamar que os hospitais da cidade não estavam à altura do seu "bisturi de ouro". Se descuidassem ele se proclamava deus. Enfermeiros e Auxiliares não gostavam de trabalhar com ele, de tão arbitrário que era. Dia desses, era madrugada, resolveu passar no hospital para atender um paciente. O segurança barrou-lhe a entrada.
— Vou verificar quem é o senhor.
Enquanto o outro se comunicava com alguém lá dentro, Oilte enfiou o pé na porta de vidro e entrou levando tudo por diante.
— Não posso aceitar que o hospital onde trabalho não me conheça.
Os diretores da casa o perdoaram, pois ele de fato era credor de respeito profissional. Mas os funcionários passaram a tratá-lo de cavalo. Cá para nós, era desejável que nessa profissão ele fosse alguém que não aceitasse levar trambolhões na vida. Em competições esportivas isso era algo detestável porque ele não reconhecia a prevalência dos adversários. Inocentes regatas eram ocasiões de encrencar com os amigos. O homem virava um pau de bater em maluco. Transformava-se num tirano mal educado tamanho o baixo vocabulário que usava para se fazer entender. Mas havia que ter mais cuidado no exercício de profissão tão humana.

Depois de entregar a embarcação desafiou o novo proprietário para uma regatinha ao redor da Ilha dos Ratones. Era um percurso de uma hora. Meio sem jeito o outro aceitou, sabendo que iria perder. Além de novo o veleiro de Oilte era veloz. Com aquele ventinho nordeste era uma vantagem e tanto.

Dada a largada o médico pulou na frente. Quase se via o sorriso sarcástico de Oilte Nunes liderando a prova. Queria, precisava ganhar nem que fosse à base de ciganice. Mas o outro o conhecia bem e preparou-lhe coisa de caso pensado: ao ver-se distante ligou o motor na lenta e navegou de bordo contrário. Quando fez o contorno da ilha, o médico estava muito atrás. O amigo venceu a regata e esperou a chegada do azedo, que resolveu abandonar a prova e atracar o barco. Não entendeu como aquilo pudesse ter acontecido. Prometeu colocar anúncio no jornal para vender o veleiro. Alegando que a embarcação era hostil e que não obedecia com rapidez seus comandos de leme e escota da vela mestra, Oilte não a queria mais. Queria um veleiro arisco e não um cocho de lavar roupas. Diante dos amigos ficou com tanta vergonha que ofereceu o veleiro para quem quisesse comprá-lo por um preço de ocasião. Então o amigo que o havia vencido naquela regata de brincadeira aproximou-se.
— Por que você coloca a culpa no barco?
— Não admito perder para você nem de brincadeira.
— Não percebeu que não venci você?
—...???
— Você perdeu para você mesmo. Quer vender o seu veleiro? Pois não deixo
.

Foto: Veleiro "Guga Buy", gentileza de José Zanella.

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