segunda-feira, 1 de setembro de 2008

GUARDA-BANDEIRA

Humberto Ilha

Menos de vinte e quatro horas depois o tenente já estava ansioso para compor a guarda-bandeira. Queria degustar aquela honra. Glória somente menor que "morrer num campo de batalha todo roto por balas" (era-lhe ainda recorrente o casto verso da canção da arma). O comando da guarda era dado ao mais novo oficial. Não era questão de merecimento, mas de tradição. Quando se tratava de um novato com formação na Academia Militar o protocolo se revestia de graça e beleza. Aí residia o encanto, pois não é sempre que se vê um jovem galante envergando garboso uniforme no desempenho de algo tão digno. Tradição determinada pelos comandantes de cabelos já esbranquiçados, o rito ajudava-lhes a entender a própria alma batida pelos ventos da dura vida nas guaritas. Olhando a juventude no desempenho de tão elevada missão, esses veteranos se viam nela. Melhor, passavam a residir nela.

Experimentei o regozijo de fazer parte disso durante algum tempo. O porta-bandeira era um oficial recém-formado. O que ele tinha de capricho no cerimonial, tinha o equivalente a dívidas nos carnês. Um dia antes tinha tomado uns solavancos do velho coronel por causa de um telefonema recebido do banco. Não fosse esse podre era um deus para nós. Nas vésperas dos desfiles o caudilhinho nos treinava exaustivamente até que todos os movimentos saíssem perfeitos. Éramos dois cabos e três soldados. Todos da mesma altura para harmonizar a formação. Ele, armado de pistola e espada, conduzia o pavilhão nacional; cada um de nós, um fuzil com baioneta armada. Como aquilo pesava; nossa! Nos ensaios deixava-nos amargar durante muito tempo em ombro-arma, que era "a posição primordial de uma guarda-bandeira que se preze". As praças de uma guarda de honra jamais faziam o movimento de apresentar-arma. Era a tropa quem o fazia em homenagem ao intocado pavilhão nacional. O homem também não aceitava que fizéssemos qualquer outro movimento para aliviarmos a postura incômoda do ombro-arma. Ficávamos ali, debaixo de sol ou chuva durante o tempo que ele decretasse. Muitas vezes nossos braços adormeciam enrijecidos. Ainda assim, estar sob as ordens de um militar de carreira era adequado porque ele sabia o que estava fazendo. Éramos voluntários, pois se assim não fosse ele não nos queria ali. Para ele iam os elogios, para nós o breve privar do seu convívio pessoal; pois que no recreio ele se tornava nosso companheiro de cigarro. Chegou a nos contar sobre aquela chacoalhada do dia anterior.

Havíamos entrado num concurso para a escolha da melhor guarda-bandeira da Quinta Região. Vencemos, mas naquele dia aconteceu uma que jamais esquecerei. As guardas tinham que desfilar diante da tropa perfilada, executar alguns comandos marciais de marchas e contramarchas e se postar diante do palanque onde estavam os comandantes e a comissão julgadora. Essa parte da cerimônia era chamada de "introdução da bandeira". Nossa guarda foi chamada, fizemos uma apresentação impecável e nos colocamos diante do palanque em posição de ombro-arma durante quase uma hora; tudo de acordo com o nosso treinamento. As outras guardas desfilavam e após ficavam em posição de sentido, com os fuzis e a bandeira nacional em posição de descanso. Desnecessário dizer que nossa posição inflexível agradou e fomos escolhidos a guarda-bandeira da Região Militar.

Então veio desfilando a guarda-bandeira do Centro de Preparação de Oficias da Reserva comandada por um tenente novinho, quase ainda um civil. Vinha progredindo sem muito brilho diante do palanque quando um repentino vento de rebordo fez que a bandeira nacional arrancasse o capacete da cabeça do oficial. Primeiro o vento caprichoso drapejou o pátrio pendão ao som de um dobrado comovente. O tenente arrepiou-se do pé à ponta igual a um tamanduá-bandeira ouriçado: "agora eu ganho a disputa". Depois, talvez com raiva dos que tão mal o tutelavam, ele próprio, o símbolo augusto da paz, arrebatou a cobertura mal assentada na cabeça do jovem para atirá-la no chão feito uma pipoca descontrolada: ploc-ploc-ploc pelo meio da espaçosa Brigadeiro Franco. Que saia justa! Deixasse o diabo do capacete no chão e seguisse em frente. Mas não; ficou tentando resgatar o equipamento com a haste da bandeira feito lança, já arrastando suas respeitáveis pontas pelo chão. Cada tentativa malograda produzia faíscas na pedra do pavimento. Quando deu por si o tenente estava longe, já dobrando a esquina da Praça Osvaldo Cruz. E dali se escafedeu. Uma cena dessas nem era para ser engraçada; mas foi.
Foto: FC Aldo do Comando Militar do Nordeste, onde é comandante o Gen. Ex. Jarbas Bueno da Costa; meu amigo na juventude.

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