domingo, 21 de setembro de 2008

O SARGENTO DESMAIOU

Humberto Ilha

A carteira do Banco de Sangue conferia-lhe a condição de doador universal. Não ia deixar de atender ao pedido do comandante: levar cinco com sangue "O positivo" ao Hospital para socorrer um baleado grave. "Deixa comigo que dou um jeito, major". A fala do sargento soou convincente e responsável num quase brado militar. E dali foi atrás de mais quatro porque ele já era um.
Diante de tão inoportuna missão ocorreu-lhe procurar entre os domesticados da cozinha. Estava com sorte, arrumou quatro e se foram num velho jipe de puxar esterco. No trajeto percebeu que nenhum deles havia doado sangue. Então o homem disse que na Capital isso era corriqueiro mostrando-lhes orgulhoso a carteira de doador; que era procedimento indolor para homens de fibra; explicou-lhes o valor da solidariedade humana sem esquecer que depois de tudo vinha um lanche reforçado para cada um. Pareceu-lhe que a gororoba fora o melhor argumento até ali, porque eles riram um pouco.

Ao desembarcar da viatura percebeu que os quatro estavam com as mangas já arregaçadas e com uma das mãos sobre o local do braço onde iam receber a agulhada. "Estão encagaçados; acho que vou ter trabalho com os cozinheiros. Parecem tão fortes e tão cheios de maricagem". O médico do Esquadrão já os esperava; o baleado queria morrer, parece. Levou todos para uma sala de procedimentos e perguntou quem era o primeiro. Os quatro olharam para o sargento, que designou um já branqueando diante da incerteza daquela sala cheirando a éter. O jovem sentou confortável numa espreguiçadeira e a freira nem deixou que sentisse dor alguma. Quando o rapaz se deu conta já estava se esvaindo para dentro de uma bolsa estéril; meio litro. Veio o segundo com mais arrojo, mas sério e branco como um defunto. Deu meio litro do precioso e ganhou o sorriso de aprovação do sargento. Com o terceiro foi mais fácil a adesão, mas a agulhada fechou a cara do mísero numa careta ostensória. A enfermeira acabou perdendo a veia do rapaz para dar mais uma espetada. Outro meio litro já levado lá para dentro, mas o doador ficou meio desencantado num canto da sala segurando o algodão no braço. O quarto voluntário foi o cabo cozinheiro, um avô que acreditava em papai-noel. Antes de oferecer seu inestimável braço olhou para o chefe como a perguntar: "posso me entregar"? Um gesto do sargento deixou-o suave e à mercê da freira que só queria saber de furar. O homem levantou-se e decretou: "Agora é a vez de o sargento dar". Arisco na ironia o militar corrigiu: "Não vou dar coisa nenhuma; vou doar". Era a vez do líder que já se arregaçava todo para deixar que lhe espetassem o braço quantas vezes fossem necessárias para o efetivo desempenho da missão que lhe fora confiada (clichê albergado ainda na Escola Militar). Quase buzinou nos ouvidos dos cozinheiros o patrono Marquês do Herval: “É fácil a missão de comandar homens livres: basta mostrar-lhes o caminho do dever”. Mas achou melhor fechar a matraca e ensinar:
— Não disse a vocês que era tudo muito simples?
Dizia isso com aquela voz de mandar nos outros, daquela que vinha sempre de cima. Enquanto doutrinava, abria e fechava a mão sem que ninguém pedisse. Como se fosse ele quem tivesse inventado a doação de sangue; melhor, como se tivesse inventado o sangue (quem se lembrar de Machado de Assis aqui, não pense tratar-se de mera coincidência). Os quatro soldados, testemunhando tamanha segurança advinda daquele jovem líder já estavam de olhos meio arregalados. Nunca se viu alguém tão cheio de bossa como aquele.

A coleta no sargento havia terminado e já se preparavam todos para abocanhar a prometida merenda, quando o maioral perdeu a audição. Depois perdeu a visão e o equilíbrio para se agarrar no que estivesse por perto. Atracou-se com a freira alarmada: "Alguém segura este homem que sozinha não consigo". Foram os dois para o chão. "Desmaiou... Ventila, ventila... Abaixa a cabeça dele... Água, água..." Até que melhorou. Foi uma vergonheira, credo.

Quando o jipinho do esterco chegou ao quartel parecia que todos esperavam um funeral. Queriam saber do sargento. Sentado no primeiro banco, verde, cabeça pendendo para o lado de fora, lábios descorados, olhos fechados, seguia vagarosamente como se fora Charlton Heston em El Cid Campeador, morto sobre o cavalo a desfilar diante da tropa contristada. Mas só por agora, porque depois o calvário do doador universal ia começar. Então o major perguntou o que houvera. O velho cabo assumiu o comando dos quatro e respondeu sufocando o deboche:
— Homem de Deus, o sargento desmaiou.

Um comentário:

Anônimo disse...

Isto não é um conto e a pura verdade.