quarta-feira, 17 de setembro de 2008

ESTAVA INDO TÃO BEM...

Humberto Ilha

Engana-se quem pensa que o céu é perto. José Galo era um Contador capaz e exercia o ofício de Auditor do Estado. Num domingo à noite, voltando ao interior, trajava blusa de lã muito fina e inadequada para o clima da serra. Acomodou-se em duas poltronas do Reunidas Noturno. Necessário descansar para encarar o dia penoso na manhã seguinte. Acostumado a dormir no primeiro balanço, o veículo nem andou dez minutos e Zé Galo já era. Só acordou três horas depois tiritando de frio, com o ônibus parado fazendo escala no pé da serra. Três graus de temperatura dentro do veículo; lá fora, horrível. Entraram quatro moças e um rapaz. Uma foi na direção dele sorrindo e caminhando vagarosamente procurando o lugar que lhe cabia. A cada busca do número ela olhava e esboçava-lhe sorriso iluminado. O Auditor arriscou pensar que ela ansiava sentar-se ao lado dele. "Está no papo", pensou. José Galo se considerava um assaltante, em matéria de conquistar mulheres; tinha faro de predador e escassa compaixão pela presa. A moça colocou a bolsa de mão no bagagito e se preparava para sentar ao seu lado, quando alguém reivindicou a poltrona. Conferiram os bilhetes e ela foi sentar-se num banco imediatamente à frente. Quando Zé Galo olhou de cima a baixo o vizinho quase não acreditou. Era um rapaz de tez acobreada, puxando a bugre. Trajava uma camisa fina de manga curta, calça jeans e tênis todo detonado. Era um ferrado, um caboclo. Trescalou, no sentar, cheiro de álcool e morrinha de quem não se lava. O fedor vinha também dos poros do homem. O chulé que subia do porão das calças espalhou-se no salão de passageiros. O ônibus não tinha calefação para dar conforto aos usuários, mas catinga quente ele tinha. José Galo, que ia ficar tão bem albergado ao lado da moça bonita, de repente se viu obrigado a viajar mais seis horas ao lado daquele caminhão do lixo: "deus-que-me-perdoe". A moça olhou para trás, sorriu e fez com os ombros que sentia muito. Os passageiros começaram a pedir que o motorista fechasse a porta e tocasse o ônibus. O frio parecia entrar pelo corredor como lança de gelo para lacerar em dor o peito de Zé Galo.

Em menos de dez minutos aquela fossa errante já havia adormecido com direito a ronco. E o pior: dormiu encostado no ombro de José Galo, que o empurrou delicadamente de volta ao seu lugar. Novamente o imundo foi repousar no ombro do já irritado Auditor. Contudo, além da cabeça, o homem encostou-lhe os braços e as pernas. Antes de obrigá-lo a se arranjar em seu lugar, José Galo, que estava gelado, experimentou o calor do corpo daquele homem ao seu lado. Resolveu deixar que ficasse ali, quentinho e quieto. Sentia tanto frio que não fez caso da repulsa de estar quase abraçado ao ensebado. Dizia sempre que detestava macho; que, mesmo perfumado, homem tinha catinga. Mas aquela era uma circunstância que o desobrigava da regra. O frio era desumano para se ater às comichões machistas. Queria mais era se esquentar, nem que para isso tivesse que pagar mico. As luzes estavam apagadas, todos dormindo; por que não? Aconchegou-se, ele também, ao corpo daquele que há pouco desprezara. Tão quentinho estava que dormiu direto. Só se apercebeu do final da viagem porque sentiu falta do balanço do ônibus. Olhou em volta e não viu os passageiros. Levantou-se sobressaltado e foi resgatar a bagagem de mão. Não encontrou nada. Pensou no diabo que estivera ao seu lado. Foi no bagageiro recuperar a mala grande, nada. "Foi ele", pensou. Já estava se dirigindo para reclamar no guichê da empresa quando avistou o bugre patife. Agarrou-o pelo colarinho e derrubou-o no chão aplicando-lhe poderosa chave de braço ao som dos palavrões mais absurdos para àquela hora da manhã.
— Onde está minha bagagem?
Sem poder emitir som, o rude apontou para os sanitários da rodoviária. Descorado de tanta cólera e desejo de vingança Zé Galo foi entrando porta adentro sem nada encontrar. Olhando na direção do bugre, como a indagar num amplo gesto com os braços, perguntou pela bagagem. Novamente o índio apontou para os sanitários, mas desta vez para o feminino. Entrou lá e encontrou seus pertences com a piranha da poltrona da frente.

Nenhum comentário: