domingo, 7 de setembro de 2008

O INESQUECÍVEL ANTÔNIO PÉ DE PATO

Humberto Ilha

Alberto Capa Preta veio contar que Antônio Pé de Pato estava trabalhando de operário na ponte batendo ferrugem. Mesmo que a gente dissesse que era um bom trabalho, ele não gostava porque lhe soava que o estivéssemos mandando ir trabalhar. "Fico desempregado, mas não vou me pendurar lá como um macaco amarrado pela cintura no sol e na chuva". Achava isso desonroso. Pelo menos Antoninho estava defendendo o jabá de cada dia porque a vida era pedreira. Mas Betinho era metido a ser especial só porque tinha cara de roqueiro; só porque andava para cima e para baixo com o Roberto Carneiro cantando o repertório do Elvis; ficava imitando o astro como se acometido de epilepsia. Na época ninguém sabia, mas aquela panca de artista só fazia sucesso na zona, onde era conhecido como Capa Preta. Amargou esse apelido o resto da vida junto com as doenças que pegou por lá. Teve juízo, porque jamais casou para evitar o alastramento da praga encalacrada na carcaça. Cancro Duro, Crista de Galo, Esquentamento, Hepatite B e Chato, só para não deixar grande a lista de moléstias que arranjou com aquela veneta de virar roqueiro num lugar pequeno. Quando ele apontava longe as mulheres já o bradavam por causa daquela capa de lã até as orelhas. Entrava e já ia desabotoando tudo para parecer melhor de se ver. Para deixar evaporar o Topaze legítimo que conseguia com os muchachos argentinos nos trapiches da Rua 14 de Julho.

Dia seguinte o vadio levantava somente quando Pé de Pato chegava para almoçar, pois a casa era ao lado.
— Vai lá rapaz; a vaga ainda é sua.
— O salário é mesmo aquele?
— Vai lá; vai lá.

Foi mesmo, mas queria primeiro ver Antônio trabalhando; conferir se ele próprio agüentava o tranco. "Que seja, mas não gosto de trabalhar amarrado como um mico". O outro veio e explicou as graves responsabilidades de segurança no serviço. Alberto resolveu encarar. Para debochar do canteiro de obras perguntou:
— Posso urinar lá para baixo?
— Só não molha as ferramentas.
Era tanta urina acumulada que iniciou fazendo um arco, depois umas rodilhas e o resto foi em cima de uns cabos de alta tensão. Nem se lembra disso, mas foi jogado no mar desacordado lá de cima. Do guascaço que recebeu somente lhe ficou na cabeça a sensação de que estava encolhendo até ficar do tamanho de um palito de fósforo junto com a visão nítida de um caixão de defunto de guarnições roxas. Pelo que se soube depois, fora eletrocutado por uma corrente elétrica de quase mil volts que se conectou na urina.

Trinta metros de queda livre os dois; sim, porque Antônio desafivelou rapidamente o cinto de segurança e se jogou logo atrás no vazio para socorrer o vizinho preguiçoso, mas não o avistou na superfície; o jeito foi mergulhar. Não era à toa que tinha o apelido de Pé de Pato. Com aqueles pés defeituosos que ganhara não se sabe de quem, seu nadar era ligeiro. E foi ligeiro que encontrou o amigo cada vez mais afundando inconsciente. O engenheiro que lhe exigia o cinto amarrado na cintura era o mesmo que lhe ensinara os primeiros socorros. Foi o que salvou o moço bonito da zona nos primeiros minutos após o acidente. Ambos foram direto para o Hospital Senhor dos Passos. Não era seu gosto, mas Antônio até falou nas rádios da cidade. Diminuindo o feito acabou famoso pela coragem e pela bondade.

De prêmio, o Distrito Naval convidou o herói para fazer cobiçado curso de prático na Baía da Babitonga, garantindo-lhe a velhice. Foi promovido comandante por merecimento. Capa Preta preferiu garantir a velhice das bruacas e foi promovido a coronel.

Pelo que se sabe, até hoje ocupa o posto.
Foto: Ponte Hercílio Luz, acervo do Intituto Carl Hoepcke.

Um comentário:

antes que a natureza morra disse...

Parabéns pelo teu blog. Sou gaúcho, prof. titular aposentado da UFSM, RS. E resido desde março deste ano na praia de Canasvieiras, nesta ilha mágica de Floripa. De boa vontade estou tentando me aculturar, a caminho de ser um manezinho adotivo...rssssss Há muitos anos veraneava aqui, sempre sonhando com a possibilidade de vir morar em definitivo na praia. Tendo formado e casado os três filhos, realizei agora meu intento.
Abração fraterno

James Pizarro
www.professorpizarro.blogspot.com