terça-feira, 9 de setembro de 2008

CHUVA REVELA OURO SOB A CARCAÇA

Humberto Ilha

Muitas vezes quem bebeu todas quer mesmo é ficar encostado à cangalha da bebedeira, no velho exercício da autocomiseração. Quem chega de fora, mesmo na primeira fila, pouco vê o que possa existir lá dentro daquela carcaça.

O infortúnio jamais encontrou abrigo tão adequado como na pessoa de Aristides, que logo cedo começava com uma dose a comemoração pelo fato de haver parado de beber na noite anterior. Estalava a língua quando mandava dois marteletes de cachaça para dentro. Mas não agüentava a inocente mistura de vinho, conhaque e aniseta. Era de revirar-lhe o bucho e o dia estava perdido. De estatura baixa, magro, quase um índio, mas com a alma azul, que desafiava a justiça divina quando comparada com as coisas da terra. Não havia criatura de melhor coração e de pior sorte. Padecia de beleza, mas trazia escondido dentro de si as melhores digitais da moralidade. Estivador, amava jogar no bicho. Tinha estilo e coerência para fazer a fezinha. Perseguidor incansável da centena 188, jamais soubera pronunciar direito o nome do felino correspondente. Não é que entendesse alguma coisa de numerologia. É que confiava na sabedoria do acaso. Havia juntado do chão uma placa esmaltada com o tal número estampado. Uma dessas que se coloca nas casas para os carteiros encontrarem o endereço das pessoas. Teve a idéia de pregá-la na fachada da privada, no fundo do quintal, como se fora um troféu. Lá uma vez perdida ganhava uma bolada. O bicheiro era homem honesto. Ironia à parte, era honesto dentro do ilícito. Em acordo com a lei da rua. Enquanto isso ia ficando riquinho com a contravenção tolerada.

Quase analfabeto Aristides só lia papel de letras grandes. A exceção que fazia era para as letrinhas no caderno da venda. Depois das seis da tarde entrava lá e começava a implicar com o proprietário. “O café está caro; sei onde tem mais barato”. Ao Nestor cabia-lhe apenas represar a irritação. Aristides divertia-se à larga. Mas também a encrenca dos dois não passava disso. Dizem que Aristides bebia por desgosto. A mulher se consumia em tuberculose; coitada, internada no Nereu Ramos o tempo todo. Tratado como um sem vontade para largar o vício, merecia o respeito dos que o conheciam e ao seu drama. De qualquer jeito parecia desumano tratá-lo dessa forma. A vizinhança lhe conferia apoio, menos Duarte, um marujo que dava duro para viver. De justiça diga-se que muito fez para ampará-lo quando enchia a cara.

O estivador chegava em casa e começava a jogar porta a fora a louça, as panelas e os talheres. Em seguida pegava os dois potes cheios de água e os estourava na rua com grande alarde e aos gritos de “O negócio é o seguinte... seguinte... seguinte”. Não dizia nada com nada. As duas crianças corriam para a casa dos vizinhos. A mulher de Duarte pedia e o marido ia lá, dava um banho nele, colocava-o na cama e punha-o para dormir; fizera-o muitas vezes, mas agora não estava mais disposto a ajudá-lo. Então passou a não mais atender aos pedidos de socorro que a própria esposa lhe fazia. Começou a endurecer no tratamento com o vizinho, que tinha parentes bem nascidos. Entretanto, somente o primo Osni Motter, o feio, o recebia na Assembléia Legislativa para atender-lhe as necessidades.

Duarte sofria de hipertensão severa, segundo o médico do Instituto. Além do mais era epilético e fazia tratamento com um barbitúrico: Gardenal. Muitas vezes ficava descompensado e não havia quem conseguisse o remédio na cidade. A não ser o Aristides. Quando sabia que o vizinho estava assim ele ia à casa do primo e conseguia o medicamento. Mas agora o irritado marinheiro havia proibido a esposa de pedi-lo para trazer o remédio. Não queria mais favor dele. Mas também não o ajudaria mais quando chegasse chumbado em casa.

Naquela noite chovia de fazer barulho, Aristides chegou encharcado em casa. Por dentro e por fora. Começou a quebrar as coisas e as crianças fugiram. Depois foi para a rua e começou a desafiar: “Seu Lucas, está com medo ou está com nojo?”. Duarte estava de cama, com a pressão altíssima e sem medicação; quase tendo um derrame. A provocação durou um tempo até que o embarcadiço cedeu aos pedidos da esposa para ir lá e colocar o homem a dormir. Resmungou que tinha era vontade de dar-lhe uma surra.
— Melhor é compreendê-lo; — disse ela — creditar-lhe virtudes que você não tem.
— O Aristides é um indigente de caráter.
— Nem tanto. Você tem pressa de envelhecer quando não consegue disfarçar sua voracidade pelas notícias do vermelho Novos Rumos; ele nem sabe ler. Você ama polemizar usando argumentos bem nutridos, fluentes, diretos, contundentes e realistas. Ele é um homem bom, romântico como os bêbados, que vão para lá e depois para cá; que param, andam, resmungam, ameaçam os fantasmas que só eles vêem, ironizam, falam sozinhos, pois se bastam a si; que choram, escorregam e caem para se levantar e seguir na vida. Ele vai viver mais que você. Quando ela começava assim, Duarte tinha que sair de fininho para não escutar o que ela consignava nas notas de rodapé. Foi lá e encontrou o outro estirado no chão com a chuva do telhado caindo-lhe sobre o rosto vincado pela dor na alma, pelo trabalho duro da estiva, pela solidão sem luz, pela falta de futuro. “O corno está morto e não sabe” — sorriu, —“a carcaça já larga catinga...” Discutiram um pouco e Duarte levou-o para dentro, tirou-lhe a roupa, deu-lhe um banho, pô-lo para dormir e ia iniciar uma prece quando Aristides sentou na cama, coçou a cabeleira preta e zombou:
— Está com medo ou está com nojo?
Duarte virou-lhe as costas e o outro caiu já roncando.

Ao passar pela cozinha Duarte deparou-se com três caixas de Gardenal.

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