quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O PALHAÇO QUE ENXERGAVA NO ESCURO

“Os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão” (Choro Bandido, de Chico Buarque e Edu Lobo).

Humberto Ilha

No dia seguinte ele já estava trabalhando no Parque de Diversões. É que um dia antes fez algo por baixo dos panos. Dormiu pouco, mesmo assim não se via sinal de trinca na estrutura da fachada do homem. Antes de tudo escutou aquela história dramática que ia ribombar em sua cabeça até que conseguisse aquietar o deus da morte, de quem era vizinho.

Soube que um homem adotara um menino criando-o junto com a própria filha. Ao tornar-se um rapaz, tornou-se também um mandrião que não queria saber de trabalho. Isso dava imenso desgosto ao pai, que trabalhava duro na roça de cana junto com a menina. O vadio já havia se metido em várias encrencas e ganhara um golpe de facão em cima do olho esquerdo que lhe deixou cicatriz e o olho cego. Então ficou sendo conhecido como Caolho.

A adolescente queixou-se ao pai de que o irmão estava se aproveitando da bondade dele. Um dia, em conversa com o marmanjo, o velho chamou-o à atenção sobre o que a filha havia dito. O rapaz prometeu arrumar emprego. Mas, ardiloso, ele concebeu uma vingança: matou a irmã dentro de uma patente no fundo do quintal e fugiu do lugar. O caso ganhou contornos pesarosos e se espalhou na região. Por se tratar de crime violento, gerou revolta nas pessoas germinando ali um perigoso clamor de vingança. Mas o assassino já estava longe; veio morar no Sul.

Passados dois anos um viajante, que se declarava revoltado com a falta de justiça, comentou o caso com um dos atores do elenco do filme "O Preço da Ilusão" (argumentado por Eglê Malheiros e Salim Miguel) que estava sendo rodado na cidade aonde Caolho viera se esconder. Outro não era senão o palhaço Coruja, que decretou:

— Conheço o assassino e sei onde ele está. Diga ao pai da menina para descansar que o malvado já era.

Naquela noite, como nas outras, ostentava aquela gravata horizontal: poá com as abas grandes. As largas riscas brancas do traje impecável deixavam-no mais longilíneo. Mulato de olhos azuis, alto quase arcado, gostava de sapatos pretos de tacões sempre novos para garantir o andar aprumado e leve. "Um artista, dizia, nunca terá dignidade com os saltos dos sapatos desgastados". Camisas sempre brancas — tinha umas quinze para trocar três por noite — levemente borrifadas pelo fuxiquento Lancaster. Unhas grandes nas mãos suaves confrontavam a rude torquês de arrancar as setas disparadas nos alvos pelas espingardas de pressão. Dentão de ouro maciço, visível até quando pensava. Vasta cabeleira crespa já prateando, Coruja dava ares de ser alguém especial e que já se despedia de fazer coisas arriscadas pela vida. A voz toda de César Ladeira ele a gastava anunciando os pontos enquanto manipulava com rara habilidade o alicate para extrair as setinhas de plumas coloridas.

No ir e vir até o balcão divertia-se fazendo malabarismos perigosos com aquele alicate nas mãos quase enfeitiçadas. Possuía duas tenazes daquelas, mas da maior era melhor ficar longe. Aquela torquês parecia ter parte com o diabo. Para arrancar aquelas tachinhas da madeira não precisava tanto. Mesmo assim nunca despertou sentimento de medo em quem lhe prestasse atenção. Pelo contrário, não fosse tão conhecido bem poderia ser confundido com um cervo de linhas efeminadas. E olha que ontem nem parecia ser quem era, pois trajava roupa furtiva; um preto sobre preto. Quase invisível a olho nu, aplicava-se ainda venda preta no olho direito; e isso lhe era bem visível. Aquele tampão apagava as suspeitas sobre seus rastros, se por ventura alguém os descobrisse. Imóvel dentro da sombra do "Margarete" somente respirava; quer dizer, respirava e pensava. Estava prestes a dar conta de um carreto prometido.

O lenço preto na cabeça escondia o pixaim prateado. Às vezes escapava-lhe uma tosse abafada, para dentro; quase um rosnar de bicho. Naquele instante Coruja era um bicho. Esperava alguém que viria do "Bar Glória". Sem perceber, o tal veio se abrigar da garoa ao lado do próprio carrasco. Primeiro recebeu uma fita plástica na boca e depois duas algemas nas mãos para trás. Com o único olho arregalado, protestava maneando a cabeça fazendo que não. Estava imobilizado e diante de um algoz conhecido de outras bandas. Coruja sorriu um sorriso perverso dando-se a conhecer por aquela ameaçadora presa de ouro na boca. Então Caolho ficou aterrorizado dando ares de tudo entender, enquanto era dissecado pelo olhar gelado de atravessar tudo do carrasco; enquanto ouvia a voz do predador.

— Um dia te deixei viver para veres o mundo com o olho direito; para compreenderes o que é positivo na vida: a felicidade, o amor e a compaixão. Agora me enxergas com esse tampão no olho. É que desejei te enxergar com o meu olho esquerdo, que é por onde enxergo a podridão.

Em seguida Coruja sufocou o sobrinho pinçando-lhe as narinas com aquela torquês do inferno, já escondida por dentro.

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