terça-feira, 28 de outubro de 2008

LADEIRA ABAIXO

Humberto Ilha

A semana no pé daquela serra majestosa iniciava com rebuliço; pelo menos no povoado. Nada assombroso se o começo da lida não fosse às quatro da manhã. Em meia hora o ônibus sairá para engatar com o horário do trem das seis para Tubarão. "Levanta o patrão porque hoje o motorista não veio". Quando isso acontecia sobrava sururu para todo mundo. O próprio dono ia fazer a linha dirigindo o veículo; a mulher já na cozinha para o café; o filho fazendo o embarque. Sempre rigorosamente calmo, justo e honesto nos negócios, manso e cordial, Riccoldo Mansi planejara não precisar mais trabalhar duro após os quarenta. Era bom no que fuçar a vida, mas era péssimo no como fazê-lo. Para tanto botava os filhos e empregados. Jamais negou uma vaguinha para um parente, mas costumava pagar quase nada de salário. Econômico, não abria a mão nem para espantar moscas. Adorava comer ensopado de pato, mas quando havia carne de gado gostava de patinho para comer assado com recheio de toicinho e pimentão. Sedutor no silêncio, bonitão, olhos azuis expressivos, não sabia dizer não às mulheres que nele se encostavam como abelhas no mel. Vinha daí a infelicidade da esposa que o amava e unida cavucava com ele no esfocinhar a vida.

Quando o empresário chegou à garagem, o cobrador já havia aprontado o veículo para a viagem. Sentou-se ao volante, conferiu tudo e partiram devagar. A vizinhança já acordada com a maldição diária do barulho de esquentar o motor. Quem tinha juízo não chiava; o homem era também dono do armazém, da sapataria e da mina; um patrão meio blindado aos desaforos de empregados e parentes.

Na última poltrona, todo escanchado, viajava um compadre que era mais chato que chinelo de gordo. O velho, miudinho, não economizava deboche quando Mansi era o motorista; proclamava que o amigo guiava mal. "Hoje ninguém chega lá; cuidado aí, chofer". Fazia mais escândalo do que relincho de burro garanhão. O gringo era homem de pouco riso, mas também sabia encaixar com humor os gracejos do outro. Então o veículo começou a fazer uma descida grave. O cobrador começou subir a escada externa para cobrar os passageiros que se amontoavam na capota. Quando sentiu a velocidade aumentando além do costume, achou melhor se atracar com a escada; pressentiu que aquela descida ia ser diferente. Rabeou os olhos para os passageiros lá de cima e riu para dentro, porque eles já estavam apavorados com as mãos garreadas nas grades. Acostumado a passar por ali todos os dias, o menino percebeu que o empresário perdera o controle do veículo. Com algum esforço o veículo conseguiu fazer a primeira curva, mas daí deparou-se com uma tora de bracatinga atravessada. Não havia o que mais fazer: o homem firmou-se no volante, calçou os pés, virou o rosto contraído e encarou o tronco. O choque foi medonho; mais feio que indigestão de torresmo. Os cinco que estavam na capota voaram para se estatelar no chão, mas um foi parar na frente daquele dragão desgovernado. Ficou no chão quieto, parecia desacordado. Nesse meio tempo o veículo subiu um pequeno barranco parecendo querer parar. Mas não, voltou para o meio da estrada reiniciando o ziguezaguear do inferno na direção daquele que estava estirado. Mas também, foi só dar uns buzinaços que ele rolou para a beira da estrada, feito James Bond diante da morte. Safou-se, mas ficou com o cotovelo virado de ré para o resto da vida. Mas aquela era um época em que pouco se via alguém cavando falta para levar vantagem. De modos que nunca vindicou uma merecida indenização.
Com a parada repentina o zombeteiro que viajava na cozinha veio escorregando pelo corredor encharcado de óleo empacando esbeiçado em cima do painel de instrumentos. Não perdeu a pose: "Compadre Riccoldo Mansi, você tem aí uma carta de motorista ou um Almanaque da Lua"?
Depois desse episódio os fregueses fizeram um abaixo-assinado para impedir o proprietário de dirigir o próprio ônibus, mas ele ignorou o petitório. Então formalizaram queixa na delegacia de polícia. Com isso começaram a aparecer outras reclamações. Um queixou-se que ele havia atropelado por querer quatro galinhas. Outro dava conta que em dias de chuva ele fazia questão de passar por dentro das poças encharcando todo mundo. Outro reclamava da falta de horários. Outros ainda acusavam atrasos quando o motorista era o dono. E teve até passageiro reclamando que ele deixava embarcar animais como cabritos, bezerros e marrecos infernizando a vida de todos dentro do ônibus. Diziam que uma novilha enjoou e deixou uma fedentina insuportável. Daí não teve jeito, o delegado pediu que o homem não dirigisse mais o veículo. Mas ele se dizia injustiçado por se considerar um bom motorista; mas não era não.

Um comentário:

Suzana Mafra disse...

Olá!
Obrigada pela visita ao Borboletras.
Leitor do AN? que bom!
Abraço
P.S.Retornarei para ler teu blog com o tempo que ele merece