sexta-feira, 14 de novembro de 2008

FAZ PARTE!

Humberto Ilha

O casal passava quando viu uma idosa tentando atravessar a avenida da vila militar. Era um lugar difícil até para os mais jovens. Reparando a dificuldade da mulher resolveram dar meia volta no carro e encolher a distância entre eles e aquela que nem conheciam. Ao retornarem ela ainda estava longe de atravessar a arriscada via. Apoiava-se numa bengala e carregava uma sacola com roupas. O homem se ofereceu para atravessá-la tomando-lhe a sacola no que ela enfiou o braço no dele. Quando sentiram que estava favorável começaram a cruzar. Ele fazia sinais ostensivos para os motoristas abaixarem a velocidade. Parou o trânsito na hora. Caminhando na velocidade que ela conseguia, chegaram ao outro lado. Então ele perguntou para onde ela estava indo. À missa na Igreja São Francisco; frei Balbílio é o celebrante. Ela se referia a um homem grande, vermelhão, inquieto, de alguma idade e saúde de ferro. Diziam que se curava com ervas que lhe vinham da Alemanha. Falava português com sotaque carregado e alegre. Trajava sempre aquela batina marrom e sandálias. Como ele se virava no inverno ninguém sabia, porque também nunca foi visto com outro abrigo além daquele traje capuchinho. No verão, a mesma coisa: um calorão medonho e ele dentro daquela roupa escura gerando mais calor. Ali, parece, dava demonstração do obstinado ofício como servo do Senhor. O povo dispensava-lhe estima; era confessor de gente graúda.

— Vou levar umas roupinhas de bebê que fiz. Faço parte de um grupo que se reúne todo mês; ele é o nosso orientador espiritual. Conhece cada um de nós pelo nome e sobrenome; um santo em vida.
— Posso deixá-la na igreja, se quiser.
— Ora, se não quero.

Colocada no banco da frente, a mulher nem sabia afivelar o cinto de segurança. Na tentativa ela arrumou uma confusão de braço por dentro e braço por fora até ficar com o pescoço imóvel pelo cinto. O casal achou graça da dificuldade. O homem lembrou-se da própria mãe, que também fazia aquela confusão. Ajeitou-lhe o cinto e foram para a igreja deixando-a na porta. A mulher agradeceu e foi entrando com aquela bengala de madeira envernizada que lhe dava dignidade. O casal voltou para o carro e retomou a viagem, que era na seqüência daquele trajeto: o cinema do shopping assistir Julio Verne na versão reciclada em terceira dimensão da sempiterna Viagem ao Centro da Terra, agora com Brendam Fazer. Jurou à esposa que os truques da produção não iriam surpreendê-lo. Era melhor ter fechado a matraca, porque no primeiro minuto de filme quis tirar com a mão um beija-flor que lhe veio pinicar o nariz. Depois de muitas risadas ele entregou-se ao filme e às atrações que oferecia: cavernas profundas, peixes voadores, dinossauros zangados, cipós que sufocavam o herói, rochas que desafiavam a gravidade. Como o livro, na Islândia também estava a porta de entrada para aquela aventura. Só que o guia no filme era uma linda mulher, coisa impensada pelo autor no machista século dezenove. Estava envolto naquela nostalgia quando algo lhe trovejou num efeito dolby surround: Fiquei com a sacola da velha dentro do carro. Quis explicar a confusão para a esposa. Ela mandou que abaixasse a voz porque o filme era dublado. O homem disse que ia sair e voltaria dentro de meia horinha: pode marcar no relógio.
—Hãm... Hãm... — de olho lá dentro do telão.

Saiu ansiado da sala como surdo em bingo. Uma pobre lixeira voou fazendo estardalhaço numa canelada que deu quando saiu da sala sem enxergar nada. Já no estacionamento olhou a sacola da senhorinha no banco de trás e tocou para a igreja. Quando chegou já havia terminado a missa, mas notou a presença de algumas pessoas por ali. Foi entrando porta adentro encontrando frei Balbílio que saía às pressas e olhando para trás. Dentro da igreja somente umas pessoas em oração aqui e ali. Perdi a velha. Olhando na sacristia viu um bolo de gente. Ela estava vomitando numa pia; as amigas em volta dela. Coitada, por que o padre não ficou aqui para atendê-la já que a conhecia pelo nome e sobrenome? Por que, já que era o orientador espiritual do grupo? Lembrou que ainda o vira se afastando, decerto para não ficar refém da responsabilidade. Levou a senhorinha à emergência do Hospital Senhor dos Passos. Depois de encaminhada colocou junto à cama a sacolinha e voltou para o cinema buscar a esposa. Precisavam voltar ao hospital e depois levar a mulher em casa: era no Buraco da Onça.

Já contou algumas vezes esta história com a gravidade que merece, mas não quer mais porque o pessoal começa a rir e dizer-lhe bem-feito, metido.

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