Humberto Ilha
A moça padecia de um mal que ninguém conseguia sequer diagnosticar. Consta que nascera saudável e com dez meses contraíra doença neurológica que a incapacitava progressivamente. Com vinte anos, e cadeirante há dez, os pais a levaram para uma consulta com o doutor Asteróide do Espírito Santo. Após exames diversos decidiu que a moça ficaria no hospital para um tratamento que ele havia concebido. Entretanto a jovem estava há uma semana deitada numa maca da emergência sem conseguir vaga para um quarto. Quase tudo ali lhe era negado: a higiene pessoal, o repouso, a dignidade, a gentileza de um sorriso. Quando sucedia precisar de banheiro era tirada dali às pressas. Viajava pelos corredores olhando o teto e vendo os rostos distorcidos das pessoas; sentindo cada solavanco das rodinhas da maca nas curvas para chegar ao elevador e lá ficar confinada, acompanhada pelo murmúrio do engenho das correntes e dos contrapesos da caixa de aço. Depois, de volta, tudo de novo sob o comando de outro atendente, pois o que a trouxera fora lanchar ou entregara o plantão para descansar no colchão macio de casa. Sentia-se longe da própria casa diante do efeito maca-na-emergência. Uma semana ali varreria da memória de qualquer um os contornos da própria carteira de identidade; mas a moça era valente e resistia, saindo daquela impiedosa cena para se abrigar na vigorosa esperança que lhe nutria a alma.
Todos os dias o médico dizia que estava providenciando um lugar. Durante o tempo que a visitava parecia que também fazia alguns exames misteriosos. Espetava-lhe as partes dormentes das pernas, das mãos, dos braços, dos pés, das costas, do abdome e da cabeça. Muito embora ela experimentasse leve desconforto, mantinha-se resignada durante os exames. Guardava uma fé quase absurda de cura mais-dia menos-dia. Mas esperando naquele corredor ela também pressentia que não ia acontecer nada.
Daí que os pais decidiram levá-la para casa à revelia do médico. Tiveram um trabalho imenso para encaixá-la naquela cadeira da má sorte. Ajuntaram as coisas e já iam saindo quando o doutor chegou.
— Vamos levá-la para casa. Isto aqui é desumano — disse a mãe.
— Ela não pode interromper o tratamento.
— Tratamento? O senhor está de brincadeira.
— Ela tem de ficar no hospital. Esperem que irei providenciar um quarto. Além do quadro clínico tenho de resolver o enguiço administrativo. Odeio isso.
Saiu e não voltou, mas dois funcionários de roupões verdes, pantufas e toucas acomodaram-na num quarto com mais duas mulheres. Então os pais puderam dormir em casa naquela noite. Dia seguinte voltaram e não a encontraram. Havia duas camas vazias e uma doente que dormia profundo. Deram-lhe alguns safanões delicados para acordá-la, mas parece que ela queria ficar dormindo. Com os olhos fechados perguntou "o que é?"
— Onde estão as pacientes? — perguntou a mãe com angústia na voz.
— As duas foram levadas à noite, mas parece que uma não resistiu.
Disse isso e voltou a dormir no abismo. Pai e mãe entraram em aflição e desembestaram correria ao posto de enfermagem saber o certo. Escutava-se o desespero deles pelo corredor e muitas pessoas vinham ver. Nisso veio também o doutor Asteróide. Ambos voaram-lhe em cima para dele exigir explicações. Nem o deixavam falar, que, ainda assim, mantinha-se calmo.
—Vamos até o quarto — precisou decretar. O que aconteceu com ela e com mais alguns ainda não sabemos explicar. O certo é que isso está me trazendo algum desgosto e nociva fama porque está fora do padrão profissional. Só não abandono isso porque o meu sonho de ajudar os doentes é muito maior do que eu. Mas confesso que essa loucura está ganhando vida própria e ficando maior que tudo.
Encontraram a paciente que havia dado aquela notícia trágica dormindo como desfalecida. Para surpresa geral a jovem sumida saiu andando sozinha do banheiro enxugando os cabelos. Abraçou os pais e contou que estava curada. Que fora levada dali na madrugada para uma sala com pessoas que a esperavam. Que o doutor disse que iam fazer nela uma cirurgia, mas que durante o procedimento ninguém tocou nela. Que fora trazida de volta e dormira bem o resto da noite. Quando acordou quis levantar-se e tomar um banho.
— O resto vocês já sabem.
Os pais procuraram o médico que não estava mais ali. Foi encontrado combinando no telefone móvel outra cirurgia para aquela noite, pois somente a noite sabia guardar os segredos dos fenômenos de assimetria.
A moça padecia de um mal que ninguém conseguia sequer diagnosticar. Consta que nascera saudável e com dez meses contraíra doença neurológica que a incapacitava progressivamente. Com vinte anos, e cadeirante há dez, os pais a levaram para uma consulta com o doutor Asteróide do Espírito Santo. Após exames diversos decidiu que a moça ficaria no hospital para um tratamento que ele havia concebido. Entretanto a jovem estava há uma semana deitada numa maca da emergência sem conseguir vaga para um quarto. Quase tudo ali lhe era negado: a higiene pessoal, o repouso, a dignidade, a gentileza de um sorriso. Quando sucedia precisar de banheiro era tirada dali às pressas. Viajava pelos corredores olhando o teto e vendo os rostos distorcidos das pessoas; sentindo cada solavanco das rodinhas da maca nas curvas para chegar ao elevador e lá ficar confinada, acompanhada pelo murmúrio do engenho das correntes e dos contrapesos da caixa de aço. Depois, de volta, tudo de novo sob o comando de outro atendente, pois o que a trouxera fora lanchar ou entregara o plantão para descansar no colchão macio de casa. Sentia-se longe da própria casa diante do efeito maca-na-emergência. Uma semana ali varreria da memória de qualquer um os contornos da própria carteira de identidade; mas a moça era valente e resistia, saindo daquela impiedosa cena para se abrigar na vigorosa esperança que lhe nutria a alma.
Todos os dias o médico dizia que estava providenciando um lugar. Durante o tempo que a visitava parecia que também fazia alguns exames misteriosos. Espetava-lhe as partes dormentes das pernas, das mãos, dos braços, dos pés, das costas, do abdome e da cabeça. Muito embora ela experimentasse leve desconforto, mantinha-se resignada durante os exames. Guardava uma fé quase absurda de cura mais-dia menos-dia. Mas esperando naquele corredor ela também pressentia que não ia acontecer nada.
Daí que os pais decidiram levá-la para casa à revelia do médico. Tiveram um trabalho imenso para encaixá-la naquela cadeira da má sorte. Ajuntaram as coisas e já iam saindo quando o doutor chegou.
— Vamos levá-la para casa. Isto aqui é desumano — disse a mãe.
— Ela não pode interromper o tratamento.
— Tratamento? O senhor está de brincadeira.
— Ela tem de ficar no hospital. Esperem que irei providenciar um quarto. Além do quadro clínico tenho de resolver o enguiço administrativo. Odeio isso.
Saiu e não voltou, mas dois funcionários de roupões verdes, pantufas e toucas acomodaram-na num quarto com mais duas mulheres. Então os pais puderam dormir em casa naquela noite. Dia seguinte voltaram e não a encontraram. Havia duas camas vazias e uma doente que dormia profundo. Deram-lhe alguns safanões delicados para acordá-la, mas parece que ela queria ficar dormindo. Com os olhos fechados perguntou "o que é?"
— Onde estão as pacientes? — perguntou a mãe com angústia na voz.
— As duas foram levadas à noite, mas parece que uma não resistiu.
Disse isso e voltou a dormir no abismo. Pai e mãe entraram em aflição e desembestaram correria ao posto de enfermagem saber o certo. Escutava-se o desespero deles pelo corredor e muitas pessoas vinham ver. Nisso veio também o doutor Asteróide. Ambos voaram-lhe em cima para dele exigir explicações. Nem o deixavam falar, que, ainda assim, mantinha-se calmo.
—Vamos até o quarto — precisou decretar. O que aconteceu com ela e com mais alguns ainda não sabemos explicar. O certo é que isso está me trazendo algum desgosto e nociva fama porque está fora do padrão profissional. Só não abandono isso porque o meu sonho de ajudar os doentes é muito maior do que eu. Mas confesso que essa loucura está ganhando vida própria e ficando maior que tudo.
Encontraram a paciente que havia dado aquela notícia trágica dormindo como desfalecida. Para surpresa geral a jovem sumida saiu andando sozinha do banheiro enxugando os cabelos. Abraçou os pais e contou que estava curada. Que fora levada dali na madrugada para uma sala com pessoas que a esperavam. Que o doutor disse que iam fazer nela uma cirurgia, mas que durante o procedimento ninguém tocou nela. Que fora trazida de volta e dormira bem o resto da noite. Quando acordou quis levantar-se e tomar um banho.
— O resto vocês já sabem.
Os pais procuraram o médico que não estava mais ali. Foi encontrado combinando no telefone móvel outra cirurgia para aquela noite, pois somente a noite sabia guardar os segredos dos fenômenos de assimetria.
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