segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ENCOMENDA MUITO ÍNTIMA

“Eu sou desonesto. E pode-se sempre confiar num desonesto, porque vocês sabem que ele sempre será desonesto. Honestamente, são os honestos que devem ser vigiados. Porque nunca se sabe quando eles farão algo incrivelmente estúpido!” (Cap. Jack Sparrow, Piratas do Caribe)

Humberto Ilha
Sabe a Leila Diniz? Dizia que conhecera muitos cafajestes, mas todos eram uns anjos de pessoas. Ocorre que esse tipo de gente parece ter sempre missão na aldeia dos bons. Canalhas que indultamos porque deles precisamos. Refinados, não se prestam a cuspir na calçada ou deixar a toalha molhada em cima da cama. Nada disso. Com eles o buraco é mais embaixo. Adoram dizer: sou seu dono. E isso é que é grave. A metade deles desconfia que esteja fazendo benemerência. A outra metade tem certeza. Em férias por São Paulo, presencie uma campana policial na 25 de Março para neutralizar um desses que se achava o cara. Um tal Simão Cireneu que aguardava o momento de a mulher passar por ali para dar o bote. Todos os dias ela fazia o mesmo trajeto; já era caçapa cantada há dias. Ia ser facinho; um serviço de acordo com o que ambos haviam combinado sem dizer palavra. Ambos não, os três. A mulher era de idade. O camelô era um louco, um espião da vida alheia, um pervertido. Já avistara o vadio e esfregava as mãos, ansioso pelo momento do ataque. Num quase sorriso mastigava o cigarro de tanta tensão, ao mesmo tempo em que esfregava as mãos com impaciência. Conheciam a mulher, inclusive seus mais secretos escaninhos. Ela possuía o que Simão queria, pois carregava em vida o que não queria carregar. Dizia ser fardo, os pertences: pulseiras, bolsas, anéis, cartões e dinheiro. Cismava: “Tanta gente passando necessidade e eu no luxo”. Desejar pouco para viver. Dia claro, aquela era uma rua inimputável diante das contravenções de toda hora; diante da banalização dos pequenos crimes que dali sobrevinham. Ao contrário de muitos cenários, aquele era um local para se trabalhar de dia; com o sol resplandecente. Fosse à noite não haveria gente, platéia, nada. Só o caminhão do lixo e os enfeites de natal apagados. Cireneu era um solitário no cavar a vida. Roubar ou aliviar o fardo alheio? Disso fizera uma opção de vida. Não se incomodava com os pensamentos que tinha. Era a sua lógica, o seu absurdo, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em ser roubado, mas sabia de gente que morria de vontade de sê-lo. Os que se deixavam roubar eram os doentes, os ingênuos, os medrosos, os culpados, os trouxas, os otários. Os que roubavam eram os cafajestes, os espertos, os donos das ruas. A mulher ele conhecera sentada ao lado no ônibus. Sorriram e se encontraram depois: "só pela amizade", mentia ele. Saíram diversas vezes sem nunca darem aos encontros algo diferente que o sentido da amizade. Ela sincera, ele tramando. E concluiu que era ela quem dele precisava; que lhe cabia a tarefa de mitigar os mais íntimos desejos dela; reclamos de sua indecifrável alma. Viu-se um anjo de capa preta diante da mulher.
— Você se importa — perguntava ela — de eu ser assim?
Ele fazia que não com a cabeça. O camelô impaciente vez por outra cruzava o olhar com o do bandido e mandava, por gestos, quase uma intimação. Dava ares de um juiz de futebol, só que não interferia no resultado. Não conseguia vender nada enquanto não trombasse com algo forte no começo do dia. Nervoso, não tinha sossego enquanto não lhe viesse o descarrego da alma lavada. Enquanto não sentisse o cheiro do sangue do outro; amargava enquanto não sofresse nocaute. Então ela apareceu na rua apinhada de gente. Mas tanta que dali trescalava cheiro de pele humana. O rapaz foi-lhe ao encontro e percebeu-a diferente: olhos cristalizados, narinas ofegantes e mãos trêmulas. De olhos fechados, esperou o inevitável. Foi despojada de tudo: pulseiras, relógio, brincos, carteira, telefone, cartão de crédito... O rapaz não disse palavra enquanto atendia a mulher, que gemia baixinho. Havia nela uma expressão de alívio e um meio sorriso no rosto. Entre eles havia um entendimento da transgressão, que revelava o prazer proibido albergado em cada um. Ela fez-se paciente e resignada, cônscia de estar cumprindo penitência; viajava. Temeu demais aquilo que podia acontecer. Encontrou algum consolo quando aconteceu. Antes de sair dali o safado disse-lhe dentro do ouvido:
— Sou teu anjo negro. Eu te alivio a mochila que carregas. O covarde declamou isso inspirado na própria coragem que veio do medo estampado na alma da mulher, que permanecia imóvel e esvaindo-se ali mesmo. Ao passar pelo mascate, a mulher dele recebeu uma toalhinha felpuda para ajudar na faxina e a proclama gritante:
— Vi tudo; nada perdi; foi chocante. Deu-se ele também por aliviado da pressão interna. Estava feliz como pinto no lixo. O cafajeste, já identificado, ainda estava lidando com um remorso que não conseguia sentir. Pilhado em flagrante, reinventou-se em amargurada vítima para escapar. Mentiroso, confessava arrependimento. A mulher precisava equilibrar o gosto de ser roubada, que tinha origem num passado que iria continuar supurando. Ele merecia cadeia. Policiais sequer encostavam-lhe a mão. Haveria de ser encaminhado à delegacia de menores. Aparentando agilidade e sangue frio, respondeu canalhamente ao repórter:
— Roubo? Apenas aliviei a embarcação para que não submergisse.

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