quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

MAU PRESSÁGIO

Humberto Ilha
Era urgente ter uma conversa séria com a mãe. Arãozinho não pretendia estudar para ser padre. E também não queria mais ser coroinha da Igreja. Era-lhe insuportável ver tantos coleguinhas debocharem e cuspirem na sua cruz. Um dia enfrentou a velha de homem para homem: ia acabar com o calvário da sua amargurada vida. Nem bem havia começado a argumentar quando ela o interrompeu para repetir a ladainha de sempre: que o rapaz fora consagrado à vida sacerdotal desde quando resgatado do mar após dia inteiro de busca e suplício da família.
— Eu nem me lembro disso.
— Não blasfema, insolente.
— Quem mandou a senhora fazer uma promessa ridícula dessas.
Foi pior ter aberto o diálogo com a professora. Dela escutou que era possuidor de méritos proféticos; e de fato era mesmo. O menino nem sabia como essas coisas aconteciam. O entendimento daquilo, nem o mais letrado desenredava. Era complicado explicar como o garoto adivinhava o futuro e encontrava coisas escondidas. Eram fenômenos que aconteciam quando menos esperava. Vinham do nada e a qualquer momento. De repente sentia mudança no ambiente ou um desconforto passageiro. Podia contar, algo iria acontecer. A mãe, que não perdia um lance da vida do rapaz, tinha lá suas razões para alicerçar a fé inabalável na carreira religiosa do filho.
— Se é para viver com esses dons — dizia —, então que seja com as vestes de um sacerdote.

A maior preocupação de Arãozinho, naqueles dias, eram os colegas. Muito difícil ficar escutando um xingatório do tipo: "carola". Ainda que revidasse baixinho: “excomungado”, escutava em seguida: "papa hóstia". Então replicava com maior ofensa: “tua mãe não é séria”. Era terrível escutar: "sacristão", para arrematar com ódio: "teu pai é um corno". Só podia responder às provocações da matilha de forma muito tímida.

Um dia, Corpus Christi, estando perfilado para acompanhar a procissão carregando um incensório improvisado, notou a presença da cachorrada antegozando a teatral passagem pela frente deles. "Isso não vai prestar" — cismou pessimista; — "ninguém merece tanto enxofre". Olhou para o sacerdote que estava pálido. Era inverno, mas o homem suava no rosto. "Que lhe teria acontecido?" Pensou em pedir-lhe ajuda, mas parecia que o padre tinha visto fantasma. Ocorreu-lhe que o religioso devia ter muita fé para estar ali tão doente assim. Diante de tamanha pressão, decidiu abandonar o cortejo mentindo.
— Padre, tenho de ir à patente agora.
— Nada de banheiro. Se fosse um desmaio eu aceitaria, mas titica de jeito nenhum.
E o bondoso homem rompeu a marcha sem dar chance de reação ao menino. Problema maior era o dele, padre. De manhãzinha constatara que haviam roubado diversos utensílios sacros da igreja. Nem havia dado tempo de registrar queixa na delegacia de polícia. Isso ficaria para depois. Agora, o importante e mais urgente era dar conta da cerimônia.

Foi só Arãozinho passar pelos meninos e começou a escutar os elogios. E o pior, a corja vinha acompanhando a cerimônia pertinho dele, todos no gargarejo da primeira fila. Cabeça baixa, trazia o ar compungido de quem estava diante do próprio Deus. Tinha que dar essa impressão para a mãe que a tudo acompanhava. Quem primeiro pisava no tapete de flores era o inefável Corpo de Deus através dos pés do sacerdote, que ali era simples assistente ritualístico — conforme pregava. Esse ambiente de encantamento fascinava o garoto. Contudo seus coleguinhas estavam longe de entenderem tal situação no mesmo grau. Achava que as pessoas não se permitiam ofuscar pela presença de Deus. Por isso os coleguinhas não respeitavam o papel que ele estava exercendo naquele momento. Diante disso não se achava com suficiente vocação para a vida religiosa, pois tinha vontade de esganar um por um.

Quando o acompanhamento chegou defronte ao armazém Casemiro Rosa parou para uma estação ritualística. O incenso fumegava além do combinado. O sacerdote fazia sinais desesperados para o pequeno ajudante abaixar o volume do fumo. O garoto não sabia manusear aquele turíbulo todo amassado e velho. Quanto menos fumaça o padre pedia, mais o braseiro consumia o pó do incenso. Arãozinho resolveu abafar o turíbulo fumegante com a própria batina na ânsia de atender a ordem do apavorado religioso. Foi pior, não suportando o calor da brasa entre as mãos juvenis, acabou por liberar o medonho fumacê. O padre quase chorava de raiva. O menino tentou balançar com velocidade a peça repositória das essências aromáticas. Até resolvia um pouco, mas quando parava o movimento, por cansaço, o fumo era ainda maior. Ocorreu-lhe uma idéia que, no improviso, poderia funcionar. Começou a fazer círculos com o incensório como os de uma roda gigante. Fez um ar de riso, porque funcionou bem. Era-lhe menos cansativo, eficiente e divertido. Mas o revés da sorte mandou-lhe recado: a peça ritual, que em muito se parecia com uma chaleira de chimarrão, desprendeu-se da correntinha e foi cair com grande estrondo em cima do armazém. Dois quilos de puro ferro fumegante. Havia fiéis que, do final do cortejo, juravam ter tido uma visão de arrebatamento espiritual, tamanha a esteira de fumaça, ruído e brilho que produziu o lançamento daquele meteoro esotérico. Sem ação diante daquela visão quase profética, alguns se ajoelharam contritos e esperaram pelo pior. Era coisa de Deus ou do diabo? Isso todos iriam ver em seguida.

O impacto fez um rombo no telhado e um vulcão ficou ativo dentro do sótão do velho prédio. O buraco fumegava semelhante chaminé e dele saiu um homem fumarento com um saco cheio de coisas às costas tilintando desordenadamente. Correria na procissão; "desçam o homem do telhado". Quem era, quem não era? E o turíbulo, como fica? Logo depois, e graças à polícia, o equipamento litúrgico já estava incorporado ao cortejo, mais amarrotado e com o pito já apagado.

Arãozinho, contudo, não estava mais ali. O sermão ia ser grande. Então começou a arrumar as roupas na mochila para ir para a casa da avó na Terra Fraca. Não deu tempo. Porta adentro entrou a mãe, que foi perguntando:
— Arão, como fizeste aquilo?
— Aquilo o quê?
— Incrível, hás de ser mesmo um padre. Quem, senão um iluminado, iria adivinhar que o ladrão da igreja estava escondido no sótão do armazém?
— Oh não! Por que me persegues, encosto?

Um comentário:

Anônimo disse...

Primeiramente, parabens pelo blogue. Como é bom cair num blogue com textos ficcionais. Peço permissão para linka-lo. Caso seja contrario, favor avisar.