quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

SAI DESSA!

Humberto Ilha
Não posso deixar de falar nas coisas que ouço. Algumas, de tão cabeludas, me deixam confuso e sem ação para rebater as declarações de descrença que sou obrigado a ouvir. O que vou relatar aconteceu na subida da Serra. Zé Amaro adoecia grave e não batia a caçoleta. Naquele vai-não-vai há um mês, a teimosia em permanecer vivo era desaprovação geral. Há tempo andava com aquele ar de quem morre em breve, mas morrer mesmo que é bom ele não morria. Orgulhoso empedernido que a todos contrariava e aborrecia, fincava pé nas convicções inarredáveis e dali não se movia. Além disso, era metido a valentão; mas isso era só de boca. Coitado, talvez quisesse viver mais um pouco além do pouco. Porque a vida, mesmo longa, é muito curta. Homem de muitos pecados e pouca água benta, maltratava dona Alfreda e ainda vivia de caçoada com as outras. Além de avô amargo era um atleta dos abismos da vida. Assim fazia para lá ficar enquanto concebia planos inconfessáveis. Havia descoberto que devia praticar mais a beira do abismo. Ousar mais, ir lá onde o medo tritura a coragem. Sem freqüentar o limite, sem esgarçar a dor, não conheceria a substância de uma vida insolente diante do medo. Para, quando aquela hora chegar, caminhar de olhos fechados até o precipício que o tragará. Porque a morte é a morte e a quem a terra entulhar, nunca mais o largará.
Com os anos a patroa havia acumulado muitas contrariedades advindas dele. Agora, diante da morte do marido, lembrava da brigalhada que ele aprontara por conta de um zelo em vida. Ela havia comprado dois terrenos no cemitério. Um para ele e outro para ela. O agora moribundo não concordara ser enterrado num só lote, se um dia — claro — largasse a casca. Os que ficassem haveriam de sepultá-lo sozinho e no meio das duas vagas que ela comprara. Tinha mal-morrer e mal-dormir. Quantas noites ele se atravessara na cama deixando-a de fora? Nos finais de semana era certo acontecer. Mamava misturado de conhaque, vinho e funcho para depois ficar entregue aos urubus. Ela que não deixava, embora dele colhesse estranha gratidão: "Vá dormir no quartinho, nega". Para não levar adiante o rolo, ia concordando. Fosse ela encarregada de enterrá-lo o serviço seria feito como planejado, um no ladinho do outro. Se contrário, que ele fizesse como quisesse, pois já estava morta mesmo. Não queria se ocupar do furdunço antes da hora. Prática, Alfreda alinhava os ouvidos no vento e nada mais entrava ali que não quisesse. Antevendo o velho esticar o pernil já dava mostras de sentir os percalços da viuvez. Quanto desejou isso a ele, o luto. Quanto desejou morrer antes do companheiro; pelo menos ia descansar. Mas parece que a vez era do teimoso. Ele é que ia para a sombra.
Diante da prolonga, a torcida pressionava e bradava dolorosas nênias em silêncio: "esse velho que não morre; basta desgraçado; vai em paz, estrume". Em verdade, desde que adoecera e ficara grave, não mais se ouvia em casa os rugidos de luta que sabia produzir. Não se escutava mais os gritos ferozes de ameaças e nem seus queixumes tristes. Muito menos mais se ouvia o estalar do ameaçador relho de couro cru no cano da bota preta. Até um fantasma vestido de mortalha roxa deixou de aparecer na sala. Daí que seu Régis, um barbeiro-farmacêutico, sugeriu se lhe desse boa colher de graspa. "Mas isso só com a ordem de dona Alfreda" — que estava ocupada na cozinha. Chamada, fez o que tinha de fazer: trancou o nariz do marido e forçou o líquido descer goela abaixo. A dose fora excessiva, disseram depois. O homem branqueou, fixou os olhos na esposa, careteou um pouco e defuntou. Era o que faltava para o desafogo do entorno doméstico, que bem não era uma família e sim um ajuntamento, tamanho o desprezo pelo extinto, agora sem mais proveito. Quanto alívio lhes trouxera aquela unção tão incomum. Cochichavam que o derradeiro trago dera-lhe o descanso da sua amotinada alma.
Haviam de tomar conta do morto. Ninguém melhor que o compadre. "Chama o cabo Dourado" — um corneteiro do quartel e cúmplice das boas farras do finado. Quase um profissional do luto, aos que partiam se oferecia a dar banho, vestir o terno, amarrar o queixo bem amarrado, tamponar tudo, deitar na essa, juntar as mãos, atar os pés, acender as duas tochas, encomendar o corpo, ler trecho próprio da bíblia, providenciar a certidão, combinar o enterro e executar Silêncio junto à cova. Sensível, não conseguia tocar a música sem que lhe escorresse sentidas lágrimas pelo rosto. Era raro fazer, mas, considerando o renome do falecido, finalizava o concerto com o terceiro movimento da Marcha Fúnebre de Chopin. Ali ele se perdia nos caminhos da arte incompreendida. Alguns achavam aquilo luminoso, mas a maioria não gostava e ia dando o fora diante do agouro saído daquela trombeta do anjo vingador. Tudo isso o velho cabo fazia como se procurador do além. "No meu fraco pensar" — dizia — "um sepultamento é um ato comunitário para recomendar a alma a receber a graça divina. Para harmonizar — pela mediação da cabocla Jurema — o ambiente de dor que o finado deixa. Para consolar a família a receber os desejos de leve luto. Um velório seguido de sepultamento" — ensinava — "é desafio que dura o dia inteiro". Concluía: "enterrar com dignidade um e consolar os parentes que um dia também irão, pois disso ninguém escapa". Havia um cunhado metido ali que resmungava muito; fazia tempo que não aparecia. Naquele dia apareceu com um crucifixo acorrentado no pescoço, o agourento, para recomendar que do morto nada mais se falasse. "O que ele fez, está feito; a conferência dele agora é com Aquele-lá-de-cima; e tem que enterrar logo o corpo antes que comece a feder".
A vizinhança começou a chegar e dona Alfreda botou de lado o desânimo para providenciar assistência aos amigos e parentes que vinham de lugares distantes para prestar tributos ao finado. Café preto, rosca de polvilho, pão de casa, geléia e licor de butiá. Tão rápido preparou a mesa que se desconfiava que havia preparado tudo antes do marido morrer. Vez em quando algum parente vinha beijar a testa do branco defunto. A reza do terço não parou até a meia-noite, quando a maioria foi dormir.
Dia amanheceu, galaria cantando há muito, e a tampa do caixão já ameaçadora encostada na parede da sala. Chegaram mais pessoas e mais tumulto. Mas o corneteiro botava ordem em tudo. Conhecia o ritual mais que ninguém. Marcado para as onze horas, resolveu que o sepultamento havia de ser antecipado, pois o ribombo de trovoada vindo dos lados do Morro Grande deixava todos assustados. Trovão vindo daquelas bandas era certeza de muita água. Com sorte daria tempo para o procedimento. "Enterro debaixo de chuva era uma coisa desventurada" — dizia.
O cortejo seguia apressado com o caixão carregado por seis homens. Dois mais traziam os cavaletes de descanso. Mas havia uma ponte no meio do caminho. No meio do caminho havia uma ponte que dava susto nas pessoas. A bem dizer não era sequer um pontilhão e sim uma pinguela improvisada, uma estiva. Quando chegaram ali já chovia um bocado. Tudo liso, o chão, as alças da urna, a ponte, os sapatos. A segurar a caixa mortuária, somente dois homens iam transpor a carga: um na cabeça e outro nos pés. Um peso enorme daqueles tinha que ser para dois dos bons; acostumados a fazer força.
E dê-lhe chuva e mais chuva. O riacho enchia rápido. Um dos que seguravam a urna — Mané Caetano, que também atendia por Graxaim — usava sandálias de dedos e se equilibrava andando de costas em cima da pinguela. Ninguém vai de retro calçando sandálias sem que arrume confusão. É no que dá: perdeu o calçado, parou para enfiar o pé e não mais se reachou. O da outra ponta — um tal de Quiça — queria andar e empurrar. Daí que o de costas corrupiou no tronco liso e levou todos para dentro do bueiro. A caixa escura bateu forte no passadiço e caiu na enxurrada. O defunto foi de borco para o lado oposto. Efeito dominó, um foi se agarrando no outro e todos para dentro do rio. Não foram poucos os esbarrões, cabeçadas, gritos e encontrões. Eunice, moça com nome a zelar, caiu focinhada na lama aparecendo-lhe a calcinha de saca branca que a mãe lhe fizera. Recompôs-se rápido, mas deu para ver a logomarca: Farinha de Trigo Aymoré, Marca Registrada. Isso e mais a estampa de um indomável silvícola com uma pena atravessada no nariz. Posteriormente, quando ela aparecia nas domingueiras, como zombaria, os rapazes passavam o dedo indicador entre o nariz e o bigode lembrando o adorno indígena. Não suportou; de tão humilhada foi morar na capital. Isso ela não merecia, pois que era mulher de valor, com grande capacidade de suportar situações-limite, com paixão de viver. Provou-o ao longo de toda sua honrada vida. Era dessas pintadas com tintas fortes.
Salva esse, puxa aquele, empurra pra cima o outro, retira o defunto. "Onde está o morto?" A torrente levou. Os homens no rio de transbordo a mergulhar, a procurar o corpo. Duvidoso de crer, mas o falecido conseguiu ficar engalhado por um braço na margem. Fosse pelos acompanhantes, Zé Amaro se perderia naquela inundação. Parece que seu instinto de preservação ainda estava bem vivo. E com isso acabou salvando a cerimônia. Aparece novamente o cabo Dourado, deita o homem no ataúde e prega a tampa com uns pregos enormes ruminando: "Fica-te aí, encrenqueiro". Virando-se para o coveiro: "toca a sepultar de uma vez, porque este negado não está cooperando".
Anos depois a esposa é que se foi. Então começaram a preparar outra cova ao lado da sepultura do marido. Dourado era homem acostumado com os assombros daqui e do além, mas naquele dia por pouco ele também não foi dançar nas nuvens. Com os olhos fixos dentro do buraco, mastigando incerteza, viu que a carcaça de Zé Amaro estava atravessada no terreno ocupando duas vagas, bem do jeito como queria. Ruminou com meio sorriso: "Velho teimoso!"

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