sábado, 3 de janeiro de 2009

SANTA ANA

Humberto Ilha
Viera do sul e lá deixara a família, até que arranjasse local de morar. Longe da patroa, começou a procurar sarna. Não devia; esposas que amam e se mantêm decentes deviam merecer blindagem contra traição; e ainda por cima, dois filhos de encanto. Tinha tudo o que um homem queria para ser feliz. Mas parece que isso não lhe bastava, o faminto. Queria, sabe-se lá por que, dar a mão ao capeta e caminhar de olhos fechados até a beira do buraco que, impiedoso, tragá-lo-ia. Sabia disso, mas ia chafurdar na lama assim mesmo, o excomungado.

Na hora de sair ficava arrebitando o bigode já grisalho diante do espelho. Touceira tão vasta que passara da corpulência permitida pelo regulamento militar, em formato e dimensão. Tanto zelo vinha-lhe da convicção de um finado reúno que não dispensara tratamento menor ao conjunto barba e bigode, até ganhar fama de sedutor nos salões nobres da nova República que acabara de proclamar. No cofiar de ornamento tão perfumado vinha-lhe ainda a certeza de que amealhara mais alegria que dor de cabeça.

Há dias elegera um destino certo de sedução: o cinema. Minto: a moça do cinema. Depois de muito subir, descer, espreitar, rondar e pesar cravou a mira no único cinema da cidade. Fizera toda essa aproximação como um franco atirador em missão. Nisso era competente: mandar bala nos outros. Tanto que ensinava os companheiros recrutas. Mas nunca dizia que era para atirar nas pessoas; não, era para atirar no alvo. Decerto era para se embromar, pois jamais estivera numa situação real de confronto armado. Isso lhe passava pela cabeça, mas muito de longe. Enquanto o inimigo não aparecia, ele queria rosetar. E ninguém melhor que a moça das balas, que era quem queria abater. Mas ela já estava de sobreaviso, porque apesar de mulher nova não precisava que lhe ensinassem uma coisa dessas. Nem adiantava ele vir com aquela tapeação sobre seus filmes preferidos que ela já lhe percebera as dissimuladas intenções. "Então não me respeita, diacho? Não se enxerga?"

O marido, dono dela e do cinema, também sacara tudo. A tentativa de encanto para cima da moça era encorajada por algo nebuloso na cabeça de Santa Ana. Será que era porque o marido tinha um bigode como o dele? "Se ele usa é porque ela gosta", cogitava. Talvez fosse apenas a atração crescente que tinha por ela, que encurralada, quase não podia negar-lhe o assédio. Talvez fosse pela delicadeza do marido que, dono de um estabelecimento público, quase tinha obrigação de tratá-lo amistosamente. Era certo que Santa Ana percebera algo no ar que o encorajava a prosseguir com a sedução. E para ganhar a esposa, conjuminou, tinha que partir para cima do marido, um senhor de idade em vista dela, tão moça ainda. Tinha de conquistar primeiro o velho. Deu então jeito de encontrá-lo no mercado, na feira, no banco e no bar; ganhou um amigo.

Numa noite de pouca gente nas ruas Santa Ana estava mais adulterino do que o rabudo. Quando a sessão começou, ele levantou-se e foi comprar chicletes. Planejou pagar com dinheiro grande e provocar enguiço no troco. Ela devolveu e disse para ele pagar outra hora. E no pegar de volta, segurou e beijou-lhe carinhosamente a mão. O roçar do bigode na mão da mulher foi fatal. Olhou fundo nos olhos de Santa Ana para dizer: "Adoro homens de bigode, sabia?" Com um sorriso de quem acabara de inventar o amor, Santa Ana disse que ia acabar de ver o filme; ia executar a segunda parte do plano.

Final da sessão, pessoal saindo, Santa Ana ficou por último. Veio o proprietário:
— Vamos embora?

Ajudou a ferrolhar a porta e passar trancas nas janelas, num agrado de má intenção. Deu certo, o homem começou puxar conversa e falar do frio. Ela cochichou algo e o outro convidou Santa Ana para tomar algo quente em casa; uma sopa, um aperitivo.

O apartamento bem organizado, mas ela pediu que não reparasse na bagunça. Ficaram os dois na sala enquanto ela sumia lá para dentro. Já estavam no segundo amarulla quando ela passou de roupão branco sorrindo. O homem convidou para assistir um pouco de televisão. Quando ele entrou ficou encantado com tanto conforto que havia no dormitório do casal; até perfumado o quarto era. Ela deitada em baixo das cobertas de olho nas Olimpíadas. Foi um rebuliço na cabeça de Santa Ana.

— Senta aí — mandando-o sentar na cama ao lado da esposa.
O velho acomodou-se ali fingindo atenção na TV; ela no meio. Antes, ele tirou os sapatos e enfiou-se nos cobertores. Santa Ana olhou para ela, que não tirava os olhos da transmissão. Olhou para o outro, que o mandou se cobrir porque o frio era de amargar. Então Santa Ana deslocou-se direto para o céu.

A moça não tirava os olhos das Olimpíadas. Roupão jogado, cabelo revolto, pegada firme, regata suada e ela torcendo na final dos cem metros nado livre. O velho de olho grudado na prova, mas nada via do que se passava na televisão; história dele! Desconfiança e medo, pistola na mão por baixo do travesseiro e ela finalmente solta o fôlego trancado para medalhar o recordista.

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