quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

OMBRO, ARMAS!

Humberto Ilha

Quando cheguei à Praça XV o militar já estava lá, vendo tudo de cima. Com certeza madrugara para conseguir o melhor lugar. No carnaval também estivera naquele local bizarro. Sabe-se lá como se pusera tão no alto. Desconfio que deva ter sido com a ajuda do colega ao lado. Sozinho é que não deve ter sido. De se imaginar como desceria dali. Talvez fizesse isso numa hora sem alguém por perto. Quadro insólito deveria ser ele descendo daquela peanha de pedra. Por mais que se colocasse elegante deixaria transparecer estampa imprópria na hora de colocar um pé aqui e uma mão ali para se manter longe de desabar. O temor de perder a compostura com certeza trai-lo-ia diante das réstias iluminantes do sol da manhã. O gosto de estar no alto, no andar de cima, parece próprio dos que nada tem a esconder. Dos que nunca fracassaram no desempenho da capacidade geral para a cooperação social.

Quanto a mim, olhar o desfile do alto era um desejo recorrente. Muitos subiam em árvores, se apinhavam nas sacadas, se acomodavam em cima de muros e edifícios. O Dia da Independência era o verdadeiro teatro da cidade. A cada ano se extraía nova linguagem social. Uma poesia ainda não falada. Uma compreensão ainda não assimilada, não aprendida, não expressada em anos anteriores. A cidade se abraçava para o rito do Sete de Setembro que só sabe ser majestoso quando acontece nas ruas.
Cedo, muitas vezes eu chegava para o desfile conseguindo bons lugares. Ficava ali, na corda, aguardando durante horas, olhando as pessoas chegando, conversando, se acomodando. Contudo, à medida que o momento se aproximava, era tragado pela multidão e acabava vendo pouco. A me contentar, apenas o som intenso do evento. De se ver, somente as pernas dos que passavam. Conhecia prazer olhar o trabalho dos narradores, repórteres e auxiliares das emissoras de rádio. Ocupados em transmitir e preparar equipamentos, davam ares de que não tinham brecha na agenda para perceberem a muvuca no entorno. Iam e vinham, como bichinhos, não enxergando ninguém. Ainda que numa estudada aparência, era a elite: Antunes Severo, Acir Cabral, Souza Miranda, Eugênio Luiz e José Valério. Um time e tanto, mesmo com a ausência do Roberto Alves, que ainda era pintinho na Rádio Anita. Naquele dia não estavam todos ali. Mas reconheci o João Ari, único trajando vistosa calça faroeste com a bainha dobrada para fora, auxiliado nos cabos de transmissão por ninguém menos que Cici, que muitos chamavam de Gambá e até de Oraci. Há esse tempo, eu havia concebido um poleiro para ser encaixado no alto de um poste e de lá tudo ver melhor. Um trambolho que nunca ousei construir. Mais-a-mais, temia que a polícia me arrancasse de lá a tapas. Era uma época em que o toque dos adultos ainda me era dolorido; tanto dentro quanto fora de casa.

Conferindo o retelho das nuvens, vi o oficial no melhor ponto. Num estranhamento o flagrei com a atenção voltada para o mar da baía sul, lado oposto ao da alameda por onde haveriam de passar as tropas. Homem grande, mais que o habitual, trajava gala, o que lhe dava um ar de distinção. Dos que eu já conhecera era o mais nobre, mas também o mais acobreado e o mais sofrido dos oficiais de toda a brigada. Pontes de Miranda decerto com ele aprendera que “sofrer não significava desviver, mas conhecer e sentir a vida.” Devia tê-la conhecido profundamente; a vida.

Revestido de luvas, dragonas, espada e quepe, trazia à mão vistosa luneta, que bem merecia ser insígnia de comando. Provável que para melhor fazer o reconhecimento do terreno, coisa bem a gosto de comandantes. Quase certo que divagava em recordações de campanha enquanto aguardava o passo grave dos irmãos de armas. Olhar no longe, parecia sobrepor ao mar seu vulto de fantasia para encaixar no ouvido, que é por onde quase tudo começa, o vento-sul com notícias de algum lugar conhecido. Dava mostras de que procurava localizar a ilha dos Ratos, a julgar pela posição do rosto virado para aquele rumo; mal sabia que agora já designada "do Carvão". Pareceu-me querendo entender o ambiente estranho daquela praça se sobrepondo ao miramar e ao mercado público com as pessoas, os escravos e as cozinheiras atrás de carne, farinha e pescado. Pensativo, nem se mexeu quando me agarrei à bainha de sua espada para erguer-me um pouco acima das pessoas. Fiz como já houvera feito antes, agarrando-me à generosidade dos bons para subir os lanços que precisava subir para aprender, ser útil e ver melhor. Fiquei bem colocado. Não tanto quanto o militar que, repito, supunha importante a julgar pela farda e o porte. No rebrilho do sol da manhã, parecia ter o austero rosto ornado por um bronzeado meio sorriso. Pudera, com a visão que descortinava não era de admirar. Fiquei encarapitado naquele granito que, de tão polido, parecia ter sido esculpido para ele. Bem me lembro que fiquei sem me mexer, sequer aplaudir, para não chamar-lhe a atenção. A despeito de muito me impressionarem as manobras das tropas terrestres, da ordem unida, dos veículos, das encilhas dos animais, das bandeiras históricas, dos galhardetes das pequenas frações e das ordens bem troadas dos comandantes, dele nada escutei que lhe traísse emoção. Nem mesmo quando o locutor oficial nomeava os heróis do passado e suas batalhas: Luis Alves de Lima, Antônio Sampaio, Fernando Machado, Felisberto Caldeira de Andrada, Farroupilha, Curuzu, Passo da Pátria, Tuiuti, Potreiro Pires, Linha Sauce, Curupaiti e Humaitá.

No chão, o som de fundo dos coturnos marcava os compassos dos dobrados que a banda executava. Tudo isso me deixava encrespado, do pé à ponta. Era aflição e alegria, tudo misturado. Meu coração parecia haver recebido, lá no oco, uma pastilha que permanecia fervilhando concedendo-me grande prazer. Ali, naquela atmosfera de patriotismo íntimo eu me consagrei a viver meu quinhão social em favor do Brasil pelo viés do Exército. E então fiz a escolha primordial da minha vida. Fiquei alucinado, palavra de honra.

Ocorreu-me perguntar ao respeitável oficial sobre as evoluções militares que iam acontecendo. Ele dava-me respostas convincentes. Num português impecável, lembro, disse que o mais importante trabalho daqueles homens ficava invisível no coração deles. Não havia dúvida de que estava diante de um patriota, longe de um daqueles cujo poder somente serve para mandar soltar e prender. Vi tratar-se de um cavalheiro, a julgar pela paciência no responder. Arrisquei saber de onde viera.
— De Nossa Senhora do Desterro, mas ainda jovem me apartei dos encantos da capital para cursar a Escola Militar da Corte. Trabalhei duro, guardei a fé no Brasil, lutei batalhas impossíveis no sul até a derradeira de sessenta e oito, que me levou o corpo que ora longe inverna.

Tudo falava sem que me olhasse. Não experimentei estranhamento, pois que tudo perguntava sem nele também colocar meus olhos. Com atributos tão singulares, seria alguém conhecido? Ainda uma vez gentil, saciou minha angústia interrogativa:
— Sou o sargento Kawahala, fotógrafo. O da estátua é o coronel Fernando Machado de Souza, herói morto na Batalha do Itororó contra Solano.

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