domingo, 8 de fevereiro de 2009

O REGENTE

(Texto ficcional inspirado no conto “O Artista do Trapézio”, de Franz Kafka)
Humberto Ilha
Um capricho nem sempre é encarado de boa vontade pelas pessoas. Contudo, quando advindo de um artista, parece que todos se empenham em compreender. Daí que, o mestre de quem falo, ordenara sua vida de tal maneira a permanecer dia e noite no coro da igreja enquanto durasse o tempo para o qual fora contratado para reger o coral. Assim fazia por dois principais motivos: um mandamento profissional de perfeição e um capricho que se tornava cruel. Não arredava pé dali de jeito nenhum. Todas as suas necessidades eram voluntariamente satisfeitas por intermédio da coordenação do presidente e da diretoria do coral. Os cantores se revezavam para que nada faltasse ao regente.

Esse modo de viver não criava dificuldades especiais entre ele e as pessoas. Mas o regente era caprichoso e cobrava-se muito quanto ao próprio desempenho. Sem embargo, não deixava por menos o desempenho dos voluntários sob seu comando despótico. Era um tirano, e ninguém lhe contava isso, pois, se numa hora era cruel e duro, em outras era amável e doce. Alguns lhe lembravam a semelhança de personalidade que tinha com Mozart. E, quando isso chegava aos ouvidos dele, arrancava-se-lhe um sorriso bonito de explícita vaidade.

Ele era assim, mas os padres e os diretores do coral o perdoavam, porque se tratava de um artista extraordinário. Além disso, era sabido que vivia assim para estar sempre em forma artística. Ele também gostava de estar sempre lá em cima do coro. Até o banho ele tomava numa banheira trazida para cima. A água servida era carregada para baixo em baldes pelos cantores numa hora de nenhuma atividade na igreja. Contudo, suas relações humanas estavam muito limitadas. Alguma vez ele se permitia conversar com alguém que não fosse do coral; que subisse um colega regente para conversarem longamente. Às vezes, papeava com algum operário que consertava o teto do templo, trocando com ele algumas palavras. Ou com a zeladora da igreja, que fazia a limpeza diariamente. Com os conhecidos conversava de longe lhes dirigindo algumas palavras gritadas, mas respeitosas, se bem que pouco compreensíveis. A não ser por essas ocasiões, estava sempre solitário.

Muitas vezes algum fiel elevava o olhar procurando ver quem tão maravilhosamente executava peças sacras. Mas nada encontrava a não ser o som do órgão, que enchia toda a igreja. Tampouco o regente sabia que estava sendo observado por alguém que lhe admirava a arte. Nos ensaios, dava verdadeiro show de impaciência com os cantores menos dotados de alguma virtude vocal. Chamava qualquer um à atenção, homem ou mulher, jovem ou idoso. Se o infeliz resmungasse alguma coisa, ele então migrava para a humilhação. A cólera sobressaía-lhe do peito para esquecer que era um cristão praticante. Usava termos, como voz-de-galinha, miado-de-gato, gata-no-cio, voz-de-caipira ou voz-de-machorra, para caprichar na degradação. Vangloriava-se de ter um ouvido superior ao de todos ali. Melhor, que era dotado de ouvido absoluto. Não restava nenhuma virtude para ninguém. As que o coral possuía estavam com ele, regente. Quando o coral se reunia sem a presença dele, seus membros consideravam-se um bando de quadrúpedes.

Com tanto ódio pelos erros dos cantores, ele foi fazendo, sem o perceber, que o coral minguasse. Quase ninguém se submetia a cantar com ele. A não ser alguns que o toleravam porque era um ser humano. Alguns lhe davam conselhos amigáveis para melhorar o tratamento com as pessoas. Contudo, ele não aceitava isso de quem quer que fosse. Proclamava que preferia ficar com poucos e bons a muitos e ruins. Os coralistas queriam tirá-lo da regência, pois não agüentavam mais tanto rebaixamento moral. Mas, como dito, os padres gostavam muito dele. As missas eram belíssimas com ele na direção musical. Tinha ele grande prestígio junto aos dirigentes da igreja, pois conhecia como ninguém o rito de todas as cerimônias.

Tanto fez o regente que, um dia, após determinar não admitir a ausência de quem quer que fosse a uma missa, os cantores — todos — se combinaram e deixaram-no sozinho na hora do santo ofício. Viu-se sozinho no coro. Não se deu por vencido. Tocou todas as peças sacras com raro brilho. Naquele dia não houve cantores. Somente o órgão e a voz do povo. Ficou bonito e diferente. Mas o regente não aturou aquela desfeita. Chamou o pároco e contou-lhe o sucedido. O padre quis relativizar a atitude dos coralistas, eis que tinha inúmeras queixas contra o regente. Mas o maestro não aceitou. Disse que a partir daquele dia queria receber honorários dobrados. O padre ponderou não ser possível, que a Igreja vivia da entrega voluntária de cada fiel. Mas o dirigente argumentou que os coralistas deviam fazer um mutirão para arrumar o dinheiro que estava pedindo. Então o padre pediu para ele se lembrar de que estava dentro de uma igreja. Foi aí que o regente se deu conta do embaraço em que os coralistas o deixaram. Estava realmente sozinho. Acabava de levar uma admoestação do próprio padre, seu admirador. Então caiu num choro convulsivo de quase meia hora. O bondoso padre também reconheceu que havia exagerado na dose e lhe pediu desculpas. O regente o desculpou, mas não parava de chorar. Estava inconsolável. Foram chamados mais dois padres que não deram jeito na situação. Então o pároco chamou a mãe do regente. Quando ela chegou, ele se atirou em seus braços. Ela o abraçou carinhosamente e sentiu as lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto. Estreitou seu rosto infantil molhado entre suas ternas mãos, fechou os olhos como num sofrimento sincero e balbuciou: “Meu filho, vamos embora. Quando você fizer doze anos, prometo trazê-lo de volta”.

Um comentário:

Humberto Ilha disse...

Gostei muito do pouco que li do seu blog. Abraço fraterno do Humberto Ilha.