sábado, 5 de dezembro de 2009

Um urubu de Palhoça

O que era certo é que a ave passava pelo meu quintal uma vez por mês deixando no céu um sentimento de mau agouro. Penso que era por causa do seu estranho paladar: comia o lixo do mundo. Quando chegava, fazia pouso em cima de um poste. Então eu concebia que me cumprimentava de longe. Dali, voava na direção do INPS do Estreito para receber a aposentadoria a que todos têm direito depois da Constituição de 1988. Não chegava a falar, é claro, mas grasnava e dava para entender que de lá ia passar no Ribeirão da Ilha, pois que tinha uma namorada da mesma idade; quase cem anos. Antes de sair de casa já tomava um comprimido azul para não ser surpreendido pelo fantasma da inoperância. Ficava todo agitado, cuspia na esposa e ia para o abraço pensando: “o que vier eu encaixo”. Nem usava proteção porque urubu não é hospedeiro do malvado HIV.

Um dia ele caiu do poste e foi parar no meu gramado se batendo. Fui acudir e vi que respirava com dificuldade. Havia também um pequeno sangramento embaixo da asa. Pensei em levar o bicho para o veterinário, mas me dei conta do absurdo preconceito. O que as pessoas não iriam falar de mim, vendo-me entrando porta a dentro aflito com um urubu nos braços? Fazer respiração boca a boca estava descartado. Não suporto bafo azedo. Fiquei penalizado com a situação da ave e tentei com ela falar. Olhei diretamente em seus olhos, como Deus costuma fazer conosco, e perguntei como poderia ajudá-la. Quando digo isso ninguém crê, mas o urubu pediu para deixá-lo descansar um pouco, pois havia acabado de doar sangue no laboratório do Ministério da Agricultura. Deixei-o numa sombra e fui ao Banco, na certeza de que partiria em seguida. Ao voltar, vi que ele estava lá de olhos arregalados esperando por mim. Deu-me a impressão de que falou que não podia voar; que estava traumatizado com a queda e que perdera a coragem. Peguei-o entre minhas mãos, e falei bem perto dele: “Você pode voar; você vai voar; você precisa voar”. Coloquei-o no chão e bati palmas gritando: “Vai; vai”. O bicho olhou para mim, virou o bico para saber a direção do vento e levantou o desarrumado vôo de volta para casa.

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