sábado, 16 de agosto de 2008

Um conto do Mar


ADEUS, LUCIMAR
Humberto Ilha
Houve uma briga na cozinha do Annita enquanto navegava nos limites da costa catarinense. A embarcação fora um navio de guerra americano. Agora, adaptado, era um misto de carga e passageiros da Empresa Nacional de Navegação Hoepcke. Haviam se atracado em luta corporal um dos copeiros e o primeiro motorista de bordo. É que o veterano auxiliar de cozinha cumpria com zelo o regulamento para as rotinas dos serviços de bordo. Já o das máquinas, além de novo na empresa, era negado a obedecer ordens. Tinha o costume de trabalhar para o chefe e não para a empresa. Fizera carreira em pequenos cargueiros e em barcos de pesca.

Uma hora antes de aportarem Duarte já estava demitido. Consta que fora até a cozinha tomar café e fizera uso de um copo ao invés de uma xícara. Mais ainda, mexeu o açúcar com o cabo de um garfo quando deveria usar uma colherzinha. Fora admoestado pelo taifeiro diante de colegas e não gostara. O comportamento impróprio do copeiro deixou-o furioso, mas conseguiu conter-se. Entretanto, dissera ao outro que na próxima ocasião ele o faria engolir os insultos. Duarte bem sabia que acabara de proferir uma ofensa maior do que as que havia escutado. O taifeiro mordeu a isca e partiu para cima dele esbravejando:
— Olha aqui, Linguado, vais ter que me encarar é agora.
O maquinista conteve-se mais um pouco. Era necessário provocar mais raiva no outro até que chegasse ao ponto ideal de atacá-lo; até que ficasse totalmente sem controle emocional. Antegozando um ódio desmedido e represado cutucou quase sorrindo:
— Não brigo com mulheres. Muito menos com as que cozinham para mim. Tenho medo de ser envenenado.
Foi a gota d’água; um talonaço de faca parou na curva do braço de Duarte que rapidamente liberou toda a sua ira. Foram dois socos potentes direto no rosto do colega, que girou por cima de um corrimão para despencar de dois metros. Amontoou-se como um saco de areia no piso de ferro fraturando as duas pernas. Colegas passaram trabalho para deixá-lo imobilizado, pois daquele jeito ainda queria agredir o motorista. Era bom de briga, mas não o bastante para aquele homem de punhos de aço.

Dia seguinte Linguado apareceu a bordo trazendo pela mão um menino de cinco anos com os olhos muito azuis. Foi ao camarote que ocupara até o dia anterior e esvaziou o armário onde guardava as coisas. Ao passar pela escada de onde arremessara o copeiro proseou-se para o filho: “Foi daqui que joguei o canalha”.
Despedindo-se do Comandante perguntou pelo homem que surrara. Soube que estaria no gesso durante um mês e que seria remanejado para trabalhar no estaleiro da Empresa, pois aquela não era a primeira briga que arrumara. O Capitão lamentou a breve estada do maquinista sob seu comando e os dois se despediram. Do trapiche lançou um olhar de tristeza para a melhor embarcação que jamais trabalhara.

Linguado era um apelido que Duarte odiava porque tinha origem num detalhe físico. Quando ainda com dezessete anos envolvera-se num quebra-pau para defender o irmão contra onze e dali saiu com um aprofundamento de crânio na região frontal esquerda. Isso fez que o olho ficasse saltado da órbita. Não tratava ninguém por apelidos porque já ele sofria com isso. Era um homem reservado e metido com seu trabalho solitário nos porões. Era bem casado com uma mulher vinte anos mais jovem, o que também ensejava alguns gracejos dos desavisados. Além disso, era pai, razão pela qual enfrentava o mar pavoroso ainda que não soubesse nadar. Aspirava levar uma vida mais folgada em terra. Contudo, vivia embarcado, pois era onde ganhava mais. Ansiava novamente constituir família, já que era viúvo. Olhava para os dois filhos e lembrava-se dos outros dois da anterior união que haviam falecido com menos de cinco anos. Perdera uma família e queria valorizar a que possuía. Para tanto lutava com garra e não rejeitava empreitada por mais risco que houvesse de correr.

Desempregado, ficou aborrecido por uns dias. Em contrário, estava mais perto da família que tanto amava. Tinha confiança de que nem precisaria sair de casa a pedir emprego. Logo viriam convidá-lo para se integrar a alguma equipagem. Foi o que aconteceu. Em cinco dias tinha duas propostas; ou um barco de pesca, ou um cargueiro com estrutura de madeira de nome Lucimar, cujo armador era sediado em Santos. Conversando com a esposa decidiu-se pelo cargueiro. Viajou naquela mesma noite a bem de providenciar o embarque. O navio estava em reparos de estaleiro, mas isso não o impediu de começar a trabalhar. Havia muito a fazer nos dois motores e nos geradores de energia. Assim, manteve-se ocupado o tempo todo. Era dessa forma alienante que procurava sufocar uma raiva interna que não compreendia por que estava nele. Sua auto-estima era baixa demais para se relacionar sem brigar com as pessoas. Amava o conflito, o choque, a colisão, a desavença, as ameaças e não afiançava a paz, que acreditava ser a súplica de fracos, velhos e mulheres. Era um brigão nascido e incorrigível. Quanto mais tensão no ambiente, melhor. Não sabia viver no sossego. Desconfiava da paz, da harmonia entre as pessoas, da ausência de conflitos. Não acreditava que um ambiente tranqüilo ensejasse o respeito entre as pessoas. Para ele, paz era a existência de respeito e não a ausência de guerra. Postulava que o respeito era via de mão única, porquanto inútil esperá-lo espontaneamente de alguém. Ninguém respeitaria nada se não fosse compelido a fazê-lo ao talante da lei ou do trabuco. Essa quimera não existia nem nos mosteiros. Bradava que a natureza do ser humano era perversa e tinha de ser contida na marra. Ficava desconfiado quando estava tudo em paz, pois alguém estaria se aproveitando da situação. E com ironia lembrava que criança quieta ou está fazendo arte ou cocô. E lá ficava ele, perdido em pensamentos em cima dos motores.

Em oito dias estava navegando para o sul em pequena cabotagem, mas nunca o Lucimar chegaria lá. A barlavento de Florianópolis o navio enfrentou mau tempo e uma onda gigante o afundou com todos a bordo e mais uma carga de cento e vinte e duas toneladas de tubos de ferro fundido para rede de água. A notícia da tragédia noturna chegou aos ouvidos da esposa pela tarde. Dirigindo-se ao Cabo Submarino pediu confirmação do ocorrido. O radiotelegrafista confirmou o naufrágio no começo da madrugada. Então ela perguntou se havia uma lista de desaparecidos. O homem informou que todos a bordo haviam morrido. Ela negava-se a receber pêsames de parentes e amigos. De tanto ela insistir, o radiotelegrafista solicitou a última relação dos tripulantes do barco quando deixaram o porto de Itajaí. Nela não constava o nome do marido. Ali fora desembarcado e já estava navegando no Olímpico com destino ao porto de Santos, levando uma carga de tubos de ferro fundido para rede de água. Comentando com o Chefe de Máquinas, Duarte revelou não entender porque a mesma carga andava de um lado para outro. Só isso já era motivo de descontentamento interior.

Fora desembarcado do Lucimar para continuar vivo no Olímpico. Tudo porque se atracara em luta corporal com o taifeiro do Lucimar após ser admoestado na frente dos colegas. Com as mãos sujas de graxa se atrevera a tomar café numa branquíssima xícara de porcelana destinada aos oficiais e visitantes ao invés de fazê-lo num copo de vidro tosco, como era o costume a bordo do Lucimar. Continuava sem entender os regulamentos.
Foto: Acervo do Intituto Carl Hoepcke.

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