sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Conto


POR FAVOR, NÃO DESLIGUEM AS LUZES DO NATAL
Humberto Ilha
A julgar pelos enfeites dava mesmo para sentir a presença do espírito do natal todas as vezes que — de manhã — o homem passava defronte àquela casa. Imaginou que, se toda iluminada à noite, seria uma exposição de encantamento. Sentia uma trepidação ancestral na época que antecedia o natal. Talvez em razão de alguma lembrança do tempo em que ainda morava com a família. Talvez de uma reminiscência dos irmãos, quando se deliciava com a alegria da espera do natal. O dia do natal passava muito rápido e cheio de compromissos, de horários. O bom era esperar o dia de natal. Sonhar com o que ia acontecer. A chegada de um parente que estava longe. O cartão de boas festas do outro que não queria ser chamado de esquecido. De voltar a encontrar alguns que moravam fora e estavam pela cidade. De receber o décimo terceiro para desafogar um pouco a forca do banco. Das vitrines das lojas com motivos mais que próprios para mais vender. Do interior dos shoppings com aquela decoração profissional, muito embora vinda do frio metido ali de xereta.

Os anos vão passando e as pessoas vão querendo enfeitar suas casas com esses motivos natalinos. Mangueiras iluminadas desenhando pinheiros estranhos na frente dos condomínios. Árvores enrodilhadas pelas luzinhas tão simpáticas. Acende-apaga-acende-apaga, minha mãe adorava isso. Puxa o fio para cá, estica para lá a fieira iluminada, isola o desencapado para não dar choque. Os shoppings tão mais encantados por dentro. As casas tão mais bonitas por fora. O natal no sul vem meio de esguelha no simbolismo dos enfeites. Mas não há como negar-lhe a alegria proporcionada, as lembranças do que já passou e a esperança do que vem por aí. Quem decide enfeitar sua moradia com motivos festivos do natal do verão já vive o clima dentro do peito alegre.

O homem insistia em passar defronte àquela casa para nela ver alguma mensagem ainda não decifrada. Deixou de passar um dia e sentiu um aperto no coração quando já estava deitado. Desde então dava sempre um jeitinho de passar lá bem devagarzinho. Mesmo durante o dia, com as luzes apagadas, a decoração lhe completava algo que residia inacabado no peito. Se por fora era tão reluzente, por dentro aquela morada devia ser um brinco cintilante. Na pilha de Mario Quintana até diria: "Que triste os caminhos se não fora a mágica presença das luzes natalinas"
[1]. De mais a mais, por uma intuição secreta, afirmava que a escuridão era o sol dos mortos. "As ditaduras e as assombrações agem no breu da noite", recitava com os dedos já cruzados como querendo afastar tudo que viesse das sombras.

"Hoje passo lá e peço para entrar, para ficar ali um pouco com a família. Afinal, o espírito do natal é isso. A fraternidade entre as pessoas mesmo que não se conheçam". Foi lá e viu muita gente diante da casa. Deviam ser parentes se reencontrando, amigos se dando abraços e mãos. Viu até lágrimas sinceras. Desceu do carro e entrou como se fosse esperado. Antes lançou um olhar para a decoração externa e o jardim todo iluminado com as crianças correndo suas brincadeiras. Quando entrou percebeu o interior da casa também todo iluminado, mas não havia as risadas dos que estavam fora. "Estão celebrando novena", pensou. E parecia mesmo, porque estavam todos de mãos postas e ajoelhados no meio da sala. Quatro tochas ardendo grave e um capelão puxador de reza em latim (essa é boa, em latim); se bem memorizado, tanto mais fajuto. Então viu quem reinava ali dentro: um silêncio fúnebre que acolhia respostas jaculatórias de encomendação da alma de alguém cujo corpo jazia no meio de luzes de natal.

[1] “Que triste os caminhos se não fora a mágica presença das estrelas”. (Mário Quintana)

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