terça-feira, 5 de agosto de 2008

Crônica da noite





SOU, QUEM NÃO É?
Humberto Ilha
Paulo Ovídio tinha visível talento com as mulheres, que não o deixavam em paz. Abandonava os cursos que iniciava por falta de freqüência às aulas. Inteligente e galanteador, isso o tornava querido de todos. Andava na moda, em se tratando de roupas e carros. Lembro das respeitáveis cuecas Ban-tan; duráveis, sempre brancas e confortáveis, mas chamadas de samba-canção pelo contraposto às do estilo Zorba, o Grego. Foi só Anthony Quinn aparecer no filme em traje sumário para que o brasileiro descobrisse que usava um forro medieval a cobrir-lhe as partes. PO, ao que eu saiba, foi o primeiro da minha geração a se deixar ver usando aquela minúscula calcinha, como chamávamos a moderna peça. De primeiro fizemos um estardalhaço com ele. Depois todos aderimos ao novo tipo de roupa de baixo. E também não era mais aquela calcinha vitoriana. Era esquisita, confortável e as mulheres aprovavam, mormente se nelas houvesse alguma mensagem ou estampa homenageando o amor.

Meu amigo era um romântico cheio de dúvidas existenciais. Sonhava com um lugar de fantasia onde: "Lá sou amigo do rei... Lá tenho a mulher que eu quero... Na cama que escolherei".
[1] Quantas vezes agüentei o mau humor dele com ele mesmo? Dizia-se um homem de cabeça aberta, mas um dia, chorando lágrimas sinceras, confessou-me um segredo que não conseguia guardar. Estava tendo um caso com a esposa de um colega de serviço. A sentença era dele mesmo: “sou um patife”. Não adiantava civilizar o delito; sempre tinha uma pergunta para sublinhar sua canalhice: “aonde é que vamos parar? O mundo está perdido pela devassidão e pela busca do prazer individual”. Dizia mais: “eu sabia que fazer uma coisa dessa era errado, mas como fui fazê-lo? Sou mesmo um canalha”. E eu, aderindo, para aliviar-lhe a culpa: “Quem não é?”

Depois, fui saber, a safada abandonou o marido tão correto e manso; caiu na vida. Passou a freqüentar a boate Chatanooga, garantindo clientes nunca vistos por ali. Depois foi para o nordeste, vindo a morrer nas mãos de um cafetão. Paulo nunca aceitou isso sem sofrimento. Visitava toda sexta-feira o inferninho onde ela havia brilhado na esperança de mitigar-lhe a ausência. Porque tinha propensão para o bem, dei um jeito de encaminhá-lo ao capelão do Hospital Militar que amenizou um pouco a dor dos pregos que se permitia cravar na carne.

Era um homem difícil de perdoar-se. Quando aparecia na boate para ter uma noite de alegria o que menos conseguia era ficar alegre. Sentia dó das vendidas e lá vinha a depressão. Então mandava forrar a mesa com cerveja para se refazer do ódio que sentia de si próprio. Depois, ficar embriagado e virar romântico. Na seqüência, virar macho. Queria a melhor menina do salão e encarava quem se atravessasse no caminho.

Naquela sexta, após assistir a uma apresentação de sapateado de um corpo de baile espanhol no Teatro Guaíra, resolvi passar na boate, reduto certo do Paulo àquelas horas. Entrei e senti o ambiente pesado. Procurei PO e o encontrei embriagado no meio das garrafas. Ele estava com o rosto machucado. A camisa aberta no peito deixava à mostra o abdome malhado cingido por moderna cuequinha. Quando me viu, abriu os braços e começou a chorar. Abracei-o e chorei junto, pois era uma lástima vê-lo daquele jeito. De fato ele era um amigo bom. Mas é nas ruas que a verdade mora. E a verdade é feia. E com ela moram os ruins e os bons. Convidei-o para terminar a noitada por ali mesmo, mas não:
— Se eu levantar desta cadeira vou apanhar muito mais.
— De quem?
— Do bigode atrás de mim. Disse isso apontando com o dedo mínimo o espelho a sua frente. Disfarcei e virei o acento da banqueta para ver melhor. Era um homem forte, um Golias medonho, e não vi bebida sobre a mesa. Falei que precisava ir ao banheiro e procurei o segurança da casa, que me alertou:
— O Paulo provocou esse gaúcho e já apanhou três vezes. Quando tudo parece que vai se acalmar ele fica na frente desse armário e mostra o que está escrito naquela cueca infame piscando-se todo e mandando-lhe beijinhos com o biquinho dos lábios. O homem está armado e todos aqui estamos com medo. Mas o gigante não está nem aí para nós. Quer bater mais. Agora que você chegou, vou lhe dar uma sugestão: cai fora. Deixa esse debochado aí que ele sabe se virar.
— Quero um jeito de tirá-lo daqui em paz.
— O Paulo não quer paz; quer briga e vai te envolver nisso. Portanto, cai fora já.

O funcionário tinha razão. Meu amigo era um galinho de briga sarcástico. Mesmo ensangüentado, miudinho, queria ir para cima do rival e zombar da cara dele. Mas era só um galinho, coitado. Como eu o abandonaria naquela situação? Nisso escutamos estardalhaços de quebra-pau. Corremos para o salão e vimos Paulo Ovídio no meio de uma luta injusta. Pensei em pedir trégua em nome da inferioridade física. Mas não deu tempo. PO foi esmurrado tão forte no rosto que rodopiou para se aninhar com grande estrondo por entre os pés das cadeiras vazias no canto do salão. E por lá ficou não se levantando mais. Então o homem chegou perto e viu que ele estava nocauteado. Pagou a conta e saiu. Para poder chegar até onde ele estava tive de arredar as cadeiras; vi que estava de fato estroçado. Chamei por ele diversas vezes e não respondeu. De repente abriu os olhos bem pouquinho com um sorriso sacana na cara inchada. Viu que estávamos somente nós dois e me disse:
— Fica quieto e faz de conta que eu estou desmaiado.
— Levanta que o muro foi embora.
— E a conta?
— Você paga, claro.
— Então me deixa ficar dormindo aqui.
— Paulo Ovídio, você é um cachorro sem vergonha.
— Sou, quem não é? Ih, Ih, Ih...

Disse isso já mostrando o recado na cuequinha: "Amo você".


[1] Trecho de "Vou-me Embora pra Pasárgada", de Manuel Bandeira.

Nenhum comentário: