quinta-feira, 21 de agosto de 2008

CADILHÁQUI

Humberto Ilha

Dos mecânicos do Bairro de Fátima era ele, de longe, o melhor; o Paulo Pavão. Mas parece que só tinha alegria quando fechava a oficina e se lavava com gasolina. "Fica-te aí que amanhã tem mais", dizia para a bancada de trabalho. Bebericava aguardente com coca-cola o dia todo. Depois, já bebote, montava Cadilháqui e ia acabar a noite na Vila Palmira. Mas ia com o Nilo para não se render sozinho ao engano das perdidas. Anos a fio nesse delito com a leniência da esposa: "ruim com ele pior sem ele". Ainda posava de respeitoso como se a companheira de nada suspeitasse: "ai de mim se ela desconfia". Bem que merecia um trato de pau para aprender o dom do respeito pelas pessoas de bem. Parecia dar valor somente à carne comprada. Chegava ao bordel com a roupa do serviço porque sabia haver sempre ali uma que perdia o tino diante da inhaca feiticeira da gasolina.

Cadilháqui dava ares de gostar da transgressão do senhorio porque, quando queria, agarrava o caminho da zona sem que alguém lhe ensinasse o norte. A mulherada o conhecia de longe; "passa a corda no pescoço do bicho que é do Pavão". Não que lhe dispensassem alguma consideração; não. É que o cavalo gostava de uma algazarra quando fuçava no lixo. Quando o dono dava pela falta do animal chamava o Paulo Poliça, um cabo reformado, que ia buscar o desertor pelo preço de uma cerveja. O proprietário do Bar Coringa, que era defronte à oficina, dava graças a deus quando o mecânico se perdia por lá. Gostava dele, mas não o suportava embriagado. Entrava no estabelecimento como uma torre cavaleira e se postava no meio das mesas de sinuca para pedir um trago. Dando de mão nas rédeas o cavalo se ouriçava todo e sapateava no chão do boteco. Ensaiava empinar ali dentro, só que trazia no lombo um cavaleiro que mantinha o controle da situação. E no equilíbrio com pouco espaço, o animal escorregava as patas traseiras bem ferradas para depois se recompor. Ainda que, a custo, restabelecida a integridade do conjunto, Cadilháqui permanecia arisco a julgar pelo movimento dos olhos arregalados e das cabeçadas no ar revelando a ânsia de sair para rua. O mecânico não precisava fazer isso. Altamiro botava as mãos na cabeça desesperado pela iminência do animal largar imundice pelo chão da bodega. "Pavão, leva esse cavalo, amigo; vai correr com a freguesia e sujar tudo aqui". Que se saiba nunca o bicho fez-lhe essa desfeita. Mas só pelo susto o fim de semana não prestava mais para Altamiro. Pavão curtia o desespero do proprietário porque tinha lá seus segredos, oras. Antes de cavalgar dava um chá de folha de goiaba ao animal e negava-lhe a ração para que não saísse pelas ruas emporcalhando tudo. Mas isso ele não contava ao apavorado vizinho.

Daí eu soube que, pelo início da madrugada, lá da gandaia vinham mais dois encorujados numa Lambreta. O açougueiro e o corneteiro do Batalhão, freqüentadores recidivos do fervilhante meretrício. Já havia uns dias que o cabo do acelerador do frágil veículo se partira. Combinaram que o da garupa controlaria a aceleração quando o outro solicitasse: "puxa o cabo; alivia". Para dar ordens desse tipo o militar ficava à vontade porque era reiúno velho de quartel e dono da motoneta. Não sabiam eles que Cadilháqui mais uma vez estava visitando o lixo da Churrascaria Globo em busca de verdejo. Naquela noite o proprietário do estabelecimento iria dar uma lição no animal. Não fosse o estrago nas latas de lixo e a sujeira espalhada pelo pátio até toleraria o bruto, que era manso. Mas já se lhe esgotara a paciência todas as manhãs ter de arrumar o estrago que o animal fazia. Então preparou uma boa. Aproximou-se amistosamente de Cadilháqui e amarrou-lhe, bem amarrado, uma fieira de latas nas pernas. Estalou uma chicotada nas ancas do alazão, que disparou rua abaixo a toda. Quanto mais corria, mais se assustava e mais queria correr. As luzes das casas foram se acendendo à medida que o cavalo ia passando com estardalhaço.

Enquanto isso os dois da Lambreta vinham se equilibrando precariamente. Como viajava na garupa e com menor compromisso, o açougueiro estava quase dormindo. Mesmo assim vinha obedecendo direitinho aos comandos do amigo. Isso até à hora que surgiu aquela espécie de mula sem cabeça, ensandecida pelo escarcéu que as latas faziam. O corneteiro gritou: “Alivia o cabo, Raulino!”; o outro fez o inverso; esgarçou tudo até o último. A Lambreta acelerou enlouquecida numa roda e foi se estatelar nos pneus de um caminhão estacionado ao lado do edifício dos Correios.

Percebendo a miséria que havia provocado, o dono da churrascaria meteu-se dentro de casa, apagou todas as luzes e ficou escutando o medonho rebuliço. Do cavalo escutava ainda os relinchos desesperados e o tropel das latas enquanto passava pela frente da Escola de Marinha em direção à Vila Palmira. Dos dois boêmios sequer um gemido. Mas depois, fazendo que chegara agora, ajudou a colocá-los na ambulância. Ficou o dito pelo não dito e ninguém soube quem fora o causador daquele tumulto que quase levou três para o buraco.

Duas semanas depois o militar e o açougueiro estavam engessados dos pés até a cabeça. Pareciam duas múmias vivas. Cadilháqui entrou em depressão e só encontrava consolo quando vinha sujar o pátio e remexer o lixo da churrascaria, pois ninguém conseguia nele colocar um inocente cabresto.

Um comentário:

André Setaro disse...

Gostei muito de seus escritos neste blog e agradeço a indicação feita, neste, do meu sobre a obra-prima que é, sem dúvida, 'Os imperdoáveis', de Clint Eastwood, que considero um dos mais expressivos diretores do cinema americano contemporâneo.