sexta-feira, 24 de outubro de 2008

UM ADEUS ENROSCADO

Humberto Ilha

Enquanto rezava junto ao corpo do amigo, Antônio Valadão acreditava que somente a prece dele tinha o poder de salvar aquela alma. Não poderia ter faltado ao velório para pedir em favor daquela alma tão cansada da luta que teve em vida. Sem a encomendação especial que sabia fazer, aquele homem não conseguiria bom descanso eterno. Sem o passaporte que sabia providenciar era provável que o morto fosse morar no rebordo do purgatório por bom tempo. Em vida tinha sido bom homem, obtendo créditos celestiais pelas virtudes que sempre cultivara. Mas esse prestígio de nada serviria se ele em pessoa não recomendasse aquela alma.

Olhou para os lados e deparou-se com o padre Aristeu rezando junto ao defunto. Por brevíssimo momento supôs que a prece do ministro fosse mais forte que a dele. E devia ser mesmo, pois trouxera os utensílios litúrgicos para a cerimônia: o aspersório, a estola roxa e a bíblia cheia de macetes, marcadores coloridos e até fecho ecler, parecendo o estojo de um violino raro. Mas depois, lembrando ter visto a atuação do padre na parada da diversidade, convenceu-se que seria ele, Valadão, a garantir ao finado as bem-aventuranças necessárias para triunfalmente entrar no paraíso. Afastou-se um pouco, fez-se triste junto aos familiares e, após longo recolhimento e conferência com o além, foi cumprimentar alguns conhecidos que não via há muito. “Há quanto tempo, fulano. É verdade, sicrano”. No momento em que se percebe como o tempo castigou o outro com rugas, manchas na pele e cabelos brancos, é que se vê como a gente também envelheceu. “Fazer o que? Antes velho do que vestir a mortalha”. Cumprimentando alguns deu de cara com um que havia sido seu subordinado numa empresa de ônibus. Estendeu-lhe a mão de maneira amistosa, mas o outro refugou. Havia uma rusga antiga que estava esquecida para Tonhão, mas não para o outro, que fora pego em flagrante roubando o dinheiro dos passes que vendia no guichê. O gatuno era ainda um jovem descabeçado, mas fora demitido com desonra. Fora exemplo aos demais para mostrar que o crime não compensava. Mas isso fora há trinta anos. Deveria tudo já estar esquecido, mas não estava.
— Como estás?
O outro olhou para a namorada e falou:
— É ruim, hein? Eu te conheço?
— Sou o Antônio, fui teu gerente na empresa de ônibus.
— Conheci lá um desgraçado que me botou no olho da rua. Eras tu?
— Que exagero, meu. Desgraçado, não.
— Deus é justo, cara. Hoje é o Nascimento, mas quem deveria estar esticado ali eras tu.
— Se Deus fosse justo tu é quem deverias estar ali. Só não estás ali deitado porque Deus é bom, ladrão de uma figa.
O outro levantou da cadeira sem cor no rosto: branco como vela de igreja, armou todo o corpo para o ataque. Antônio manteve-se calmo e arriscou:
— Que que é, vais me encarar?

O outro voou-lhe em cima e ambos foram cair sobre um biombo de pano preto junto ao caixão. Aquele anteparo móvel servia para isolar a câmara mortuária dos demais espaços profanos do ginásio, da lanchonete e dos banheiros. Sem nenhum respeito ao defunto os dois queriam brigar. Um deles parecia ter razão, o outro só queria esconder a vergonha que diante de todos. Engalfinhados, foram ao chão com os petrechos do velório: um par de velas acesas, um negro livro de condolências e uma coroa de flores do campo no cabide envernizado. O susto foi geral diante do estrondo. Ninguém acreditava no que estava se passando ali. Uma peleia num ambiente tão impróprio. Mas a cena mortuária se impôs, porque era preciso fazer força para deixar de ouvir o timbre da voz daquela câmara fatal. Uma voz que parecia a própria do falecido: “cambada de cachorros, vamos parar com essa encrenca no velório; vamos ter mais respeito e menos barulho”. Não havia como negar pelo menos isso ao dono daquela reunião lutuosa. Então os dois homens resolveram dar marcha à ré no instinto, pois que ali era local inadequado para uma vergonheira daquelas, e interromperam o pugilato. Nenhum dos dois saiu mais daquele ginásio coberto até que saísse a procissão com o finado na comissão de frente levado pelas mãos de seis nas alças prateadas. Os dois odientos pareciam duas crianças de fraldas estrumosas. Haviam levado, parecia, um pito do presunto que ainda sabia se impor diante de situações graves como aquela. Cada um no seu canto, com a turma do deixa disso na pacificação, ambos pareciam arrependidos, mas nem se olhavam fingindo que rezavam entristecidos. Mas as cabeças concebendo planos para um lugar chamado depois. Até o sepultamento um iria ficar com a orelha inchada e mascada pela dentada do outro; e o outro de olho inchado e vermelho pelo sopapo do um.

Imediatamente após o coveiro lacrar a carneira do finado, os dois retomaram o bate-boca com troca de insultos. Ainda concentrada na cerimônia a viúva dirigiu-se ao operário em tom gemente:
— Acabou?
— Acabou senhora, só falta agora calafetar as fuças desses dois aí — e despejou nos briguentos a colher de pedreiro cheia de massa.

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